Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'
Luís Manuel Pereira da Silva*
‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ pede-nos que retrocedamos à guerra de Troia e à história de Aquiles. Nela, há muito a encontrar de confluência e divergência entre a cultura clássica e a cosmovisão cristã.
Aquiles é, como nos conta Pierre Grimal, no seu incontornável ‘Dicionário da mitologia grega e romana’[1], filho de um humano – Peleu, rei de Ftia (Tessália) e de uma deusa, Tétis. A mãe procurava afastar dos seus filhos as marcas de humanidade, mergulhando-os no fogo. Tal ação matara os seis filhos anteriores. Aquiles teria tido o mesmo fim, não fosse Peleu tê-lo salvo, no momento decisivo, mas, ainda assim, com marcas que lhes ficaram, no lábio (ainda queimado pelo fogo) e no calcanhar, que teve de ser substituído pelo calcanhar de um gigante morto, Dâmiso, o que lhe conferiu capacidades de corrida únicas.
Uma outra lenda, a mais conhecida, diz que Tétis mergulhara Aquiles nas águas do rio infernal, Estige, rio que tinha o condão de conferir a quem nele mergulhasse o poder de se tornar invulnerável. Tétis mergulhara Aquiles nessas águas, mas segurando pelo calcanhar, único ponto onde Aquiles se tornou invulnerável.
Na guerra de Troia, será pelo calcanhar que advirá a morte do herói.
Ditara um oráculo que, se Aquiles matasse algum filho ou filha de Apolo, haveria de morrer. Assim aconteceu, na ilha de Ténedos, onde Aquiles matou Tenes, uma das filhas de Apolo, ao pretender raptar uma sua irmã. Já na guerra de Troia, uma lança, atirada por Páris e orientada por Apolo para o frágil calcanhar, ditará o desfecho do filho de Tétis.
Curiosamente, a vulnerabilidade e simbolismo do calcanhar aparecerá, antes da morte do herói Aquiles. Ele próprio arrastará o troiano Heitor, por si assassinado na batalha, prendendo-o pelo calcanhar ao seu carro de combate, irando os deuses que se sentem ofendidos com a afronta de Aquiles para com o dever de respeitar os mortos.
O comportamento de Aquiles parecia antecipar o seu próprio desfecho: o calcanhar. Sempre o calcanhar…
Curiosamente, Troia e a viagem que se lhe seguiu (regresso a Ítaca) une-se à cosmovisão cristã de uma forma algo insuspeita.
Entre as ‘maldições’ descritas após o ‘pecado de Adão e Eva’, inclui-se, precisamente uma referência ao calcanhar: ‘Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no calcanhar.’ (Gn 3, 15, edição de www.paroquias.org)
E, de modo indelével, o calcanhar está ligado à história de Israel, aliás, ao próprio Israel, cujo nome primeiro é ‘Jacob’, que, etimologicamente, quer dizer ‘aquele que segura pelo calcanhar’, correspondendo ao que é contado sobre o nascimento de Esaú e de Jacob, em Gn 25, 26, onde se diz que ‘Depois, saiu o irmão, segurando com a mão o calcanhar de Esaú. E por isso lhe deram o nome de Jacob.’
Não nos é possível, hoje, saber se os autores de Génesis conheceriam o mito de Aquiles, mas a densidade do simbolismo associado aos pés e ao calcanhar, faz-nos, num primeiro momento, aproximar as duas cosmovisões para, num segundo momento, as fazermos divergir.
A aproximação resulta de constatarmos o reconhecimento, em ambas as culturas (clássica e judaico-cristã), do lugar do caminhar, do andar, do mover-se: veja-se a importância do conceito de ‘peregrinar’, do ‘sacudir o pó dos pés’, do ‘beijar os pés’, como símbolos densos e suficientemente transparentes para nos dispensarmos de os desvendar. Falam por si.
Este reconhecimento simbólico está densificado num monumento situado numa das margens do Danúbio, na cidade de Budapeste. Numa obra realizada Can Togay e Gyula Pauer, estão colocados, em desalinho, apenas sapatos de bronze e ferro, aludindo e homenageando os judeus que, pelas milícias da Cruz de Ferro, ali mesmo foram executados, pelas costas, em plena II Guerra Mundial. Hoje, as vítimas estão representadas pelos sapatos (imagem dos pés).[2]
Mas a esta aproximação associamos, prontamente, um movimento de divergência.
Na cultura clássica, a vulnerabilidade do calcanhar, retratada no mito de Aquiles, expressa um último resquício de fragilidade humana perante a invulnerabilidade do resto do corpo.
Ao humano está associada a perda; ao divino, o ganho.
Na cultura cristã, o registo é distinto.
É o homem todo que é vulnerável, mas também é todo ele que é elevado ao divino. Não apenas uma parte de si.
Os gregos olham para o humano como sinónimo do trágico. A humanidade é prescindível, superável, lugar da tragédia. A vida de Aquiles está toda ela envolvida em maldições: impende sobre ele o dito do oráculo que prevê que, ou tenha vida longa, mas sem glória ou, então, glória, mas com morte precoce; ama, mas os seus muitos amores (Ifigénia; a irmã de Tenes; Pentesileia, a rainha das amazonas, por quem se apaixona depois de a matar; Políxena, por cuja paixão aceita fazer um acordo de entregar os gregos, etc.) são fontes de problemas e novas maldições; aceita que Pátroclo o antecipe, na batalha, esperando que os troianos desistam, por medo, mas ele próprio acaba por morrer, sem conseguir enganar os troianos. Maldições e tragédia. Para os gregos, onde o humano está, está o trágico.
Na cultura cristã, pelo contrário, o humano é divinizado e assumido, todo ele, por Deus.
Disto nos dá conta o concílio de Calcedónia ao afirmar que Jesus Cristo é ‘verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem’.
O divino não está limitado, já, pela vulnerabilidade do ‘calcanhar’. O Homem, assumido por Deus, em Jesus Cristo, evidencia-se, na visão cristã, como digno, portador, todo ele, de condição suscetível de ser assumida por Deus.
Aquiles é filho de Tétis que deseja apagar do filho as marcas do humano; Jesus Cristo é Filho de Deus que ama o Humano e reconhece nele a dignidade merecedora de n’Ele encarnar. Não será, por isso, casual que as representações de Deus, que podemos colher das parábolas do Evangelho da misericórdia, o de Lucas, não nos mostrem Deus a pegar em parte do humano, mas a abraçá-lo, integralmente. As mãos do Pai, no quadro de Rembrandt (do ‘Regresso do filho pródigo'), uma feminina e outra masculina, ou as enormes mãos do quadro de Arcabas, na capela da Ressurreição[3], em Bérgamo, evidenciam que o abraço de Deus nos toma como todo, e não nos apanha, apenas, o calcanhar.
Em Jesus Cristo, ficou sarado, para sempre, o calcanhar de Aquiles, assumida que está, integralmente, a nossa condição, toda ela vulnerável, mas divinamente elevada.
[1] Pierrer Grimal, Dicionário de mitologia grega e romana, Lisboa, Antígona Editores, 2020, pp. 35-39
[2] Recolhido do luminoso livro de Pe. José Miguel Cardoso, Anatomia da Fé: Introdução pós-moderna ao cristianismo, Apelação, Paulus Editora, 2014, p. 71.
[3] Ver a descrição feita no livro de Pe. José Miguel Cardoso, op. Cit, p. 66.