As leis que visam suportar a
autodeterminação de género vêm-se multiplicando, numa cadência vertiginosa.
Esta vertigem legiferante do nosso parlamento suscita uma interrogação genuína:
porquê?
Se é claro, desde logo, que se trata
de um tipo de legislação que parte de um pressuposto erróneo – o de que o sexo
seja uma realidade atribuída à nascença – como argutamente vêm denunciando os
mais atentos analistas;
- se é notório que há um efeito
nefasto da criação de legislação deste género no aumento do número de casos de
adolescentes e jovens que dizem sentir-se de um género distinto do que a
biologia evidencia;
- se é evidente que não pode
atribuir-se esta vertigem a uma hipotética urgência (segundo o jornal Público,
submeteram-se a mudança de sexo 150 jovens[1], num
universo de cerca de 1 milhão e trezentos mil de estudantes[2], representando
cerca de 0,01% dos jovens que estão no nosso sistema educativo), a não ser que
se admitisse que o parlamento, de quem se esperam leis gerais e abstratas,
fosse, agora, lugar de legislação ‘ad hominem’, feitas à medida de cada um,
sempre que suficientemente forte para influenciar os legisladores;
- se não pode ficar a dever-se a um
qualquer súbito assomo de compaixão do nosso parlamento, o que, a ser verdade,
teria de ter sido acompanhado por igualmente vertiginosa legislação sobre, por
exemplo, o combate ao aumento do número dos sem-abrigo, ou o aumento do número
de abandonos em hospitais de pessoas idosas já com alta ou, ainda, o atalhar
contra o facto de Portugal ser um dos países desenvolvidos onde mais se morre
nos hospitais, em vez de em casa, etc., etc.,etc…
- Se, mais ainda, se trata de
legislação que fecha o indivíduo sobre si mesmo, matando a importância da
história de cada um e da memória dos outros sobre ele; [Levado ao extremo, o
espírito desta lei matará um dos momentos mais belos da vida humana (e, talvez,
mais específicos da nossa condição) que é o que acontece quando dois amigos se
reencontram, depois das distâncias do tempo e dos lugares.
-'Pedro!'
- 'Francisco!'
- 'Como mudaste!'
Ou
-'Estás igual!'
- 'O que é feito de ti?'
E bem sabemos a densidade humana que
sucede a estas primeiras palavras, bem 'regadas' com profundos e demorados
abraços.]
- se é, ainda, evidente que é um tipo
de legislação que promove, não a inclusão, mas a conflitualidade e o litígio…
Então, porquê esta obsessão, esta
vertigem que parece imparável? Porquê?
Equívocos,
mas muito mais do que equívocos…
Em 29 de setembro de 2022, defendi, no
Parlamento[3], em
audição realizada no contexto de uma outra discussão (no caso, a eutanásia),
que, sendo os deputados pessoas de bem, que visam o bem, porque é que os vemos
defender e aprovar leis más?
Defendi, então, que a maioria parlamentar,
em muitas destas matérias, está sustentada em equívocos.
Assim será, eventualmente, no caso de
muitos deputados, em relação a esta matéria. Mas, a razão do ‘equívoco’ pode
não ser suficiente para explicar tamanha vertigem.
Na realidade, se o equívoco de que
mudar é, sempre, virtuoso, pode ser altamente determinante para que muitos não
queiram perder o comboio de ‘deixarem marca na História’;
- e se o equívoco de que a
autodeterminação é absoluta (sem qualquer condicionamento, como se fosse possível
haver sujeitos humanos não situados biológica, cultural, linguística,
socialmente, etc.) e é um valor absoluto, anterior a tudo o resto, esquecendo
que a própria Declaração Universal dos Direitos humanos, no seu primeiro
parágrafo do preâmbulo, afirma que, antes da liberdade, está a dignidade
humana, como condição de inviolabilidade, se este equívoco pode condicionar
muitíssimo e obnubilar quem pensa estar, com leis deste género, a proteger esse
‘pressuposto absoluto’;
- se o equívoco de que seja necessário
precipitar a transformação das crianças que se sentem desajustadas do seu corpo
pode influenciar a decisão de quem quer o bem daquelas, esquecendo os já
numerosos casos de crianças e jovens que se arrependeram, não podendo reverter
os processos hormonais a que, entretanto, tinham sido submetidos e o
insofismável facto de virem a aumentar os números dos que se sentirão
‘baralhados’ e perdidos (para os que duvidam deste facto confirmado pelos dados
estatísticos dos países que já estão a retroceder, sugiro a leitura dos estudos
de Stanley Milgram, de Solomon Asch, na década de 50, de Philip Zimbardo, na
década de 70[4],
de David Simons, na década de 90[5], acerca
da atenção seletiva, que evidenciam a
nossa enorme disponibilidade para sermos manipulados e para nos reconfigurarmos
por efeito do ambiente e da pressão social envolvente);
- se é certo que há estes e outros
equívocos, permanece, porém, a dúvida sobre o alcance de cada um deles, pois
pressente-se que algo mais profundo se pretende, passo a passo, de forma
progressiva.
A
intenção que se omite, para além dos equívocos: o fim da família!
Sente-se que as leis escondem mais do
que o que dizem e explicitam.
Parecerá (e assim o pretendem vincar
os promotores destas leis) excessivo opor-se à questão das casas de banho partilhadas
(dirão alguns que é uma questão menor ou que nem sequer é esta) ou à facilidade
com que se pretende retirar os filhos aos pais que se opuserem à determinação
dos seus infantes em quererem mudar de sexo.
Não só, porém, não será excessivo
opor-se ao que já é suficientemente grave na enunciação acima feita, mas também
ao que, por esta via, se pretende consolidar.
Ora enfrentemos, então, a interrogação
que nos acompanha, implicitamente, desde o início: porquê? Porque é que há toda
esta obsessão em legitimar leis que promovem a ‘autodeterminação de género’?
Dêmos a voz aos que defendem esta
causa.
Diz Amanda Palha, ativista LGBTQIAPN+,
num Seminário Internacional em conferência gravada em vídeo (em algumas
partilhas, esta conferência recebeu o título elucidativo de ‘o movimento LGBT e
o fim da família’): “Quando dizem para a gente: Ah, o movimento LGBT quer
acabar com a família […], a gente entrou numa onda, dos anos 90 para cá, de se
colocar numa atitude defensiva de dizer «não», a gente não quer destruir a
família nenhuma não. A gente só quer amar… […] Isso é de um retrocesso político
violento. […] violenta a história do movimento lgbt. […] Ah, que vocês querem
destruir a família. Sim! Queremos!”
O público que o ouve irrompe em
aplausos e gritos de entusiasmo…[6]
Não
precisaríamos de mais para perceber onde se pretende chegar, ao arrepio, porém,
do que é preconizado na declaração universal dos direitos humanos que afirma,
no seu artigo 16.º que ‘A família é o elemento natural e
fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado.’[7]
O cruzamento destes dois dados (a
afirmação indubitável do objetivo – acabar com a família – e a sua defesa pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos) terá de nos levar a concluir, no
imediato, que há uma contradição entre a afirmação de que tudo isto seja promoção
dos direitos humanos quando tal ocorre em absoluta oposição à integralidade dos
direitos humanos. Esta contradição denuncia uma intenção não explicitada.
Para encontrarmos a raiz última desta
contradição, teremos de recuperar o que defendiam os pais daquela que é a mãe
de todas as revoluções contemporâneas (a revolução francesa), revolução que
inspirou a revolução russa e as suas congéneres e que nos chega ao parlamento
pela via dos partidos da extrema-esquerda. Conscientes desta ligação direta, vejamos,
então como, dos revolucionários franceses, se chegou ao nosso parlamento.
Defendia Robespierre, no contexto da
revolução francesa, que era preciso acabar com a família, pois «a pátria tem o
direito de educar os seus filhos; ela não pode confiar este depósito ao orgulho
das famílias, nem aos preconceitos dos particulares, alimentos permanentes da
aristocracia e de um federalismo doméstico que retrai as almas ao isolá-las.»[8]
Este espírito chega à revolução russa,
inspirada em Marx que defendia, no seu ‘manifesto comunista’, a ‘supressão da
família!’, acrescentando que ‘até os mais radicais se indignam com este
propósito infame dos comunistas.’[9]
No mesmo sentido se orientava o
pensamento de Engels sobre a família monogâmica, que sustenta que ‘a libertação
da mulher exige, como primeira condição, a reincorporação de todo o sexo
feminino na indústria social, o que, por sua vez, requer a supressão da família
individual enquanto unidade económica da sociedade.’[10].
A causa está enunciada… A estratégia
está em curso!
Uma
oposição firme, em nome de uma sociedade de confiança e solidariedade
Os dados diante de nós parecem, por
isso, inequívocos: passo a passo, vai-se impondo uma sufocante ‘ditadura suave’[11] que, em
nome de valores que todos partilhamos (quem não se compadece de quem sofre?
Quem não quer acabar com a dor dos que se dizem incapazes de se reconhecerem no
que são?), mas sustentada num clima de medo (quem ousa dizer o que pensa se
logo o ameaçam de que não quer o progresso ou, até, com processo judicial por
discurso de ódio ou algo semelhante?) se vai entranhando, defendendo o
isolamento do indivíduo e relativizando o papel da família, numa lógica de
facto consumado.
Se esta tese vingar, restará, no
final, o indivíduo, sozinho, perante o Estado. Restarão o cidadão e o Estado.
Seremos mais fortes, assim? Ou mais
vulneráveis à manipulação e à instrumentalização e suscetíveis de depender,
exclusivamente, de um Estado que tudo parecerá saber e tudo nos oferecerá, de
forma paternalista e totalitária?
É por tudo isto que a oposição a estas
(só) aparentemente inofensivas mudanças legislativas se exige e impõe a cada um
dos que continuam a acreditar numa sociedade livre, onde somos seres que se
relacionam, não assentando a convivência no pressuposto da luta de classes e do
conflito, mas no da confiança e da solidariedade, em que Estado e sociedade (e,
nela, a família, como célula básica de um tecido com liames sempre frágeis e
que importa resolutamente proteger) se respeitam, cooperam, pois o Estado não é
fim em si mesmo, mas meio para a promoção da pessoa e da mesma sociedade.
Opor-se a este tipo de legislação é defender uma verdadeira sociedade
compassiva, capaz de sofrer, autenticamente, com o outro, não lançando sobre
todos os motivos do sofrimento de alguém, mas procurando solucionar, autentica
e comunitariamente, as causas do sofrimento. Impõe-se refletir, decidir em
conjunto, com olhos no todo de cada pessoa e não só no seu presente; ela também
é o seu futuro e o seu passado…
À família regressamos, quando tudo
desaba. Onde regressaremos, se já nem a família restar?
[1] https://www.publico.pt/2023/08/08/p3/noticia/quase-150-menores-ja-mudaram-nome-genero-cartao-cidadao-2059565
[2] Segundo dados do Pordata, consultados em 6 de janeiro de 2023, frequentam o ensino básico e secundário 1.327.423 alunos, não estando aqui incluídos os do ensino pré-escolar, também afetados por este tipo de legislação, que representam 259.030 alunos, o que reduziria a dimensão desta percentagem de 0,01%. (https://www.pordata.pt/portugal/alunos+matriculados+total+e+por+nivel+de+ensino-1002-7954)
[3] https://canal.parlamento.pt/?cid=6179&title=audiencia-da-associacao-de-defesa-e-apoio-da-vida-aveiro
[4] Leia-se, a este propósito, o que resume Maria Luísa Pedroso Lima, Nós e os outros: o poder dos laços sociais, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, pp. 42-48. Estes estudos evidenciam, entre outras coisas, que, ‘se três ou mais dos membros do grupo afirmarem decididamente uma posição, mesmo que ela seja obviamente falsa, é bastante provável que os restantes sejam influenciados por ela e a aceitem.’ (Op. Cit., p. 47)
[5] Veja-se, a este propósito, o vídeo https://youtu.be/vJG698U2Mvo, que permite compreender quão condicionados somos por uma excessiva concentração num determinado aspeto, preterindo os restantes.
[6] Recomendo o visionamento atento do vídeo,
particularmente a partir do minuto 25: (https://www.youtube.com/watch?v=A_HFxALrTS8).
[7] https://unric.org/pt/declaracao-universal-dos-direitos-humanos/
[8] Renaud Escande, O livro negro da revolução francesa, Lisboa, Editora Alêtheia, 2010, p.724.
[9] «Manifesto Comunista», in AA.VV. Contributo para a história do feminismo, Lisboa, Alêtheia, p. 18.
[10] F. Engels, «A origem da Família, da propriedade e do Estado» in AA.VV. Contributo para a história do feminismo, Lisboa, Alêtheia, p. 90.
[11] Expressão de ‘Braunstein’, no seu livro ‘a religião woke’, para se referir a toda a onda de promoção da autodeterminação de género. Um livro muito oportuno e útil para a leitura de fundo desta vertigem. Jean-François Braunstein, A religião woke, Lisboa, Guerra e Paz, 2023, p. 174.