domingo, outubro 27, 2024

Cidadania e desenvolvimento - O explícito e o implícito… Paremos para pensar.


 

A discussão sobre a disciplina (e a estratégia) de ‘cidadania e desenvolvimento’ regressou à ribalta. A animosidade com que a matéria tem sido abordada evidencia muitos elementos implícitos e muitos pressupostos, pelo que se exige centrar a atenção no que, verdadeiramente, está em causa.

Para contribuir para esta reflexão, proponho-me iniciar com uma parábola.

 

Uma parábola…

Imagine-se uma escola em que é transmitida, aos professores, a informação de que há uma ou duas crianças de anos iniciais cujos pais se descobriu, recentemente, que não serão quem elas pensaram sempre ser e que essas crianças estão em vias de o descobrir, prevendo-se que seja para breve.

É guardada reserva sobre esta matéria, não sendo conhecida a identidade das crianças com quem tal vai ocorrer.

A escola começa a organizar-se para encontrar formas de minorar os efeitos dessa ‘demolidora’ informação nas respetivas crianças.

Há, porém, um professor que decide criar uma estratégia mais ampla de abordagem.

Propõe-se – diz – diminuir o efeito daquela dolorosa mensagem.

Começa a criar dinâmicas com a sua turma através das quais suscita dúvidas em todas as crianças sobre se os seus pais serão, efetivamente, quem elas pensam ser. Dinâmica após dinâmica, texto após texto, dramatização após dramatização, as dúvidas vão-se avolumando em todas as crianças, ‘garantindo’, assim, - diz aquele professor – que todas perceberão o que o seu ‘ainda desconhecido’ colega irá passar. Com que custo, porém? – Perguntamos nós.

Qual o efeito de tal estratégia? É a estratégia adequada para o problema a enfrentar?

É a única forma de se ser compassivo para com quem vive uma situação dolorosa?

 

A parábola, aplicada à ‘cidadania e desenvolvimento’

Feitas as devidas salvaguardas, a disciplina de ‘cidadania e desenvolvimento’ que está estreitamente associada à ‘estratégia nacional de educação para a cidadania‘ parte do mesmo equívoco do professor da nossa parábola.

Vejamos porquê.

A estratégia nacional de educação para a cidadania define três grupos de domínios: ‘o primeiro, obrigatório para todos os níveis e ciclos de escolaridade (porque se trata de áreas transversais e longitudinais), o segundo, pelo menos em dois ciclos do ensino básico, o terceiro com aplicação opcional em qualquer ano de escolaridade’ (ver https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Projetos_Curriculares/Aprendizagens_Essenciais/estrategia_cidadania_original.pdf).

 

1.º Grupo:

Direitos Humanos (civis e políticos, económicos, sociais e culturais e de solidariedade);

Igualdade de Género;

Interculturalidade (diversidade cultural e religiosa);

Desenvolvimento Sustentável;

Educação Ambiental;

Saúde (promoção da saúde, saúde pública, alimentação, exercício físico).

2.º Grupo:

Sexualidade (diversidade, direitos, saúde sexual e reprodutiva);

Media;

Instituições e participação democrática.

Literacia financeira e educação para o consumo;

Segurança rodoviária;

Risco.

3.º Grupo:

Empreendedorismo (na suas vertentes económica e social);

Mundo do Trabalho;

Segurança, Defesa e Paz;

Bem-estar animal;

Voluntariado.

Outras (de acordo com as necessidades de educação para a cidadania diagnosticadas pela escola e que se enquadre no conceito de EC proposto pelo Grupo).

 

Uma leitura ‘inocente’ destes domínios poderá não compreender as dúvidas dos que a criticam.

Terá de se ouvir, por um lado, a palavra dos decisores políticos que, por exemplo, em contexto de marchas do orgulho gay, em Lisboa, afirmaram, antes de esta estratégia estar definida, que haveria de se fazer chegar às escolas o que ali se celebrava (declarações proferidas pela então secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Catarina Marcelino, em junho de 2017: “não chega só mudar a lei, é necessário ter educação para a cidadania nas escolas” – ver aqui: https://dezanove.pt/catarina-marcelino-hoje-marchei-com-1093201).

A esta primeira constatação, que evidencia a intenção, terá de se juntar a leitura mais fina dos documentos.

Um olhar já com a inocência mais burilada constatará que a estratégia define domínios como obrigatórios em todos os anos e ciclos, os do primeiro grupo, que, incluindo temas com que todos concordarão, enuncia a ‘igualdade de género’ que, na interpretação de muitos, será o esforço de aproximação de direitos entre homens e mulheres. Seria ótimo!

Mas os ‘guias de educação género e cidadania’, a começar no pré-escolar (ver aqui: https://www.cig.gov.pt/wp-content/uploads/2015/10/398_15_Guiao_Pre_escolar.pdf) não deixam margem para dúvida.

Parece ter sido o professor da nossa parábola a definir a estratégia. Ele não quer, apenas, que se suscite solidariedade e ‘compaixão’ para com quem se encontra em dúvidas sobre a sua condição sexuada. Quer que todos as tenham por igual. Quer gerar a confusão em todos para que, assim, a compaixão de todos seja por solidariedade na desgraça…

Veja-se o que se afirma, na página 12. Cito sem cortes…

«No sentido de clarificar a ideia de que as diferenças observadas entre os sexos não se justificam simplesmente pela pertença da pessoa a uma categoria biológica presente à nascença, mas que resultam sobretudo de construções culturais, Ann Oakley propôs, em 1972, que se efetuasse a distinção entre os termos sexo e género, distinção essa que passou a servir de referência para as Ciências Sociais. Em seu entender, o sexo com que nascemos diz respeito às características anatómicas e fisiológicas que legitimam a diferenciação, em termos biológicos, entre masculino e feminino. Por seu turno, o género que desenvolvemos envolve os atributos psicológicos e as aquisições culturais que o homem e a mulher vão incorporando, ao longo do processo de formação da sua identidade, e que tendem a estar associados aos conceitos de masculinidade e de feminilidade. Assim, o termo sexo pertence ao domínio da biologia e o conceito de género inscreve-se no domínio da cultura e remete para a construção de significados sociais.»

Destaco «os sexos não se justificam simplesmente pela pertença da pessoa a uma categoria biológica presente à nascença, mas que resultam sobretudo de construções culturais».

Fica claro que os géneros serão todos os que forem pensáveis e não os que, biologicamente, forem observáveis e que são a base da organização da sociedade atual (progressivamente a ser revolucionariamente transformada…).

 

A obsessão dos ‘estereótipos’ e a contradição na própria estratégia

Somado a este pressuposto teórico, que dissolve qualquer ligação entre biologia e género, acrescente-se toda a estratégia marxista da luta contra os estereótipos, no pressuposto de que todo o estereótipo é necessariamente errado, devendo ser erradicado.

Como se a escola não fosse, ela mesma, um lugar carregado de estereótipos (os nerds, os góticos, os dreds, etc.) que, curiosamente, não são enfrentados nesta disciplina, nem abordados pela estratégia nacional. Quantos custos resultam, por exemplo, do estereótipo de que estudar é para ‘ratos de biblioteca’! (Não deveria reservar-se-lhe destacado lugar na referida estratégia?)

Acrescente-se a estas já suficientemente esclarecedoras constatações que é significativo verificar esta incidência obsessiva nos estereótipos de género quando não são enunciados outros que, se a intenção era combater todos os estereótipos, deveriam ser integrados.

Por exemplo, sendo Portugal um país com crise demográfica, quantos estereótipos recaem, com custos, sobre as famílias numerosas (Coitados! Irresponsáveis!); ou sobre os católicos que são a maioria, nas escolas portuguesas (são todos uns pedófilos ou inquisidores!) ou sobre os empresários (só pensam no lucro!) ou sobre os que professam uma religião (padecem de uma patologia e infantilidade!) … ou…

Quer se queira, quer não, os estereótipos fazem parte da nossa condição de seres gregários que, muitas vezes, para se entenderem sem necessitarem de explicitar tudo, têm agendas subentendidas.

Esta obsessão marxista com os estereótipos, para mais apenas de um tipo, gera uma atitude moralista de censura permanente que retira a naturalidade na relação e ficciona todas as dimensões da vida.

E se isto não é ideologia!...

É a sedução de construir um ‘Homem novo’ sem vínculo à realidade, à sua corporeidade, o que, curiosamente, contradiz o documento estruturante da escolaridade obrigatória – o PASEO (Perfil do Aluno – seguramente, também é das alunas! - à saída da escolaridade obrigatória – ver aqui: https://dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Projeto_Autonomia_e_Flexibilidade/perfil_dos_alunos.pdf) – que inclui, entre as suas áreas de competências, ‘a consciência e domínio do corpo’, em que se prevê que uma das competências seja a de «ter consciência de si próprios a nível emocional, cognitivo, psicossocial, estético e moral por forma a estabelecer consigo próprios e com os outros uma relação harmoniosa e salutar.»

Alguém que recusa o seu corpo revela esta competência? E se essa recusa é promovida pela própria estratégia, não é uma estratégia contraditória em si mesma?

Não deveriam ter deixado o professor da nossa parábola com a missão de definir esta estratégia de cidadania. Ele não se compadece dos seus alunos sofredores (que nem sabe quem são!); lança sobre todos o mesmo sofrimento, pensando estar, assim, erradamente, a diminuir a dor dos sofredores.

Ser solidário e ser bom cidadão não é isto. É acolher o outro, mesmo podendo divergir dele e das suas opções, que estão sempre sujeitas a possível escrutínio.

sábado, outubro 19, 2024

Aborto e alargamento de prazos: impressiona tamanha insensibilidade

 

Impressiona!

Impressiona a insensibilidade com que se está a preparar um hipotético alargamento dos prazos do aborto legal. Dois projetos estão na mesa que se propõem alargar para 12 ou para 14 semanas o prazo do aborto.

Digamo-lo com verdade e honestidade. O abortamento voluntário é a morte de um filho e com essa morte, a morte, também, da sua mãe e do seu pai, pois só há mãe e pai porque há um filho.

É disto que estamos a falar.

O filho em desenvolvimento no útero da sua mãe não é uma parte desta, mas antes um alguém (ou mais do que um, se for uma situação em que estamos perante gémeos) que confia e se confia à sua mãe, durante nove meses, para poder desenvolver-se e autonomizar-se, deixando de depender dela, em exclusivo, a partir do seu nascimento. O aborto trai este ‘depósito’ tácito de confiança.

E se já é grave que seja feito, em alguns casos, em circunstâncias de pressão que obnubilam a capacidade de decidir, a sua gravidade aumenta quando a sociedade se vai insensibilizando para o que, de facto, está em causa.

Um filho, cuja dignidade de humano deveria significar que conta com todos para se saber protegido, fica à mercê das decisões conjunturais para ver garantida a sua vida, quando, numa sociedade humanista deveria contar com o ‘abraço’ e conforto de todos para poder vir a nascer.

Mas, sob a ação de campanhas de manipulação da opinião pública, a sociedade prefere fazer de conta que se trata de um assunto individual, em relação ao qual ninguém tem nada a ver, como se um filho fosse propriedade de alguém e não um indivíduo com direitos próprios, uma dignidade humana e merecedor de cuidado e proteção.

Veja-se como se afirma que mais de 1300 abortos não foram realizados por estarem fora de prazo, como se não estivesse em causa a vida de 1300 como nós.

Se pararmos para pensar, quem dá uma notícia destas está a dizer, aos que vão nascer, dentro de meses: ‘vais nascer, mas muito contra a nossa vontade. Por nós, não terias direito a nascer.’

 

Importam-se de repetir?

Mais de 1300 abortos não se terem realizado por estarem fora de prazo é motivo de tristeza? É notícia?

Impressiona-me esta indiferença para com a vida de outrem.

Impressiona-me, também, esta manipulação da opinião pública que posiciona o tema de modo a insensibilizar as ‘hostes’ de modo a que possam acolher a decisão que se avizinha no horizonte: o alargamento do prazo do aborto.

 

Impressiona-me que não incomodem os mais 250 mil abortos realizados, desde 2007, ao abrigo da lei que já existe.

Como é que não incomodam estes números?

E pretende-se o alargamento dos prazos.

O objetivo é vir a chegar a 500 mil abortos? A um milhão?

E, se forem honestos, dado que reivindicam que o aborto é legítimo sob o pretexto de que se trata de uma coisa que é parte do corpo da mulher, então, a reivindicação deve ser a de que se alargue o prazo até final da gravidez…

Não nos impressiona tamanhã insensibilidade?

E quem apoia a mulher que quer ser mãe e tem de ocultar a sua gravidez para não ser pressionada a abortar porque a lei deixou de a proteger?

E quem apoia a mulher que quer ser mãe mas a quem propõem que se desfaça do filho porque não tem condições para o sustentar?

Eu sei quem a apoia. Os que, no seu silêncio mediático, têm estado ao lado das mulheres que não desistem de ser mães porque sabem que não têm direito a tirar a vida aos seus filhos.

Eu sei quem a apoia. Os que alguns insistem em qualificar como conservadores ou já residuais, mas que, porque sabem que quem não conserva deixa estragar, não desistem do que é mais importante e reconhecem que cada vida humana é uma história única que ninguém tem direito a interromper antes de começar a narrar-se.

Há situações dolorosas em que o aborto parece ser a solução quando tudo é negro à volta? Há!

Mas não é boa opção, nessas situações, propor que a solução passe pela eliminação de um filho, quando, afinal, o que é necessário é acompanhar, dar condição para acolher e cuidar. É assim uma sociedade humanamente moderna, humanamente desenvolvida, cientificamente sustentada e validada pela factualidade de que uma gravidez não é um alargamento de um útero, não é o crescimento de uma ‘coisa’ no ventre de uma mulher, mas a história de uma vida em desenvolvimento com a proteção única da sua mãe.

Até quando continuará este processo manipulador e insensibilizador?

Cada filho abortado grita fundo nas consciências da sociedade. Mas há quem saiba muito bem abafar essa voz…

segunda-feira, outubro 07, 2024

Sabes, leitor... | 10 | Marca de água do livro de Byung-Chul Han, 'A Agonia de Eros'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Byung-Chul Han, A Agonia de Eros, Lisboa, Relógio d’Agua Editores, 2014.

 

Cheguei a Byung-Chul Han pela mesma porta pela qual terá entrado a maioria dos seus leitores portugueses: o seu livro ‘a sociedade do cansaço’, que me foi apresentado por um amigo (bibliófilo como eu) e que eu li em 2019. De então para cá, somei onze livros a essa primeira leitura.

Atrai, na sua escrita, a capacidade de ler o mundo em profundidade, sem medos nem receios, nestes tempos dados a cancelamentos.

Atrai, ainda, a capacidade que tem de procurar uma linguagem que diga a todos aquilo que se pode presumir poder nascer das fontes que o inspiram. A sua biografia, que o ‘faz’ nascer em Seul (Coreia do Sul), onde estudou Metalurgia, mostra um homem em busca. Da Metalurgia (estudada na Ásia) parte para a Filosofia, Teologia e Literatura Alemã, apesar de, quando chegado à Alemanha, nada saber da língua.

Percebe-se, na sua escrita e no seu pensamento, a influência dos mundos que calcorreou. Percebe-se a preocupação com as palavras (é um exímio criador de termos e de título – ‘o aroma do tempo’, ‘a salvação do belo’, ‘não-coisas’, ‘infocracia’, etc. dizem muito da sua capacidade de expressar muitíssimo em poucas palavras [como os seus ensaios, que muito dizem em poucas páginas]), influência do seu contacto com a língua alemã, ou a sua preocupação com o que é, para além do que parece, influência de Heidegger sobre o qual fez tese de doutoramento ou, ainda, a sua busca do sentido nas escolhas coletivas, influência da teologia em que se versou, em Munique.

 

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

 

Li ‘A Agonia de Eros’ em dois dias: entre 26 e 28 de agosto de 2022, depois do seu ‘a sociedade da transparência’. Nos meus registos, anotei que, após este, avancei para novo livro de Byung-Chul Han, ‘No enxame’, em que reflete sobre o impacto do digital nas sociedades e nos indivíduos, linha que se cruza com o que reflete em ‘Infocracia’.

Anotei, ao acabar de ler ‘A Agonia de Eros’, o seguinte: ‘o raciocínio é magnífico. Não me centraria tanto, porém, na crítica ao capitalismo (acho que também ele é um fenómeno de outro noúmeno a descobrir’), aludindo aos pontos de coincidência e divergência que me fazem cruzar com o pensamento de Han.

Explicito…

Han é mordaz na constatação de que a sociedade se vem estruturando sobre a ideia da centralidade do indivíduo, conduzindo, com isso, à morte do ‘outro’ ou, como diz Han, neste livro, à ‘erosão do outro’. Neste ponto, aproximamo-nos. Sou um personalista de matriz comunitarista influenciado pela minha nascente cristã e, por isso, revejo-me na ideia da inconcebibilidade de se pensar o eu sem o tu, mas divirjo quando Han atribui a causa disso ao capitalismo que gera a sociedade de consumo. Considero que o capitalismo (e o liberalismo a ele associado) emerge de uma causa anterior que encontra nestes dois – capitalismo e liberalismo – epifenómenos: o egocentrismo congénito à condição humana, desde que se ‘afastou da mão de Deus’.

Salvaguardada esta divergência, recentro a atenção no pensamento e no texto de Han, onde é possível encontrar pérolas de assertividade.

A ideia fundamental de Han é a de que ‘Eros’ expressa a ideia de um amor em que as identidades não se fundem, mas se respeitam, se acolhem, permanecem ‘tus’ dialógicos. ‘O Eros dirige-se, em sentido enfático, ao outro que não é possível alcançar sob o regime do eu. […] a sociedade de consumo visa eliminar a alteridade atópica a favor de diferenças consumíveis, heterotópicas. Hoje, em todos os lados, a negatividade desaparece. Tudo se achata de modo a poder tornar-se objeto de consumo. […] Em contrapartida, Eros torna possível uma experiência do outro na sua alteridade, arrancando o eu ao seu inferno narcísico. Eros põe em ação um desconhecimento voluntário de si mesmo, um voluntário esvaziamento de si mesmo.’ (pp. 10-11)

E Han avança no seu raciocínio, levando-nos à constatação de que ‘o amor positiviza-se hoje como sexualidade, estando esta, por seu turno, submetida ao imperativo do rendimento. O sexo é rendimento. E a sensualidade é um capital que é necessário aumentar. O corpo, com o seu valor de exposição, equivale a uma mercadoria. O outro é sexualizado como objeto excitante. Despojado da sua alteridade, o outro não pode ser amado, mas tão-só consumido. Nesse sentido, o outro já não é uma pessoa, porque foi fragmentado em objetos sexuais parciais. Não há personalidade sexual. Se o outro é percebido como objeto sexual, erode-se essa ‘distância originária’ que, segundo Buber, é ‘o princípio do ser humano’ e constitui a condição transcendental de possibilidade da alteridade.’ (p. 20)

É de ficar sem fôlego perante a clareza e luminosidade destas ideias.

Não se pense, porém, que Han defenda um qualquer angelismo assexuado. Pelo contrário. Consciente da natureza sexuada do ser humano, interroga-se sobre o que ela diz sobre o mesmo ser humano e descobre a profunda tentação de, por ela, o Homem deixar de ser Homem, a pessoa deixar de ser pessoa, para, por ela, a ‘relação’ se degradar em modo de exercício de poder.

Na verdade, consequente com esta leitura, Han é coerente e conduz-nos a reconhecer que, por oposição a esta abordagem genuinamente ‘erótica’ que acolhe o outro, que o recebe e que se entrega, em alteridade não objetual, o ‘porno é os antípodas do Eros. Aniquila a própria sexualidade.’ (p. 35) porque ‘o pornográfico também não tem inerente qualquer decoro, qualquer distância. Precisamente, é pornográfica a falta de tato e de encontro com o outro []. A pornografia, deste modo, aumenta a dose narcísica do eu.’ (p. 52). Há como que uma redução do encontro a um lugar de poder… E é nisto que a tese de Han tem o seu quê de sedutora ao identificar essa ação à tentação capitalista… Mas insisto que, na minha perspetiva, a sua origem é mais profunda; origina-se na tentação que acompanha a humanidade desde sempre: a da autossuficiência que convence de tudo ser para um eu que se agiganta cada vez mais e que de tudo é senhor absoluto.

‘A Agonia de Eros’ é um conjunto de ensaios que desafiam a que se regresse à original visão sobre a sexualidade humana, que […] desperta perante o ‘rosto’, ‘no qual o outro se dá e oculta ao mesmo tempo’. O ‘rosto’ opõe-se diametralmente à face (face), que se expõe como mercadoria com uma nudez pornográfica e se entrega a uma visibilidade e a um consumo totais.’ (p. 24) Uma visão assente na genuína ideia do que seja o amor. ‘A ‘verdadeira essência do amor’ consiste em ‘renunciar à consciência de si, em esquecer-se de si mesmo, num outro mesmo.’ […] Morre-se no outro, sem dúvida, mas a essa morte segue-se um retorno a si. E o retorno reconciliado que volta do outro a si é tudo menos essa apropriação violenta do outro […]. É antes o dom do outro, precedido pela entrega, o abandono de mim mesmo.’ (p. 30-31)

Ao ler Han, não pude deixar de recordar um dos mais belos e fecundos textos sobre estas matérias saídos nos últimos tempos. Nele, também se refere algo que Han revisita, vez após vez. Diz-se, ali: ‘[…] o modo de exaltar o corpo, a que assistimos hoje, é enganador. O eros degradado a puro «sexo» torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma «coisa» que se pode comprar e vender; antes, o próprio homem torna-se mercadoria. Na realidade, para o homem, isto não constitui propriamente uma grande afirmação do seu corpo.’ Quem o diz é Joseph Ratzinger, já como Bento XVI, na sua luminosa encíclica ‘Deus Caritas est’ (n.5), onde o amor, nas suas expressões erótica, de amizade e agápica é analisado, para surpresa de tantos, como manifestação da real condição humana, longe de angelismos com que alguns ainda pretendem ver a leitura cristã da sexualidade.

Pela mão de Han, cabe perguntar, então, se sobreviverá o humano à tentação da sua redução a ‘coisa’. Ou, de outro modo, poderá questionar-se se Eros resistirá ao poder de Narciso. Continuará a sexualidade humana a ser lugar de encontro ou reduzir-se-á, progressivamente, à condição de ‘não-lugar’, sendo, apenas, um outro modo de se exercer poder sobre o objeto diante do degradado ‘eu’?

O pensamento de Han permite, por fim, formular uma arriscada interrogação que julgo, contudo, ser legítimo enfrentar e partilhar: uma sociedade que deixou de questionar e até faz a apologia da busca do igual (expresso, em grego, pelo prefixo ‘homo’), estará, ainda, capaz de ousar pensar a sexualidade como o tempo e o lugar da genuína abertura ao outro, diferente do eu?...

 

Na mesma página que o autor (citações)

 

‘[…] as teorias sociológicas […] desconhecem que está hoje em ação alguma outra coisa que ataca o amor mais do que a liberdade sem fim ou as possibilidades ilimitadas. Não é somente o excesso de oferta de outros outros que conduz à crise do amor, mas fá-lo também a erosão do outro, que tem lugar em todos os âmbitos da vida e está ligada a um excessivo e ensimesmado narcisismo do mesmo. Com efeito, o desaparecimento do outro é um processo dramático – mas trata-se de um processo que se desenvolve sem que, infelizmente, muitos se deem conta.

O Eros dirige-se, em sentido enfático, ao outro que não é possível alcançar sob o regime do eu. Por isso, no inferno do igual, a que a atual sociedade se assemelha cada vez mais, não há qualquer experiência erótica. Esta pressupõe a assimetria e a exterioridade do outro.’ (p. 9-10)

 

‘Tudo se achata de modo a poder tornar-se objeto de consumo.’ (p. 10)

 

‘O sujeito narcísico-depressivo está exausto e fatigado de si mesmo. É desprovido de mundo e acha-se abandonado pelo outro.’ (p. 11)

 

‘[…] Eros torna possível uma experiência do outro na sua alteridade, arrancando o eu ao seu inferno narcísico. Eros põe em ação um desconhecimento voluntário de si mesmo, um voluntário esvaziamento de si mesmo.’ (p. 11)

 

‘O sujeito do rendimento, como empresário de si mesmo, é sem dúvida livre, na medida em que não está submetido a um outro que o comande e o explore; mas não é de facto livre, porque se explora a si mesmo, por mais que o faça com inteira liberdade.’ (p. 17)

 

‘A proclamação neoliberal da liberdade manifesta-se, de facto, como um imperativo paradoxal: sê livre. Precipita o sujeito do rendimento na depressão e no esgotamento.’ (p. 18)

 

‘O amor positiviza-se hoje como sexualidade, estando esta, por seu turno, submetida ao imperativo do rendimento. O sexo é rendimento. E a sensualidade é um capital que é necessário aumentar. O corpo, com o seu valor de exposição, equivale a uma mercadoria. O outro é sexualizado como objeto excitante. Despojado da sua alteridade, o outro não pode ser amado, mas tão-só consumido. Nesse sentido, o outro já não é uma pessoa, porque foi fragmentado em objetos sexuais parciais. Não há personalidade sexual.

Se o outro é percebido como objeto sexual, erode-se essa ‘distância originária’, que, segundo Buber, é ‘o princípio do ser humano’, e constitui a condição transcendental de possibilidade da alteridade. A ‘distância originária’ impede que o outro seja reificado como um objeto, como uma ‘coisa’. O outro, enquanto objeto sexual, já não é um ‘tu’. Já não é possível qualquer relação com ele. A ‘distância originária’ é portadora do decoro transcendental, que liberta o outro na sua alteridade, e, mais do que isso, o distancia. […] O objeto sexual não tem um ‘rosto’ que constitua a alteridade – essa alteridade do outro que impõe a distância. Hoje, perdem-se cada vez mais a decência, as boas maneiras e também o distanciamento – ou seja: a capacidade de experimentar o outro no confronto com a sua alteridade.’ (p. 20)

 

‘O futuro é o tempo do outro. A totalização do presente como tempo do igual faz desaparecer essa ausência que situa o outro fora do disponível. […] O amor, na medida em que hoje não significa senão necessidade, satisfação e prazer, é incompatível com a subtração e a demora do outro. A sociedade, como máquina de procura e consumo, suprime o desejo orientado para o ausente, que, enquanto tal, não pode ser encontrado, captado e consumido. Em contrapartida, Eros desperta perante o ‘rosto’, ‘no qual o outro se dá e oculta ao mesmo tempo’. O ‘rosto’ opõe-se diametralmente à face (face), que se expõe como mercadoria com uma nudez pornográfica e se entrega a uma visibilidade e a um consumo totais. ’ (pp. 23-24)

 

‘O capitalismo elimina por toda a parte a alteridade para tudo submeter ao consumo. O Eros é, por seu turno, uma relação assimétrica com o outro. E interrompe desse modo a relação de troca. Não se pode fazer contabilidade com a alteridade, uma vez que esta não aparece no balanço de dever e haver.’ (p. 24)

 

‘O homem atual permanece igual a si mesmo e procura no outro somente a confirmação de si mesmo.’ (p. 26)

 

‘O sentimento e a paixão dão lugar a sentimentos agradáveis e a excitações sem consequências. Na época do quickie, do sexo ocasional e de distensão, também a sexualidade perde toda a negatividade. A total ausência de negatividade faz com que o amor hoje se atrofie como um objeto de consumo e de cálculo hedonista. O desejo do outro é suplantado pelo conforto do igual. Procura-se a agradável e, em última análise, confortável imanência do igual. Ao amor de hoje faltam por completo a transcendência e a transgressão.’ (p. 27)

 

‘Nem toda a conclusão é violência. Conclui-se a paz. Conclui-se (‘fecha-se’) a amizade. O amor é uma conclusão absoluta porque pressupõe a morte, a renúncia a si mesmo. A ‘verdadeira essência do amor’ consiste em ‘renunciar à consciência de si, em esquecer-se de si mesmo, num outro mesmo’. […] O amor como conclusão absoluta passa pela morte. Morre-se no outro, sem dúvida, mas a essa morte segue-se um retorno a si. E o retorno reconciliado que volta do outro a si é tudo menos essa apropriação violenta do outro, que foi falsamente elevada a figura principal do pensamento hegeliano. É antes o dom do outro, precedido pela entrega, o abandono de mim mesmo.’ (pp. 30-31)

 

‘Na relação de pode e de dominação, afirmo-me e oponho-me ao outro na medida em que o submeto. Em contrapartida, o poder de Eros implica uma impotência em que eu, em vez de me afirmar, me perco no outro ou para o outro, que de novo me alenta […].’ (p. 31)

 

‘A hipervisibilidade é acompanhada pela desmontagem dos limiares e dos limites. É a meta da sociedade da transparência. O espaço torna-se transparente depois de alisado e achatado. Os limiares e as passagens são zonas cheias de mistérios e de enigmas, onde começa o outro atópico. Juntamente com os limites e os limiares desaparecem também as fantasias relativas ao outro. A fantasia atrofia-se sem a negatividade dos limiares, sem a sua experiência. A crise atual da arte, e também da literatura, pode ser atribuída à crise da fantasia, ao desaparecimento do outro, quer dizer, à agonia de Eros.

As vedações ou muros das fronteiras que hoje se erigem já não excitam a fantasia, porque não geram o outro. Antes, atravessam de um extremo a outro o inferno do igual, que segue somente as leis económicas que separam os ricos dos pobres. É o capital que produz esses novos limites. Mas o dinheiro, em princípio, torna tudo igual. Nivela diferenças essenciais. Os limites como elementos de separação e de exclusão eliminar as fantasias relativas ao outro. Não são limiares ou passagens que conduzam a outro lugar.’ (p. 47)

 

‘Não deve confundir-se o Eros com o desejo (epithymia). É superior não só ao desejo, mas também ao Thymos. Incita-o a produzir belas ações. O Thymos é o lugar onde pode haver contacto entre Eros e política. Mas a política atual, que, além de desprovida de coragem, se desenvolve por completo sem Eros, atrofia-se e transforma-se em mero trabalho. O neoliberalismo leva a cabo uma despolitização da sociedade, na qual a substituição do Eros pela sexualidade e pela pornografia desempenha uma importante função. A sua base é o desejo (epithymia). Numa sociedade do cansaço, com sujeitos do rendimento isolados em si mesmos, o ânimo também se atrofia por completo. Torna-se impossível uma ação comum, impossível um nós.’ (p. 50)

 

‘A pornografia […] aumenta a dose narcísica do eu. Em contrapartida, o amor como acontecimento, como ‘cena do dois’, des-habitua e reduz o narcisismo. Produz uma ‘rutura’, uma ‘perfuração’ na ordem do habitual e do igual’. (p. 52)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

 

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