segunda-feira, janeiro 15, 2024

Regresso a Ítaca no sonho do Éden | Da fiel Penélope à Penélope pós-moderna

               Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)


Pela mão de ‘regresso a Ítaca no sonho do Éden’, fizemos, ao longo de dezassete ensaios (este é o décimo oitavo), a ponte entre a cultura clássica e a cristã, estabelecendo laços entre uma e outra, ora para vislumbrar pontos de convergência, ora para identificar a singularidade do cristianismo perante a tragicidade da visão grega.

Fizemos a viagem pela mão de Ulisses, mas com o sonho do Éden, enquanto parábola da condição humana entendida como ‘elástico’ em tensão entre um passado perdido e um futuro desejado.

Entre a cultura clássica e a cultura cristã muito é o que as une, muito é o que as distingue, mas uma nota de convergência é irrefutável: a compreensão do mundo como lugar de manifestação do ‘logos’, da ‘Palavra’, da ‘Verdade’.

O homem da cultura grega e da cultura cristã não é, nunca, apenas um ser de afetos e emoções fúteis e efémeras. A sua busca, ora trágica, ora elpídica (marcada pela esperança), não é, apenas, agorista e pontilhista (feita do ‘agora’ e de ‘pontos’ sem ligação, para evocar pensamento de Stephen Bertman e Zigmunt Bauman). O homem do cristianismo e da cultura clássica não é redutível ao agora. Está numa tensão entre o passado e o futuro, ora pendendo para o primeiro, ora projetando-se para o segundo. Mas nunca fixando-se no presente.

Isso une as duas culturas e, por isso, a marca contemporânea, pós-moderna, traz algo de novo que coloca em crise não só a cultura cristã, mas também os fundamentos da cultura em que se fez a história ocidental. O homem contemporâneo poderá definir-se como ‘pós-moderno’ (Lyotard), hipermoderno (Lipovetsky), ‘líquido’ ou ‘pontilhista’ (Zigmunt Bauman), ‘agorista’ e ‘apressado’ (Stephen Bertman), e entregue à ‘tirania do momento’ (Thomas Hylland Eriksen).

Ilustra, de forma muito interessante, esta crise e esta ‘novidade’, uma canção de Mísia, editada em 1995, com letra de Carlos Tê. O título é ‘Penélope: o engenho da costela’.

Sugiro ao leitor a escuta atenta desta canção, após a qual proponho o regresso a esta apreciação e leitura.

(Deixo, aqui, uma proposta de link de acesso: https://www.youtube.com/watch?v=i5VlP9l8MrU)

O compositor da canção utiliza, em grande parte da música, um modo menor, criando um tom lúgubre e sentido, modo que acompanha a descrição da Penélope que conhecemos da Odisseia. Ela é a mulher de Ulisses que espera, anos a fio, pelo regresso do marido, distante, em Troia, a travar a célebre guerra entre gregos (que ele representa) e troianos (que haviam raptado a bela Helena). Sendo alvo de muitos pretendentes, Penélope assegura-lhes que aceitará entregar-se a um deles quando terminar a peça que tem em mãos no seu tear. Só que não é sua intenção entregar-se-lhes, pelo que, de noite, desfaz o que fizera de dia, tornando interminável a sua ‘obra’.

Penélope constitui-se, assim, como o paradigma da mulher fiel e determinada a permanecer vinculada a um amor eterno.

A versão de Mísia traz, porém, uma novidade tipicamente pós-moderna.

Na sua história, não só Ulisses não regressa a casa, ‘perdido entre as ilhas’ (fazendo uma revisão da história que nos chegou e em que Ulisses se prendera ao mastro do seu barco para poder chegar ao seu destino…), como a própria Penélope desistiu de esperar e parte, ‘sozinha e sem herói’.

O regresso de Ulisses a casa já não é esperado, e, se tal deveria ser motivo de inquietação e incómodo, o autor da canção encarrega-se de nos dizer como é que o ‘pós-moderno’ olha para tudo isto: a música muda de modo (passa a modo maior, fútil e ‘trauliteiro’) e a letra diz-nos que ‘Ulisses está perdido; não tem quem lhe cosa as meias’ (não é já a infidelidade que o incomoda; é a efemeridade das meias rotas…).

Este é o drama do nosso tempo: não ter já noção da dramaticidade da existência.

A tragicidade com que os gregos respondiam foi superada pela esperança cristã, mas em ambas as leituras havia a coragem de enfrentar a verdade da existência: respondia-se-lhe com tragicidade ou com esperança, mas olhava-se, frontalmente, para a condição humana. O pós-moderno, o hipermoderno, parece ter desistido da dramaticidade vital, iludindo-se em viagens sem rumo, alienado e distraído, até que a vida se encarrega de o acordar, talvez já demasiado tarde para ainda se assumir peregrino de um horizonte de realização…

Cabe, por isso, hoje, ao cristianismo o denso desafio de despertar do torpor que adormeceu, coletivamente, a humanidade num remendar de meias rotas, pois de que serve a esperança se não se ruma para lado nenhum e não se está na expectativa de coisa alguma?

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