quarta-feira, agosto 13, 2025

'Os Sete Dias da Criação' |4| Luís M. P. Silva 'O primeiro dia: a luz!'

 

(‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião)
Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*

Consideremos as etapas anteriores desta nossa reflexão como um autêntico ‘preâmbulo’. ‘Preambulare’ significa, literalmente, ‘antes de começar a andar’… Preparámo-nos para andar, para caminhar.

É hora de andar!

O preâmbulo antecipou o primeiro momento do nosso caminho. A luz, primeiro fruto do ato criador, é particularmente simbólica e significativa para o que aqui nos traz.

Diz o autor bíblico[1]:

«3*Deus disse: «Faça-se a luz.» E a luz foi feita. 4Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. 5*Deus chamou dia à luz, e às trevas, noite. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o primeiro dia.»

Vale a pena, antes de começar a deixar que o texto ‘fale’ connosco, reparar num detalhe intrigante. Diz o autor que ‘surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o primeiro dia.’ Sempre me intrigou esta sequência.

‘Uma tarde e, depois, a manhã?’

Sim, é a lógica judaica de organização do tempo. O dia começa com o pôr-do-sol. É por isso que o sábado começa na sexta-feira, com o pôr-do-sol, e, pela morte de Jesus, o seu enterramento teve de ser precipitado, porque se avizinhava o fim daquele dia e, com o pôr-do-sol, o início do Sábado da Páscoa, que ‘era um grande dia’ (Jo 19,31)

Regressemos, então, ao que este excerto nos evidencia.

Sublinhemos o simbolismo que radica neste primeiro ato criador. Deus começa a Sua ação com a ‘luz’. Bem certo que uma abordagem concordista[2] da Bíblia vislumbra neste ato a confirmação de que o início da criação se opera por uma ‘grande explosão’, como que subscrevendo a teoria primeiramente sustentada pelo Pe. Georges Lemaître e cunhada como ‘big bang’, pelos seus opositores, entre os quais se destacava, então, Fred Hoyle, defensor de um universo estacionário.

Sigo outra linha…

É simbólico que a luz seja o primeiro ‘fruto’ criado.

É que o autor bíblico tem o cuidado de registar que esta é ‘separada das trevas’ (estas não são fruto do Criador. São uma mera ‘ausência’ da luz que, essa sim, é fruto criado! Santo Agostinho explorará esta constatação para a sua reflexão sobre o mal enquanto ausência do bem. O bem, sim, é fruto de Deus. O mal, enquanto insuficiência do bem, é mera ausência e, por isso, não carece de um criador…).

Mas o autor bíblico acrescenta mais um detalhe que ganha significado quando comparamos o texto bíblico com os textos contemporâneos de então e que marcavam as cosmogonias (as teorias explicativas sobre a origem do mundo) desse tempo. O autor bíblico sublinha que ‘Deus viu que a luz era boa’. A bondade da criação é uma nota específica do texto bíblico. Contrasta, de forma flagrante e nunca sobejamente recordada, com as visões de então (e, apetece dizer, com muitas leituras ainda hoje presentes…). Na visão bíblica, o mundo não é intrinsecamente mau. O mundo, enquanto fruto da ação de Deus, é desejado como bom, é reconhecido como bom.

Mas, e que nos diz de ainda mais relevante o facto de ser a luz o primeiro ato criador?

A luz sempre foi, ao longo dos tempos, sinónimo de bem, verdade, sentido, horizonte, conhecimento.

Acrescentemos, para densificar esta última nota, que o autor bíblico refere todos os atos de criação de Deus como resultando da eficácia da Sua Palavra.

O autor afirma: ‘Deus disse: «Faça-se a luz.»’

E a luz foi feita.

Não é um demiurgo que realiza o mundo, que o concretiza. É a própria Palavra que, na sua eficácia, opera o ato.

Há uma intrínseca ligação entre ‘Palavra’ e ‘Criação’, seja, enquanto ‘ato’ (o ato de criar), seja enquanto fruto (a obra criada), o que coloca todo o mundo em estreita ligação à verdade.

Para percebermos o alcance disto, socorramo-nos do que os gregos diziam sobre a verdade.

Para os gregos, a verdade podia ser pensada em três registos: como ‘orthótês’ (‘coerência), como ‘ousia’ (como a ‘verdade da coisa em si’) e como ‘alêtheia’ (a verdade no intelecto, entendida como ‘desvelamento’, como ‘não esquecimento’).

O que importa desta brevíssima síntese?

Esta síntese permite-nos ver que a verdade, como dizia S. Tomás é, bem certo, ‘a adequação entre objeto e entendimento’ (Suma Teológica (Ia, q. 16, a. 1, sol.), em que subentendem as demais implicações de ‘verdade’, mas que a história virá a explicitar mais claramente.

A verdade deverá, sempre, naturalmente, dizer-se em relação ao sujeito que conhece, mas deverão supor-se as outras duas dimensões: a verdade da coisa em si e a verdade desta coisa em relação ao que Deus quer dela.

Parece subtil, mas desdobremos a ideia.

A verdade deve reconhecer-se ao pensamento que reflete sobre a realidade. Certamente! E tal, num contexto de uma reflexão como a que estamos a fazer (em que ciência e religião se interrogam sobre o mundo, é particularmente implicativo…). O pensamento, para ser válido, tem de ser verdadeiro e, como dizia São Tomás, adequar-se à realidade.

Mas a própria realidade é, isto é, existe como um algo concreto. O sujeito que pensa, que conhece, interroga-se sobre o mundo em si. Não sobre criações mentais sem respaldo na realidade.

Resulta daqui um desafio de ‘regressar à realidade’ (Quantas implicações para os diversos âmbitos do saber que, fechados hermeticamente em si, se vão afastando do mundo, criando ideologias…).

Mas há um outro desafio: o de a própria realidade ser de acordo com o que Deus pretende para ela.

Aplicando ao ser humano, é visível a consequência disto… Ser-se humano é corresponder à humanidade desejada por Deus. O próprio S. Tomás tem isto em conta ao falar do dever de corresponder ao ‘entendimento de Deus’.

Vincar, como afirmava o autor bíblico, que ‘Deus disse… e foi feita’ é vincar que a natureza das coisas realiza-se e fá-las verdadeiras se elas corresponderem ao que Deus quis e quer que elas sejam…

Assegurada a ‘luz’, iluminados pela ‘Verdade’, prossigamos, nas próximas etapas, os ‘dias da criação’… ‘Desvelando’, levantando o véu de trevas que sempre tenta abater-se sobre a realidade, sobre a identidade da realidade e sobre o discurso acerca da mesma realidade.


[1] Sigo a tradução de https://www.paroquias.org/biblia/

[2] O diálogo entre ciência e religião pode operar-se de muitos modos. No que respeita à leitura do que deva recolher-se da leitura bíblica, muitos são os que a interpretam procurando confirmar, na letra do texto, o que as ciências vão estabilizando como saber comummente aceite pela comunidade científica. A esta leitura que coloca em ‘concordância’ a letra da Bíblia com as teorias científicas designa-se como ‘concordismo’.

Defendo, porém, que outra deva ser a leitura. À Bíblia não devem fazer-se as perguntas a que a ciência pretende responder. Outro é o objetivo dos textos bíblicos. Como sintetizava, sabiamente, Galileu, não deveremos perguntar-nos, a partir da Bíblia, ‘como’ é o céu, mas sim como se vai ‘para’ o Céu. A Bíblia é a história de Deus com os Homens e, por isso, narra-nos o olhar de Deus sobre o sentido da História e sobre o sentido do agir humano.


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Imagem de Enrique por Pixabay

 

'Os Sete Dias da Criação' |3| Luís M. P. Silva: 3 – 'Continuando antes do primeiro dia… Como se construiu a ‘fake’ de que a Idade Média acreditara na planura da Terra…'

 

(‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião)
Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*

Quem nos conta a origem da ‘fake new’ sobre a ‘fé’ da Idade Média na planura da Terra, com o detalhe que não desenvolveremos aqui, é Jeffrey Burton Russell, professor da Universidade de Califórnia, no seu livro Inventing the flat Earth: Columbus and modern historians, a que chegámos pela mão de Jorge Buescu.

Importa, desde já, clarificar que, na Idade Média, houve dois autores que defenderam a ideia da Terra plana: Lactâncio (245-325; Luís Filipe Thomaz indica as datas de c. 250-317) e Cosme Indicopleustes (que viveu no tempo de Justiniano (reinou entre 527 e 565). São, porém, autores menores, sendo que Lactâncio só é descoberto pelos renascentistas pela sua retórica (nos séculos XV e XVI) e Cosme Indicopleustes só é traduzido para latim em 1706 (muito tempo, portanto, depois de qualquer possibilidade de exercer influência nos decisores desta discussão…)[1].

Então, como compreender como aqui chegámos?

Russell descreve 4 momentos, a partir de inícios do século XIX, determinantes para a criação deste mito.

Antes de os enumerar, constatemos, porém, que estamos no rescaldo da Revolução da Francesa e em pleno contexto do iluminismo, que consideravam, por um lado, a primeira, que o passado associado à Igreja era período tenebroso e que havia que centrar tudo, de acordo com o segundo, o Iluminismo, já não na fé, tomada como obscura, mas sim na Razão, entendida como a verdadeira fonte da luz… Em contraste, o passado associado ao cristianismo, o período entre o final da Idade Antiga e o início da Idade moderna, passaria a ser designado como ‘idade média’ (a que fica no ‘meio’) e considerada como ‘idade de trevas’. Edward Gibbon, na sua obra de grande fôlego, ‘Declínio e Queda do Império Romano, obra de 1788, no fulgor deste espírito iluminista, refere-se a ‘as trevas da Idade Média’[2].

Ainda hoje, esta é a visão. Não é, por isso, fortuito que os historiadores que, honestamente, olham para este período, estejam a tentar reabilitá-lo, reconhecendo-o, como diz Seb Falk, professor da Universidade de Cambridge, como ‘a verdadeira idade das luzes’. Mas um pré-conceito, lançado sobre um ‘inimigo’, demora a ser desmontado, se é que o será, algum dia!...

Ora, como chegámos, de facto, à criação de um tal mito que deturpou o que era óbvio (que os autores lidos e seguidos, na Idade Média, defendiam a esfericidade da Terra a que as decisões mais determinantes dos impérios de então tinham sido tomadas com este pressuposto), sem que se tenha contestado?

Como dizíamos, acima, esta é uma ‘tragédia’ em quatro atos.

No primeiro, há um romance da autoria de Washington Irving (1783-1859) que ficciona, no seu História da vida e Viagens de Cristóvão Colombo, publicado em 1828, todo um enredo em que Cristóvão Colombo tem de enfrentar o obscurantismo inquisitorial, convicto da planura da Terra.

Mas, neste primeiro ato, estamos perante um romance…

O assunto ganha outros contornos quando esta tese que, aqui, era literária, passa a ser defendida, em letra de artigo com pretensões científicas, pela pena de um reconhecido geógrafo e eminente cientista de então, Antoine-Jean Letronne (1787-1848). Em 1834, publica ‘Sobre as opiniões cosmográficas dos padres da Igreja’, onde branqueia (não menos obscurantisticamente do que os ‘tenebrosos medievais’!) a história verdadeira, e considera que são mais relevantes Lactâncio e Cosme Indicopleustes do que o que, de facto, são, vincando que até Colombro e Magalhães, se acreditava na planura da terra.

O terceiro ato tem em cena um outro livro, desta feita de um professor de Biologia e Química da Universidade de Nova Iorque, John Draper que, no calor da discussão sobre a relação entre ciência e religião, afirma, em ‘História do conflito entre Religião e Ciência’ (1873) que as universidade medievais negavam a esfericidade da Terra. Observa Jorge Buescu (p. 179) que esta obra teve 50 edições nos Estados Unidos, 21 no Reino Unido, tendo sido traduzida para todo o mundo. O impacto não podia deixar de se esperar e o resultado está à vista de todos. Mesmo os que não lemos esta obra continuamos, mais de 100 anos depois, a defende a mentira ali veiculada…

Falta o quarto ato…

Em 1896, Andrew DIckson White (1832-1918) retoma a mesma tese, confere a Cosme Indicopleustes méritos e reconhecimentos que não tem, definindo-o como ‘típico e influente’, e sustenta que a maioria (já vimos que é falso) dos padres da Igreja tinha a opinião contrária a Agostinho, Orígenes, Isidoro de Sevilha, Beda, o venerável, que ele reconhece que defendiam a esfericidade. A mentira não podia ser maior e obviamente contraditória, pois qualquer leitura honesta constataria que os desconhecidos Cosme Indicopleustes e Lactâncio não podem ter tido maior influência do que a de Agostinho, Orígenes ou, ainda que não citado nesta última lista, São Tomás.

White conseguiu uma influência que suplantou a de Draper, através da Universidade de Cornell que ele mesmo fundou…

Bem certo que, no contexto português, poderemos somar a esta história posterior à revolução francesa, a criação de uma ambiência defensora de um obscurantismo cristão que tem como momento de maior corolário o período pombalino e a sua campanha negra contra a Igreja, em geral, e os jesuítas, em particular.

Henrique Leitão, prémio Pessoa em 2014, em conferência proferida em Aveiro, em 2019[3], contou que o Marquês de Pombal, para poder desenvolver a sua campanha de perseguição aos Jesuítas, ordenou que fossem destruídos os inúmeros azulejos que, nas paredes da Universidade de Évora, apresentavam os diversos passos do tratado da Esfera e outros tratados astronómicos, pois não era enquadrável com a sua tese de que a Igreja era obscurantista, a existência de tais painéis, numa universidade coordenada por Jesuítas…

Estávamos na segunda metade do século XVIII:

Em inícios do século XXI, já com a experiência de desencontros que nos deveriam ter acordado para o dever de servir a verdade, sem pré-conceitos nem entrincheiramentos, continua o Marquês de Pombal a mandar picar os azulejos com que se tornaria óbvia a nossa mentira? E quem tem na mão a picareta com que se executa a sua demanda?

O nosso intuito é promover o encontro. Pousem-se, sobre a bancada, os martelos e picaretas e abramos, em conjunto, um ateliê de restauro. Os azulejos devem voltar a luzir e, com eles, a luz que não se faz, apenas, de razão iluminadora, pois qual lua, ela não é, ainda, a nascente e a fonte da luz: reflete-a, apenas. A autêntica demanda é a da verdade de que só, como lampejos, nos aproximamos, qual peregrinos…


Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes, Lisboa, Bertrand Editora, 2021.

Umberto Eco, Construir o inimigo e outros escritos ocasionais, Lisboa, Gradiva, 2011.

Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos, Lisboa, Gradiva, 2003.

Luís Filipe F. R. Thomaz, O drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer, Lisboa, Gradiva, 20192.

Tomás de Aquino, Suma de Teologia, Tomo I (Parte 1), Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2017.


[1] Cfr. Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos, pp. 173-174.

[2] Cfr. Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes, p. 21.

[3] Cfr. https://agencia.ecclesia.pt/portal/aveiro-ciencia-tecnologia-etica-e-cristianismo-encerram-o-ciclo-de-tertulias-a-quarta/


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

'Os Sete Dias da Criação' |2| Luís M. P. Silva: 'Ainda antes do primeiro dia… ‘A terra plana’: a ‘fake’ antes de todas as ‘fakes’'

 

(‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião)
Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*

Uma das maiores dificuldades no estabelecimento do diálogo é a superação dos pré-conceitos para com o outro.

No seu livro ‘construir o inimigo’, Umberto Eco chega a afirmar que ‘ter um inimigo é importante, não apenas para definir a nossa identidade, mas também para arranjarmos um obstáculo em relação ao qual seja medido o nosso sistema de valores, e para mostrar, no afronta-lo, o nosso valor. Portanto, quando o inimigo não existe, há que construí-lo.’ (Umberto Eco, Construir o inimigo e outros escritos ocasionais, p. 12) E acrescenta, ao longo das cerca de trinta páginas que constituem a conferência que abre este livro, que o inimigo é sempre ‘feio’, ‘malcheiroso’, ‘monstruoso’, ‘inferior’, ‘pouco inteligente’, etc.. O inimigo, enfim, nunca é um de nós…

Parece uma inevitabilidade com que, porém, não me identifico. Defendo, desde há muito, que não nos definimos pela competição, mas, antes, pela cooperação que nos permite fazer render os talentos de acordo com uma fórmula matemática de soma criativa: 1+1 não é igual a 2, mas a 3 ou 4 ou 5 ou muito mais.

Quantas vezes, a soma da criatividade de duas pessoas ultrapassa tudo o que ambas puderam algum dia imaginar!

Não tem sido, infelizmente, imune a esta constatação de Eco (que ele pretende que seja intransponível, mas a que tentaremos não nos render…) a história da relação entre a ciência e a religião.

E conta-se entre as mais significativas histórias dessa narrativa de encontros e desencontros, a que nos acompanhará, ao longo desta etapa da nossa reflexão.

Era lugar-comum, no tempo da minha formação, enquanto adolescente e jovem, a afirmação de que a Idade Média acreditara na terra como sendo plana.

Acrescentava-se, inclusive, para fundamentar esta convicção, a ideia de que Cristóvão Colombo não fora financiado pela corte portuguesa por nela vigorar esta ideia, e que fora Fernão de Magalhães a demonstrar a condição esférica da Terra.

A tese tinha tudo para ser credível.

E somava-se às condições de veracidade a nossa acriticidade.

Curiosamente, porém, facilmente se constatará que algo não está bem nesta convicção quase universalmente difundida quando uma rápida visita à obra maior da teologia medieval (importante por repercutir o pensamento consolidado e, também, por ser a obra de maior referência então e posteriormente), a Summa Theologica, de São Tomás de Aquino, nos leva a encontrar, logo na primeira parte, questão 1, artigo 1, na resposta à objeção 2, o seguinte: ‘A diversos modos de conhecer, diversas ciências. Por exemplo, tanto o astrólogo [de acordo com o pensamento medieval, o termo ainda designa o astrónomo] como o físico podem concluir que a terra é redonda. Mas enquanto o astrólogo o deduz por algo abstrato, o físico fá-lo por algo concreto, a matéria.’ [E prossegue, debatendo questões de epistemologia, aliás muito oportunas para a reflexão que aqui nos traz, a saber, a da legitimidade da autonomia das ciências e a da sua complementaridade, na sua especificidade.]

Importa, porém, sublinhar a ‘espontaneidade’ com que o Aquinate se refere ao carácter ‘rotundo’ da terra, deixando pressupor que o assunto era lugar-comum.

Essa conclusão sai confirmada quando nos damos conta de que, como afirmam alguns dos historiadores da ciência que se têm dedicado a este tema (recordo, a título ilustrativo, alguns livros onde esta matéria é abordada: Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes; Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos; Luís Filipe F. R. Thomaz, O drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer, etc.), um dos tratados de astronomia mais estudados, durante a idade média, era o Tratado da Esfera, de João Sacrobosco, publicado em 1231 (segundo Seb Falk, p. 144; Jorge Buescu data-o de 1250). Como recorda Jorge Buescu, outros autores medievais tinham, inclusive, tratados que abordavam, já não apenas a questão da esfericidade da terra, mas a da sua rotação: Jean Buridan (1300-1358) e Nicolau Oresme (1320-1382). Acrescenta Jorge Buescu, no livro com que despertei, no já distante ano de 2003, para esta enorme ‘fake new’, que ‘Roger Bacon (1220-1292) afirmou a esfericidade da terra utilizando os argumentos clássicos (os mastros dos navios, as diferentes constelações visíveis em diferentes partes do mundo, o facto de a vista do cimo de uma montanha ser maior) [e que] o próprio Tratado da Esfera do matemático português Pedro Nunes, publicado em 1537, é uma tradução anotada e comentada do Tratado da Esfera de Sacrobosco.’ (Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos, p. 171).

Luis Filipe Thomaz pergunta, com graça: ‘se a Terra não fosse redonda, como poderia Colombo, trinta anos antes de Magalhães, intentar descobrir as Índias Orientais navegando para Ocidente? E como poderia o cosmógrafo florentino Paolo del Pozzo Toscanelli (1397-1482) ter sugerido o mesmo a D. Afonso V logo em 1474? E como poderia ter o papa Alexandre VI dividido a Terra em dois hemisférios, atribuindo um a Castela e outro a Portugal, se aquela não fosse esférica? E como se teria podido em Tordesilhas traçar uma linha de pólo a pólo sobre uma superfície plana? Porventura têm pólos os rectângulos?’ (Luís Filipe F. R. Thomaz, O drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer, pp 33-34) Explica, por seu turno, Jorge Buescu que a corte portuguesa não investiu em Colombo, não porque acreditasse na Terra como plano, mas sim porque, pelas suas contas (corretas, enquanto a corte espanhola as tinha erradas), a dimensão da Terra tornava um investimento sem retorno a aposta na chegada à Índia pelo Ocidente. A sorte de Colombo foi ter encontrado, no caminho, a desconhecida América… (cfr. Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos, pp. 176-177)

Perante isto, é óbvia a pergunta paradoxal: como chegámos aqui? Como pôde tornar-se uma convicção comum uma tal mentira? E, ainda pior: porque continua a fazer-se silêncio sobre tamanha falsidade?

Vê-lo-emos, no próximo passo da nossa reflexão…


Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes, Lisboa, Bertrand Editora, 2021.

Umberto Eco, Construir o inimigo e outros escritos ocasionais, Lisboa, Gradiva, 2011.

Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos, Lisboa, Gradiva, 2003.

Luís Filipe F. R. Thomaz, O drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer, Lisboa, Gradiva, 20192.

  1. Tomás de Aquino, Suma de Teologia, Tomo I (Parte 1), Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2017.

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Imagem de Ylanite Koppens por Pixabay

'Os Sete Dias da Criação' |1| Luís M. P. Silva: 'Antes, mesmo, do primeiro dia…'

 

(‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião)
Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*

‘Os sete dias da Criação’ evocam um tempo… (Para Santo Agostinho, não será grande o futuro para os que gastam o tempo a interrogar-se sobre o ‘antes do tempo’. Espero que não me aguarde tal destino por ousar desafiar a conclusão agostiniana…) Mas ouso pensar ‘os sete dias da Criação’, muito mais do que um tempo, como um lugar. O lugar utópico que, recuperando o termo criado por S. Tomás Moro, nos fala de um ‘não-lugar’ (utopia – u+topos – ‘não lugar’), pois sonho-o como uma oportunidade para promover um encontro tantas vezes difícil e – estou convencido! – sustentado em enormes equívocos.

‘Os sete dias da Criação’ querem definir-se como um areópago de diálogo entre a ciência e a religião, entre a religião e a ciência. Não a ciência, bem certo, como a pensavam os pré-modernos, que a entendiam como ‘scientia’, sabedoria e saber sistematizado, de forma dedutiva, mas como, com a modernidade, a passámos a pensar (talvez nos venha a merecer posterior discussão esta matéria, mas, para já, bastemo-nos com o conceito moderno…). E não, também, toda a religião, mas a que, enquanto cristãos, se pensa a si mesma como ‘releitura’ e ‘religação’ assente no pressuposto de que, ‘no princípio era o «lógos»’. Não, por isso, uma religião emocionalmente definida, mas que se faz da profunda ligação à racionalidade, não à maneira racionalista, mas no pressuposto de que o ser humano é racional e relacional. Uma razão, por isso, intrinsecamente definida como ‘relação’. Uma razão marcada pela historicidade e pela encarnação. Não uma razão desencarnada.

Dizia, acima, que muitos dos desencontros entre ciência (à maneira antes descrita) e a religião do Verbo encarnado se sustentam em equívocos que, por razões específicas e concretamente observáveis, se tornaram duráveis e, em alguns casos, ainda vigentes.

Veja-se como continua a ser considerada como válida a convicção de que o cristianismo esteja de costas voltadas para com a ciência. ‘Não tivemos nós a história de Galileu?’ (Que alguns chegam a ‘mandar queimar na fogueira pela Inquisição’, levando à consumação algo que não se pode confirmar pela História…). ‘Ou a história de Darwin e a sua recusa pela Igreja Católica?’ (transferindo para o continente uma discussão que foi verdadeiramente quente, sim, mas em terras de Sua Majestade…). Ou, por fim, ‘não temos a cereja no topo do bolo que é a tese de que o universo começou com um ‘Big Bang’?’, omitindo-se que foi um padre o primeiro a formular a hipótese de o Universo ter começado com uma densa e singular concentração de energia, professor na universidade de Lovaina e amigo de Einstein, Georges Lemaître.

Os equívocos somam-se, de parte a parte, e a estes acrescentam-se, bem certo, também conceções conflituantes. John Haught, um prolífico autor destas matérias (em português, está traduzido um dos mais interessantes sobre estas ‘pontes’, escrito numa linguagem acessível e recomendável para todas as gerações, mas particularmente para as mais jovens: ‘Criação e evolucionismo em 101 perguntas e respostas, Gradiva’) analisa, no seu ‘ciência e fé: uma nova introdução, editora Sal Terrae’, as três mais posições fundamentais sobre este assunto: a do conflito, a do contraste e a da convergência.

Tomarei partido pela terceira destas, ainda que deva sublinhar que, por convergência não deverá entender-se uma qualquer matização do ‘concordismo’, que procura na ciência as confirmações para o que uma leitura literalista dos textos sagrados conclui. Antes, deverá entender-se como a posição que pressupõe estratos na realidade, legíveis diversamente, de acordo com o nível ou estrato em que se está, mas sem que tal signifique a existência de várias verdades, como que revisitando os erros do averroísmo. Antes, a convergência dá como pressuposto que, no que for matéria comum, não poderá haver contradição.

Para tal ser possível, a atitude, de parte a parte, deverá ser a da boa-fé e a da disponibilidade para o autêntico diálogo, pressupondo, sempre, que, para haver diálogo, é necessário verificarem-se duas condições coexistentes: duas identidades (distinção) disponíveis para o encontro (convergência). Sem distinção, há monólogo; sem convergência, há conflito e imposição da verdade ao outro.

A este propósito, evoque-se a fórmula encontrada pela Igreja Católica para assegurar, por um lado, a presença da verdade, mas sem que tal implique a recusa de verdade no caminho percorrido por outras vias. Evocando a ideia da presença de ‘sementes do Verbo’ em outras experiências religiosas e, particularmente, nas comunidades cristãs não católicas, a Constituição Dogmática ‘Lumen Gentium’, no seu número 8, refere que ‘esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como sociedade, subsiste na Igreja Católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em união com ele, embora, fora da sua comunidade, se encontrem muitos elementos de santificação e de verdade, os quais, por serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica.’

Esta ideia de que a verdade ‘subsiste na Igreja Católica, embora fora da sua comunidade se encontrem elementos de santificação e de verdade’, assegura, por um lado, que não se redunde num relativismo, mas sem que tal comporte a legitimação de uma qualquer imposição ou, no limite, de uma recusa de acolhimento dos elementos de verdade presentes no outro.

Uma tal abordagem coloca-nos em atitude de genuínos peregrinos da Verdade. Wolfhart Pannenberg, por muitos considerado o mais católico dos teólogos protestantes, ao falar da condição proléptica da realidade, afirmando que, no concreto da História, se antecipam lampejos do sentido definitivo, enuncia, precisamente, esta tensão entre os escolhos do relativismo (ao afirmar a ‘Verdade’ antecipada) e o do objetivismo absolutizante (ao falar da condição proléptica da verdade aqui antecipada…).

Será entre estes Cila e Caríbdis (os dois mostrengos entre os quais teve de passar Ulisses, na sua viagem de regresso a Ítaca) que tentaremos navegar…

 


Bibliografia:

John F. Haught, Ciencia y fe: una nueva introducción, Madrid/Maliaño, Universid Pontificia Comillas/Sal Terrae, 2018.

John F. Haught, Criação e evolucionismo em 101 perguntas e respostas, Lisboa, Gradiva, 2009.

Dominique Lambert, Ciencia y fe en el padre del Big Bang, Georges Lemaître, Madrid/Maliaño, Universid Pontificia Comillas/Sal Terrae, 2015.

Luís M. P. Silva, Teologia, Ciência e Verdade: Fundamentos para uma definição do estatuto científico da Teologia, segundo W. Pannenberg, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2004.

Ronald L. Numbers (org.), Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião, Lisboa, Gradiva, 2012.


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Imagem de Andres Nassar por Pixabay

sábado, agosto 09, 2025

Luís Manuel Pereira da Silva | Hoje!

 

Escrevo estas linhas na tarde de 9 de agosto de 2025.

Acabo de ver, com o meu filho João, um filme de que me tinham falado: ‘uma vida escondida’, de Terrence Mallick.

Uma obra baseada em história verdadeira.

Ainda estou atónito com a coincidência que revelarei, no final…

‘Uma vida escondida’ retrata a história de um homem singular, uma história dura. Duríssima!

Um homem simples, com uma vida simples e um amor simples, é invadido pela complexidade da guerra, a II Guerra, e o absurdo de um regime que todos quer submeter.

Franz Jägenstätter é um homem que sabe onde está o norte e que a Voz que para ele aponta fala à consciência. É a essa Voz que obedece e a mais nenhuma.

Quando o regime exige lealdade a Hitler, Franz recusa.

E não apenas uma vez, ou duas, ou três… Sempre!

Nem face à possibilidade de tudo perder, inclusive perante a certeza de que será esquecido (são diversas as vozes de anónimos uniformizados que lhe sussurram que jamais será lembrado e que ninguém reconhecerá, algum dia, que ele existiu e que ousou opor-se ao regime. A única lembrança que lhe asseguram e repetem, vezes sem conta, é a de vir a ser esquecido.)...

Franz não vacila.

Não vacila perante o silêncio, o silenciamento, as múltiplas narrativas que lhe falam do homem da cartola que decapita os desertores, ou, mesmo, a do advogado que lhe é disponibilizado, apenas interessado nos riscos para a sua carreira de ter acompanhado um homem que ousou enfrentar Hitler. Mas nem Hitler saberá dele, sequer.

Somos assaltados pelo desejo de nos somarmos a estas vozes e instarmos Franz a desistir. Somaríamos, por isso, solidão à que ele enfrenta.

Na aldeia em que permanecem a mulher, a mãe, as três filhinhas, todos as abandonam. Todos condenam a objeção de Franz, considerando-a mera teimosia de um louco.

Nas cenas finais, a mulher, Fani, uma mulher gigante, que nutre por ele um amor simples e denso, fiel, permanente, inabalável, visita-o, quando chega a sentença final – condenação à morte por decapitação. Na cena, demorada e envolvente, diz-lhe: ‘faz o que é correto’.

Nem o padre que o aconselha, neste momento derradeiro, seu pároco que acompanhara Fani, ousara destoar das outras vozes. Mas sabemos que o exemplo de Franz o ‘converteu’ e fez dele um outro opositor ativo ao regime.

As últimas palavras do filme são de Fani e falam de uma esperança inabalável que os habita aos dois, mesmo após a morte dele, e que, por isso, os une para além da mesma morte.

Enquanto ouvimos o lânguido violino de ‘Hope’, obra de James Newton Howard, Fani assegura a Franz, a quem dirige as derradeiras palavras faladas: ‘Franz, encontrar-te-ei nas montanhas’, lugar onde Deus sempre se revela e nos alimenta a esperança.

Ao som de ‘esperança’, o filme termina com George Elliot: ‘pois as melhorias do mundo dependem em parte de atos que não constam da história; e se as coisas não estão tão más para ti e para mim como poderiam estar, isso deve-se em parte àqueles que viveram fielmente uma vida escondida e que repousam agora em túmulos que ninguém visita.’

O de Franz Jägenstätter foi pouco visitado, durante os primeiros anos, tempos amargos para a sua família que, até 1950, viu recusado qualquer apoio do Estado.

É, porém, hoje, reconhecido pela Igreja Católica como beato (a celebração da sua beatificação foi presidida pelo nosso cardeal D. José Saraiva Martins), sendo 21 de maio o seu dia litúrgico (dia do seu batismo).

Foi executado em 9 de agosto de 1943. 9 de agosto! Hoje! O dia em que me decidi a ver o filme ‘uma vida escondida’, dois dias, apenas, depois de ter lido ‘ a lenda do santo bêbedo’, uma das mais relevantes obras de Joseph Roth, um judeu que antecipou o que traria o regime nazi (morreu em 1939, antes ainda do início da II Guerra), e em que se conta a história de um bom homem, mas bêbedo, a quem, por uma sucessão de pequenas coincidências, Deus vai realizando pequenos milagres até ao do desfecho da sua vida, na pequena capela de Santa Teresa cuja visita desejara mas adiara, sucessivamente. Leitura a que se sucedeu nova coincidência quando uma amiga me deu a informação de que, neste mesmo dia 9 de agosto, seria exibido, no cinema Nimas, uma rara transposição deste livro para cinema.

Coincidências que são como que ‘deincidências’ (ouvi-o a bons amigos…), os lugares onde Deus faz convergir o efémero e o eterno, lugares do tempo densamente povoados de mensagem.

Franz Jägenstatter é padroeiro dos objetores de consciência: ‘Acredito não dever fazer o que é errado fazer’. Nas portas dos tribunais, hospitais, escolas, lugares da vida dos homens haveria de se colocar, em grossas placas, esta frase, perpetuando o seu legado de mártir pela verdade, a partir do hoje, das pequenas decisões quotidianas e simples de oposição à mentira e à falsidade…

Hoje! Esse lugar das deincidências… O ‘hoje’ de Lucas e a ‘hora’ do evangelho de S. João. O ‘hoje’ onde se levanta o véu que desvela a esperança. É no hoje da história que se prepara o que haveremos de tornar permanente por todo o sempre.

 Dos que sussurravam ao ouvido de Franz que haveria de ser esquecido já ninguém se lembra ou quer sequer lembrar.

De Franz (Jägenstätter) haveremos de falar por toda a eternidade.

quinta-feira, agosto 07, 2025

Sabes, leitor... | 20 | Marca de água do livro de Ignacio Caprile, 'A extinção dos filhos'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Ignacio Garcia de Leániz Caprile, La extinción de los hijos: el retorno del flautista de Hamelín, Madrid, Ediciones Cristiandad, 2023.

Ignacio de Leániz Caprile é um autor a conhecer. E, este livro, de tradução obrigatória para português…

 Ainda não traduzido em português (não consegui encontrar nenhum dos seus títulos nas editoras nacionais), tem já significativa obra publicada (entre livros e artigos) em diversas editoras e revistas espanholas: Laertes, Encuentro (2 livros), Diaz de Santos e Ediciones Cristiandad, revelando, neste livro com que acedi à sua escrita (‘A extinção dos filhos’) uma robusta cultura que conjuga conhecimento livresco com o aprofundado conhecimento da realidade contemporânea, repercutindo, na sua escrita, a sua experiência como académico (é professor associado na Universidade de Alcalá, Madrid, uma universidade com perto de 20 mil alunos), mas também o seu ‘respirar’ de consultor de empresas. Esta última nota é particularmente visível neste livro em que se articulam o imaginário literário e a concretude das propostas de natureza económica e empresarial. Caprile escreve bem e de forma transparente, com um pensamento lúcido, atento, não só à espuma do tempo, mas também ao ‘espírito’ que lhe subjaz. É desta matriz que se faz ‘a extinção dos filhos’, onde se cruzam as estatísticas e os dados demográficos com uma leitura em profundidade, interpretativa e solidamente analítica. As notas biográficas que cobrem a badana deste livro ajudam a perceber o ‘tapete’ que se tece, neste livro: Caprile tem-se dedicado, nos seus livros e nas colunas com que colabora, nos jornais El Mundo e El Debate, à reflexão sobre filosofia, antropologia, literatura, cinema e, naturalmente, a gestão dos recursos humanos, enquanto consultor de empresas. De tudo isso se fazem as páginas deste livro. Não apenas para servir um bom, robusto, diagnóstico, mas, também, para formular uma original proposta.

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

Li, de um fôlego, entre os dias 27 e 29 de abril de 2025, este belo ensaio de Ignacio Caprile. São 108 páginas, divididas em oito capítulos, antecedidos de uma introdução e de um epílogo escrito ‘a partir de Hamelin’. O título e o subtítulo são, só por si, já um programa… A capa ilustra, transparentemente, o seu conteúdo: sobre um berço vazio, caminha um ‘flautista de Hamelin’, em cujas vestes se visibilizam as crianças roubadas a Hamelin, seduzidas para a cova onde serão escondidas dos pais. Parece ouvir-se a sua maviosa melodia… O tom cinzento da capa soma-se à ilustração inequívoca. Mas, se de sombras se faz grande parte da reflexão, não se pense que este é um livro de desespero. É, como um despertador, a voz que nos acorda da noite, provocando o incómodo próprio do momento de se elevar do leito do repouso. O acordar perturba, mas a culpa não é do despertador, antes do estado letárgico de que custa sair…

Como com a lenda de Hamelin, popularizada pelos irmãos Grimm (curiosamente, autores que são ‘irmãos’… Uma curiosidade significativa, quando se denuncia a ideologia do ‘filho único’…), o flautista que ‘rouba’ as crianças sabem munir-se das melhores melodias para levar avante os sues intentos.

Ao longo das 108 páginas deste ensaio, Caprile percorre um caminho: socorre-se de dados estatísticos que evidenciam (lá, em Espanha, como cá…) um declínio demográfico. Declínio que deveria preocupar, mas que, como afirma, logo a abrir o livro, é matéria proibida, nas discussões políticas ocidentais, denunciando que já não estamos perante uma mera factualidade de natureza fatalista (devida a causas que ultrapassam a vontade humana), mas sim perante uma intencional ação, pretendida e cultivada.

Caprile encontra as suas raízes no cruzamento entre uma visão nihilista, intencionalmente cultivada [que prefere o ‘nada’ (de não gerar vida) ao ‘ser’ (que é um filho); Caprile cria o termo ‘nadificação’ para designar esta atitude de escolha do ‘nada’ em vez da ‘nidificação’, a criação do ninho para gerar vida…], e ideologias apocalípticas que, a pretexto de uma suposta sobrelotação humana do planeta, defendem a extinção da espécie humana, como meio para a cura de um hipotético mal, de que não só se convenceram os seus próprios defensores, como pretenderam (com bastante sucesso, aliás) associar, criando sentimentos de culpa, os demais humanos. Procriar é, nesta ideologia aqui denunciada, um novo ‘pecado original’ que lesa o planeta, devendo, no entender dos seus preconizadores, gerar sentimentos de culpa nos que ousam dar origem a novas vidas humanas…

É desta matriz que Caprile parte para, como que numa espiral que se vai desenovelando, constatar o papel que tem o aborto, nesta emergência e consolidação da ideologia que defende a diminuição da natalidade e, até, a extinção da espécie humana (Caprile não faz afirmações gratuitas: retenhamos na memória nomes como Corinne Maier, Paul Ehrlich ou Alan Weismann ou a designação das correntes que defendem o ‘voluntary childlessness’ ou a ‘voluntária extinção da espécie humana’…). Os números deveriam, mais uma vez, lá como cá, fazer pensar e incomodar, mas, como bem recorda, ‘infelizmente, acostumamo-nos ao aborto. As suas vítimas, reduzidas e tratadas como restos, como Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), não se veem, ficam no anonimato, sem nome com que figurar em algum registo.’ (p. 26)

Recordemos os números, para que falem por si (deixemos Caprile falar…):

‘Qualquer aproximação intelectual ao tema da extinção dos filhos que pretenda ser honrada não pode iludir o grave tema, o punctum dolens da realidade do aborto na nossa cultura atual.’ Da sua magnitude dão conta as cifras certamente calafriantes da sua prática: no nosso país [Espanha] o número de abortos voluntários não desce dos 90000 por ano. Na França, as cifras atingem mais de 222000; no Reino Unido, 215000. Nos Estados Unidos, com mais de 900000, uma em cada gravidez desemboca num aborto voluntário. Na China, desde que começou a política do filho único em 1979, registaram-se mais de 336 milhões de abortos legais, cifra que supera a população atual dos Estados Unidos. É ocioso dizer que se esses seres humanos tivessem chegado a nascer estaríamos perto da taxa de reposição comentada de 2,1 filhos por mulher e, ao menos no nosso país, os nascimentos estariam equilibrados com as mortes, dado que não se reflete no discurso político atual, como comprovava Blair.’ (p. 25-26)

Soma à análise sobre o contributo que o aborto tem neste destruir da vida humana e o seu robusto impacto numérico e de mentalidade na crise demográfica uma outra linha. No terceiro capítulo do ensaio, evidencia como está organizada a estratégia para que os fins sejam efetivos: os humanos são culpabilizados por terem filhos. Para a concretização deste desiderato, muito contribuíram livros como No kid. 40 boas razões para não ter filhos [1](2008) e O mundo sem nós (2007). Se havia dúvidas sobre a intencionalidade que assiste a este processo, este capítulo não as deixa sobreviver…

Do mesmo modo acontece com um facto observável: a proliferação dos animais de estimação e a (quase diretamente proporcional) inversão no número de filhos. Caprile não deixa escapar essa verificação: ‘Há uma clara correlação entre o declínio demográfico e o aumento exponencial da aquisição de animais domésticos, preferencialmente cães e gatos. De facto, no nosso país (Espanha) há 6265153 crianças menores de 14 anos, enquanto o número de animais de estimação registados ascende a 13 milhões no ano em que menos nascimentos temos tido desde há 80 anos.’ (p. 53)

A sua análise, em relação aos motivos, é particularmente interessante. É que um animal (aparentemente) não desilude; um filho pode desiludir. E esse é o risco de gerar filhos: eles são eles, não o que queremos que sejam. Um animal, enquanto ser previsível e entregue ao instinto, não tem condições para a autonomia e autodeterminação. Mas quanto de geneticamente ou educacionalmente nosso há num cão ou num gato? Quanto da depressão coletiva pode ficar a dever-se a esta morte do futuro que redunda de termos desistido de ter filhos para os substituir por animais que nada têm de nosso?

São interrogações implícitas na análise de Caprile que não podemos deixar de enfrentar…

Desta, o nosso autor encaminha-se para constatação com profundo impacto nas relações mais significativas da nossa condição: esta opção pela extinção da espécie humana está a conduzir-nos a uma sociedade sem passado nem futuro.

Obviamente, uma sociedade sem filhos é uma sociedade sem pai, sem mãe, sem irmãos e, naturalmente, sem avós. Curiosa e paradoxalmente, apesar de ser uma sociedade que conseguiu prolongar o tempo de vida, mas que está, por decisão sua, a impedir que esse prolongamento seja feito de humanidade e significado…

A sua análise encaminha-se, no penúltimo capítulo, para uma análise de natureza teológica, ao constatar que a recusa da paternidade, da filiação repercute a recusa da visão cristã de Deus, revelado como Pai e Filho… Uma observação a que o nosso autor acrescenta um desafio: o de que os discursos pastorais retomem o tema da procriação e da fecundidade como contributo para a realização humana, denunciando, aliás, que ‘o desaparecimento progressivo deste discurso nas próprias esferas religiosas nas últimas décadas, sem dúvida contribuiu com o seu silêncio para a grande encruzilhada em que nos encontramos.’ (p. 107-108) Um repto a ter em conta…

Por fim, não se bastando com uma análise pertinente que nos expõe um diagnóstico inquietante, Ignacio Leániz dedica o último capítulo à formulação de uma proposta que, tendo em conta o seu saber como consultor, tem em conta o modus cogitandi próprio do mundo empresarial: sugere que, dando como certo que a demografia se repercute na criatividade empresarial e nos modelos de organização das empresas, é preciso introduzir o critério do ‘contributo da empresa para a natalidade’ como um dos critérios de apreciação e financiamento destas…

Uma proposta a considerar…

Para que das covas onde foram escondidas as nossas crianças possam estas ser resgatadas das ‘garras sedutoras’ dos novos flautistas de Hamelin.

Ou já teremos sido todos associados à sua orquestra de sopros?

[1] Editado, em português, pela Guerra e Paz, 2008.

Na mesma página que o autor (citações)

‘«As civilizações morrem por suicídio, não por assassinato.»’ Arnold Toynbee (citado em epígrafe, p. 11)

‘Foi já há alguns anos. Li uma entrevista ao antigo primeiro-ministro britânico Tony Blair, na qual declarava que havia um tema proibido na alta política que, como um tabu, não se podia mencionar salvo em voz baixa nas cimeiras de chefes de Estado ocidentais. E se se tentava sacá-lo à colação, calavam-no educadamente. O assunto ocultado não era outro senão o do suicídio demográfico ocidental, que tanto alarmava já o político britânico convertido posteriormente ao catolicismo. Aquela confissão e denúncia sua pareceu-me muito significativa e, a partir daí, prestei mais atenção a esse fenómeno singular na História como é o da drástica queda da natalidade no nosso tempo. Esta queda supõe um facto extraordinário, já não só no Ocidente mas no mundo inteiro: cada vez mais gente renuncia, voluntária e premeditadamente, a ter filhos. Não só um ou dois descendentes, mas nenhum.’ (p. 11)

‘Voltando a Espanha, as projeções demográficas estabelecem que 40% dos jovens não terão filhos e meta não serão avós.’ (p. 13)

‘Um filho é a antítese do nada; ao nascerem homens e mulheres novos afasta-se de alguma maneira o não-ser […]’ (p. 17)

[…] o nosso século XX mudou profunda e sigilosamente aquele grande pressuposto compartilhado de que o ser – neste caso, um filho – é preferível e mais estimável do que o nada, a ausência de ser. E é este princípio imemoriável que combate e destrói Nietzsche na segunda metade do século XIX. O seu nihilismo tornar-se-á dono do mundo ocidental na centúria seguinte.’ (p. 18)

‘Na troca de sermos donos do nosso destino, e esta é a grande mutação ocorrida, unicamente nos fica, para além dos deveres e fins, uma ‘vocação para o nada’ que supõe o vazio que aparece quando os alicerces que sustentavam a nossa cultura ocidental se tornam ilusórios. Mas a nadificação do mundo e da vida humana atentam, como estamos a comprovar agora, contra o desejo e dever procriador, que ficam portanto em suspenso.’ (p. 18-19)

‘O que esta ideologia comporta não é só o empobrecimento da vida humana, mas também a ameaça da sua própria extinção.’ (p. 19)

‘Qualquer aproximação intelectual ao tema da extinção dos filhos que pretenda ser honrada não pode iludir o grave tema, o punctum dolens da realidade do aborto na nossa cultura atual.’ Da sua magnitude dão conta as cifras certamente calafriantes da sua prática: no nosso país [Espanha] o número de abortos voluntários não desce dos 90000 por ano. Na França, as cifras atingem mais de 222000; no Reino Unido, 215000. Nos Estados Unidos, com mais de 900000, uma em cada gravidez desemboca num aborto voluntário. Na China, desde que começou a política do filho único em 1979, registaram-se mais de 336 milhões de abortos legais, cifra que supera a população atual dos Estados Unidos. É ocioso dizer que se esses seres humanos tivessem chegado a nascer estaríamos perto da taxa de reposição comentada de 2,1 filhos por mulher e, ao menos no nosso país, os nascimentos estariam equilibrados com as mortes, dado que não se reflete no discurso político atual, como comprovava Blair.’ (p. 25-26)

‘Infelizmente, acostumamo-nos ao aborto. As suas vítimas, reduzidas e tratadas como restos, como Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), não se veem, ficam no anonimato, sem nome com que figurar em algum registo.’ (p. 26)

‘Em 2008 uma psicóloga e mãe francesa, Corinne Maier, escreveu um livro emblemático que não tardou a ser traduzido em mais de 15 idiomas: No kid. 40 boas razões para não ter filhos[1]. O dito manifesto de «boas razões» contrárias à natalidade deu lugar à expansão, no Ocidente, do movimento anglo-saxónico voluntary childlessness, «sem filhos voluntariamente», capitaneado por mulheres que tinham decidido não ter filhos. Maier destaca como uma poderosa razão para tal decisão a «pegada contaminante de carbono» que supõe a procriação, pegada que no nosso país (Espanha) supõe de três a quatro toneladas de CO2 por ano por pessoa.’ (p. 39)

‘A origem desta conceção podemos datá-la no aparecimento, em 1968, do livro de grande impacto The Population Bomb, do biólogo e divulgador Paul R. Ehrlich, onde se avançava o apocalipse ambiental e, portanto de toda a nossa civilização, se não se reduzissem drasticamente as taxas de fertilidade. Com o êxito estrondoso do livro, o termo «explosão demográfica», carregado de dramatismo nada inocente, passava ao acervo cultural do Ocidente. Pouco depois, o Club de Roma fez suas as teses de Ehrlich no seu famoso relatório de 1972, tão difundido em todos os meios, com a sua afirmação de que a Terra era finita e a população devia reduzir-se drasticamente. […] Mais recentemente, o bem-sucedido aparecimento em 2007 do livro de Alan Weisman O mundo sem nós torna visível na imaginação do leitor as vantagens ambientais, especialmente no ar, fauna e flora que o fim da humanidade constituiria para o planeta.

Ao abrigo desta nova dialética restritiva da nossa fertilidade, surgiu um novo conceito psíquico que dá nome a um forte sentimento associado: o da ecoansiedade entendida como uma inédita forma de ansiedade ligada à inquietação e angústia que nos produz no nosso mundo emocional o desgaste e risco ambiental. […] daqui surgiu nos nossos dias uma lei demográfica fundamental: quanto mais consciente estiver uma pessoa sobre o impacto ambiental, maior será o seu sentimento de culpa pela situação em que se encontra o planeta e de rejeição da humanidade; de tal maneira que para procurar evitar o peso desta culpa – como se fosse um novo pecado original -, não gerará filhos contaminantes em favor da natureza.’ (pp. 40-41)

‘Há uma clara correlação entre o declínio demográfico e o aumento exponencial da aquisição de animais domésticos, preferencialmente cães e gatos. De facto, no nosso país (Espanha) há 6265153 crianças menores de 14 anos, enquanto o número de animais de estimação registados ascende a 13 milhões no ano em que menos nascimentos temos tido desde há 80 anos.’ (p. 53)

‘O desaparecimento dos filhos parece ter ativado um mecanismo de substituição a favor do animal doméstico, que ocupa não só novos espaços públicos mas também que protagoniza a nossa esfera conversacional na rua e nos pequenos grupos.’ (p. 54)

‘A paternidade e maternidade aparecem diante da autonomia do animal de estimação como um dispêndio de grande quantidade de energia exigida dia e noite durante os primeiros anos da criança. Pelo contrário, o animal de companhia na sua suficiência tranquila sem prantos outorga-nos alívio, afeto e descanso. A quantidade de energia que nos exige é mínima em comparação com a do filho. Digamo-lo deste modo, o animal de estimação dá-me enquanto o filho me pede.’ (p. 56)

‘Um dos [efeitos antropológicos], e não menos, é o aumento exponencial do filho único, que comporta a extinção paulatina da figura do irmão e, portanto, da vivência biográfica do que a ‘irmandade’ supõe. […] Em 1975, o número de filhos por mulher, em Espanha, era de 2,8, o que supunha uma média de três descendentes por família. Hoje, o indicador de fecundidade em Espanha é de 1,19, o que implica famílias de filho único, que atingem já uma percentagem de 27,6%.’ (pp. 65-66)

‘O desaparecimento dos filhos comporta outra diminuição que também não se menciona. Sem eles, extingue-se também a figura dos avós, precisamente num momento histórico em que o papel do avô se pode exercer durante muitos anos, mercê do presente da longevidade que amplia as idades do homem.’ (p. 77)

‘[…] a crise atual da figura do pai, que explica em grande medida o atual desaparecimento dos filhos, é uma crise da própria ideia do Deus cristão, ou, para o dizer de outro modo, sinal da sua perda. Mas também é a crise da figura do filho, que já não consegue reconhecer a pré-existência e bondade do pai, muitas vezes ausente, replicação do esquecimento do Filho de Deus encarnado em Jesus Cristo.’ (p.90)

‘Face a tal declive demográfico que põe em questão o futuro dos modelos das empresas, talvez tenha chegado o momento de ampliar a sustentabilidade organizacional, incluindo nos critérios ESG (principalmente nos sociais) um tipo de «contributo para a sustentabilidade populacional» que ajude a corrigir a atual configuração da pirâmide demográfica, a gravidade da sua crise e que fixe metas e objetivos com vista à distante razão de reposição de 2,1 que assegure a sobrevivência. Recordemos a este propósito que o «S» de social do ESG inclui o impacto que uma determinada empresa tem no seu contexto social, na sua comunidade, e determina com os outros critérios a decisões finais dos investidores que se regem, cada vez mais pelo investimento sustentável e responsável (ISR de acordo com sigla em inglês).’ (p. 100)

‘No nosso passeio, deparamo-nos agora com a Bungelosenstrasse: a rua sem tambores. Conta a tradição que foi o último lugar por onde passou o flautista com as crianças a 26 de junho de 1284. Daí que nela não se possa tocar nenhum instrumento, nem cantar ou rir, em memória das crianças roubadas à cidade, como um luto perpétuo, que nos refere as perdas que supõe a extinção das crianças e as suas tristezas associadas. Hoje o Ocidente é uma imensa Bungelosenstrasse, sem rufar de tambores, silenciosa e inerte, que atravessa obscuramente uma das épocas Kali mortas, que nos ensino Ortega na sua conhecida alusão à mitologia hindu.’ (p. 106)

‘[…] não basta o desalento quando se trata da sobrevivência de uma civilização e talvez de toda a espécie humana, por mais que o desafio seja formidável. É necessário para isso inaugurar novos cursos de ação que reposicionem a natalidade no gonzo do Ocidente, que era até agora o eixo do mundo. Algumas ações que poderíamos iniciar bem poderiam começar por ser tomar consciência plena da gravidade da nossa crise demográfica e do que está em jogo, informar-se sobre a sua profundidade e alcance, e falar pelo menos em privado dela. […] Já apontámos no último capítulo possíveis ações que se podem implantar progressivamente no mundo empresarial. A principal, como já dissemos, seria incorporar a natalidade necessária no conjunto de critérios de sustentabilidade organizacional […].’ (pp. 106-107)

‘O desaparecimento progressivo deste discurso nas próprias esferas religiosas nas últimas décadas, sem dúvida contribuiu com o seu silêncio para a grande encruzilhada em que nos encontramos.’ (p. 107-108)

‘Entretanto, continuamos o passeio imaginário pela cidade alemã com o livro de contos dos irmãos Grimm entre mãos. Sentamo-nos junto ao Weser e relemos as suas páginas sobre o flautista e a sua lenda: elas referem-nos que as crianças de Hamelin desapareceram dentro de uma cova na montanha próxima da cidade, Poppenberg, que ao fundo divisamos para lá das muralhas. E acrescentam os autores irmãos de forma premonitória: «Esta cova ainda existe». Fechamos, pensativos, o livrito dos Grimm junto ao velho rio. Talvez tudo consista nessa precisa tarefa: descer à cova da nossa hipermodernidade e lançar cordas para recuperar as crianças perdidas, e repovoar assim o mundo minguante do Ocidente, enquanto prevenimos as consequências do músico inquietante que está a deixar tão desertos os nossos parques infantis, a cidade e nós mesmos.’ (p. 108)

[1] Editado, em português, pela Guerra e Paz, 2008.


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Foto recolhida do site das Ediciones Cristiandad

quarta-feira, julho 23, 2025

Alberto Ferreyra | Mystérios lusitanos [contos - texto e locução] | 14 | Mistério na fonte da Costa

 

Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)

Alberto Ferreyra*




É verão.

As ramadas que cobrem o caminho da Costa criam densas sombras que aliviam, levemente, o peso do calor que torna trôpegos os passos. J. e M. descem, entre conversas, o caminho que os levará ao Souto e à fonte por que anseiam, extenuados, após uma caminhada pelos carreiros da aldeia dos avós.

É a aldeia dos sonhos a que voltam, em cada verão, desejosos dos mistérios que aquelas vielas desvendam.

Param junto a um tanque onde uns girinos sobem e descem em danças irregulares. Distraídos, conversam sobre os nadas da vida…

M. dá uma cotovelada em J.

Avistara um vulto, um pouco adiante, na curva que antecede a ligeira descida para a fonte de cujas águas são proverbiais a frescura e leveza.

Sentado, debruçado sobre o cajado de sempre, com um cântaro de barro a seu lado, um homem, de rosto enrugado, parece de olhar perdido no infinito.

Não os viu. Repousando sobre um pequeno muro que limita a terra do Souto, mastiga, compassadamente, uma erva já meio seca.

Olha para a fonte.

Meneia, a espaços, a cabeça, fechando os olhos.

Volta a abri-los, como que desperto por uma ideia que o atordoa.

Está nisto longos minutos.

M. e J. apreciam, à distância.

O cântaro está vazio, mas não seco. Tivera água, entretanto despejada.

Após longos e demorados minutos, ergueu-se e afastou-se do lugar onde o viam M. e J.

J. ainda fez um gesto de quem pretendia chamar por ele, mas M. conteve-o.

Viram aquele desconhecido desaparecer, entre as sombras lançadas pelas ramadas, em direção à estrada que ladeia o largo vale.

Acordados daquele momento de torpor, M. e J. correram em direção ao assento onde descansara.

Esquecera-se do cântaro.

Ao pegar nele, M. viu que um resto de água se conservara no fundo.

Todo o exterior do cântaro estava humedecido, ao contrário do seu interior que parecia ressequido, mantendo humidade apenas onde se conservava aquele restinho de água.

M. estranhou aquele efeito.

- Já reparaste, J.? O cântaro está todo ele molhado, por fora, mas seco, no interior.

A curiosidade de M. não mais a deixou abandonar aquela observação. Fixou o olhar no fundo do recipiente. As águas, escassas, mas suficientes para criarem um efeito especular, num primeiro momento, refletiam o rosto que as via. Mas, ao manter o olhar atento, outras imagens ali se sucediam.

M. ficou intrigada.

Chamou J. que continuava a procurar ver por onde aquele homem incógnito se encaminhara. Também ele estava atónito. Parecia ter-se perdido entre os campos. Não conseguia vislumbrá-lo entre as ramagens e os verdes. Mas, também, aquele calor não convidava a grandes pensamentos! Talvez apenas a lentidão dos seus passos não acompanhasse a rapidez do olhar…

Encolheu os ombros, como que convencido com a sua conclusão.

M. acordou, entretanto, destes devaneios.

- Vê! Vê! Consegues encontrar o teu reflexo?

J. descortinara, num primeiro momento, os seus traços, que foram sendo substituídos, lentamente, por outras imagens.

- Vejo… Vejo-me. Sim, vejo-me. Mas, estranhamente, nem sempre com a mesma idade.

- Também me dei conta disso, J.. Vemo-nos, num primeiro momento, com o rosto que agora temos, mas, ao fim de uns segundos, as águas começam a refletir-nos com outra idade.

- Mas nem sempre reconheço as cenas que aqui aparecem…

- Intrigante. Muito intrigante, mesmo.

Sem perceber o que estavam a ver, desceram o que os separava da fonte da Costa e refrescaram-se.

O silêncio tomara conta das suas vozes.

Adivinhavam o reboliço que assaltara a mente do outro.

O jantar fizera-se num silêncio que deixara atónitos os pais. Não o percebiam, mas suspeitavam de noite de sobressalto.

A noite confirmou as dúvidas do jantar.

M. e J. não puseram olho. Mal a aurora se anunciou, levantaram-se e regressaram à fonte, pela fresquinha.

Levaram, consigo, o cântaro. A água, entretanto, secara e, com ela, as bordas de todo o cântaro.

Mas a inquietação que assomara aos seus espíritos não os deixava sossegados.

Pousaram o cântaro na direção do fio de água, distraindo o seu olhar com o cenário que os envolvia. Quando lhes parecera que a quantidade seria suficiente, pegaram no cântaro que, para sua surpresa, mantinha uma pequena reserva de água, no fundo, com as características que tinham visto, na véspera: o exterior, humedecido, e o interior, seco.

Voltaram a olhar.

As imagens que refletia repetiram o que já tinham visto. Num primeiro momento, os reflexos atuais; num segundo momento, os seus rostos, mas já sem a idade que agora tinham.

M. pensava…

Subitamente, abriu os olhos com um vigor que J. logo reconheceu.

- J., J., vê bem o que está a acontecer aqui.

- Estamos os dois, no dia em que a mãe nos perguntou se queríamos acompanhá-la a casa do Tio Pedro.

- E lembras-te do que aconteceu?

- Não fomos e, nesse dia, quando estávamos em casa, tentaram a arrombá-la. Como nos apercebemos, ligámos à polícia que prendeu os assaltantes.

- Isso mesmo. Agora, olha com atenção o que mostram as águas deste cântaro.

- Vejo-te a entrar no carro.

- Sim. E que mais?

- Eu também…

- Pois… E depois?

- A casa é assaltada sem que ali estejamos…

- Percebeste?

- Ainda não!

- Este cântaro, com a água desta fonte, permite-nos ver o que aconteceria se outra tivesse sido a nossa opção.

- Isso deixa-me perturbado. – Reconheceu J. – Não somos feitos de ‘ses’. Somos feitos de decisões e são elas que constroem a nossa vida e história.

- J., concordo contigo. Não podemos deixar que este cântaro abra uma fenda na história e nos leve ao território da incondição.

- ‘Incondição’! Tens cada uma, M.. Essa é digna de uma filósofa.

A admiração de J. foi interrompida pelo súbito e penetrante som do cântaro a desfazer-se em cacos contra as pedras salpicadas pela água da fonte. J. olhou, fixamente, M., que mantinha, na mão, o que restava de uma asa de barro, humedecida de água.

- Hoje, temos convite. Vamos jantar a casa do tio Pedro? – Perguntou a mãe a J. e M.*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
 
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se 'silêncio' ('mystério' alude à etimologia grega da palavra, que remete para o 'fazer silêncio', 'emudecer-se'...) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
 
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito 'branquinho', fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
 
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

quarta-feira, julho 09, 2025

Temos um problema com a liberdade

 Artigo publicado em https://diocese-aveiro.pt/cultura/luis-manuel-p-silva-temos-um-problema-com-a-liberdade/

 

Na discussão sobre a liberdade cruzam-se os maiores problemas da condição humana. Ela é, de facto, um elemento de charneira, um gonzo definidor da condição antropológica, o eixo em torno do qual giram os demais assuntos humanos.

É, por isso, importante que a definamos com precisão para que, pela sua condição fontal, dela não derivem ‘nados-mortos’ ou degenerescências que não pretendíamos.

Eis uma primeira constatação…

Mas somemos, a esta primeira constatação, uma segunda: não parecem restar dúvidas de que o modo como geramos os conceitos se repercute no modo como vivemos. É uma ideia que venho vincando, repetidamente e que aqui retomo, agora.

O modo como viveremos a liberdade será deveras condicionado pelo modo como a concebermos.

Mas poderá continuar a não ser claro o alcance deste axioma.

‘Não pensamos todos o mesmo sobre o que é liberdade? Não é a liberdade a condição de quem é livre?’

Parece óbvio, mas é-o tanto como uma petição de princípio. ‘Ser livre é a condição de quem participa da liberdade como a liberdade é a condição de quem é livre.’

E não saímos daqui.

A análise tem de ser mais fina.

A conceção de liberdade parece fazê-la derivar da ideia de aleatoriedade.

Nesta abordagem, a liberdade é a condição de um ser imprevisível.

Parece ser suficiente.

Rapidamente, porém, esbarrará com uma insuficiência: uma pedra que rola pela montanha é de rumo imprevisível mas não se ousaria designá-la como livre.

A aleatoriedade continua, por isso, a não ser suficiente.

Um olhar ainda mais fino constatará que a sua (da liberdade) atribuição deverá sê-lo, apenas, do ser humano e, apenas por analogia, aplicada a outros seres, mas com a consciência dos limites da opção.

Esta observação mais fina já nos auxilia na busca do que deveremos considerar como sendo ‘liberdade’. Será uma condição de que, em rigor, na história, só os humanos participam.

Aos animais e demais seres animados ou, ainda menos, aos seres não vivos, só por comparação poderá dizer-se ‘serem livres’.

Mas sabemos algo faltar para que a atribuição seja precisa.

Concentrados nos humanos, caberá, então, perceber de que falamos ao referir-nos à liberdade.

A etimologia poderá ajudar-nos.

É curioso que a palavra latina ‘liber’, com que se refere ‘homem livre’, sirva, simultaneamente, para ‘livro’, mas também para ideia de ‘homem honrado’, ‘homem nobre’. E, não menos interessante, a palavra ‘liberi’ refere-se a ‘filhos’. De qualquer modo, a palavra remete para ‘libra’, uma balança de dois braços.

O cruzamento destes dados etimológicos permite-nos constatar que a aleatoriedade não era, de modo algum, o elemento definidor da ideia de liberdade, para os latinos.

Também para os gregos, a ‘liberdade’, dita com a palavra ‘eleuthería’ remetia para a ideia de nobreza, generosidade.

O termo, numa e noutra culturas, remetia para a ideia de uma capacidade de se elevar, de se projetar para além de si mesmo (ideia que faço decorrer de ‘liberi’, ‘filhos’ – aqueles que nos repercutem no futuro…). A liberdade remetia, bem certo, para a ideia de independência, mas uma independência por se ser capaz de ‘equilibrar’ a ‘libra’, a balança. O homem nobre, o homem generoso é aquele que sabe, por si mesmo, equilibrar a balança, buscar determinar-se pela lei e não, simplesmente, ser o criador aleatório da mesma lei.

Aqui está o busílis da questão.

Uma certa modernidade (não toda a modernidade; defendo, aliás, que preservemos a modernidade evitando aquela que estou a denunciar e salvaguardando a autêntica modernidade…) confundiu ‘liberdade’ com ‘aleatoriedade’. E fez a pedra rolar, monte abaixo…

Essa confusão nasceu de uma deslocação do conceito de liberdade do âmbito em que ele sempre estivera – ser livre é deixar-se iluminar pela luz da verdade (vinda da razão e da fé; em grego, ‘verdade’ pode dizer-se com o termo ‘alêtheia’. Designo, por isso, esta conceção como ‘aletheísta’, sustentada na importância da iluminação da verdade.) – para um outro em que o que grassa é a aleatoriedade – a vontade. De facto, a vontade é indeterminada e indeterminável. A vontade tudo quer, tudo pensa poder e tudo pretende poder. Quem a deve iluminar e orientar é a luz da verdade.

Mas a tal linha moderna recusou essa ‘submissão’ da vontade.

E, ao recusá-lo, fê-lo com um outro custo. É que, enquanto a luz da verdade une os humanos que a buscam, comummente, criando um conceito de liberdade ‘comunitarista’ (somos livres enquanto seres intrinsecamente relacionais), a aleatoriedade da vontade é intrinsecamente individualista e solipsista – só o sujeito sabe, a cada momento, o que quer a sua vontade.

Esta última linha conceptual fechou os sujeitos, isolou-os. E, por consequência, fez dos outros ‘um inferno’, um estorvo que cabe limitar. Os sujeitos humanos, nesta conceção de liberdade, limitam-se uns aos outros, fazendo desta uma condição que acaba onde começa a condição livre do outro.

Por contraposição, a visão comunitarista presume que as liberdades não se anulam nem estorvam, mas, antes, projetam-se e realizam-se nos entrecruzar de umas com as outras.

Os sinais estão aí…

A eleuterologia de tipo voluntarista está a fechar-nos numa solidão em que apenas somos casualmente contemporâneos uns dos outros. Ninguém sabe quem é o outro e só o conhece se ele lhe permitir a entrada. Haveremos de chegar a não nos reconhecermos se tal não nos permitir cada ‘outro’.

A eleuterologia de tipo ‘aletheísta’ reconhece-nos intrinsecamente relacionais, geneticamente abertos aos outros e em condição inerentemente ‘indigente’ – nada somos sem o outro.

De que futuro falam as nossas escolhas de hoje?

Que humano resistirá à escolha que estamos a fazer de entre estas duas matrizes?

Levar-nos-á, monte abaixo, a pedra que fizeram rolar?

segunda-feira, julho 07, 2025

Sabes, leitor... | 19 | Marca de água do livro de Grégor Puppinck, 'Objeção de consciência e direitos humanos'

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Grégor Puppinck, Objeção de consciência e direitos humanos, Cascais, Princípia Editora, 2021.

Cheguei a Grégor Puppinck pela mão de Gabriele Kuby que o cita a partir de ‘Os direitos do homem desnaturado’, livro que será uma das minhas próximas leituras. ‘Desnaturado’ não tem, aqui, o sentido com que o utilizamos, coloquialmente, mas entendido como ‘desvinculado da sua natureza’, aludindo à ideia de um progressivo afastamento das leis em relação ao ‘direito natural’ e ao vínculo que as referências da natureza humana objetivamente nos apontam.

Gabriele Kuby refere-o no seu livro ‘a geração abandonada’, em que encontro uma mesma matriz que neste: são ambos livros corajosos e construídos com enorme coerência e lógica. Características que escasseiam, nestes tempos propensos a discursos de ‘enguia’, ambíguos e sem argumentação sólida e coerentemente sustentada. Não é assim nestes dois livros.

Com efeito, Grégor Puppinck, jurista e diretor do European Center fo Law and Justice (ECLJ), mostra-se um jurista corajoso, na senda do que vem sendo a sua atitude perante o rumo que o direito vem tomando, pela mão de legisladores que parecem ir fazendo declinar a sua função de manter a lei sob a tensão da busca do bem, deixando-o, antes, sucumbir à pressão de um individualismo que vai tornando a sociedade um espaço de convivência de mónadas. (Esta frase é minha, mas penso retratar, fielmente, a ideia de Puppinck).

Para isso vem alertando este eminente doutor em Direito, cujo reconhecimento tem superado fronteiras, sendo solicitado o seu contributo para a redação de pareceres a pedido de Estados ou organizações internacionais. A título de exemplo, recordo que este é o autor de parte da resolução assumida pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa sobre a ‘Salvaguarda dos direitos humanos em relação com a religião e as convicções, e proteção das comunidades religiosas da violência’, aprovada em 24 de abril de 2013 (tal é referido na nota 111 da página 66). Aliás, em nota publicada no ECLJ [https://eclj.org/writers/gregor-puppinck], é recordado que, ‘em 2016, foi nomeado membro do Painel de Peritos sobre Liberdade de Religião ou Crença da OSCE/ODIHR, cuja função é dar suporte aos Estados participantes da OSCE na implementação de seus compromissos sobre o direito à liberdade de religião ou crença’, e que recebeu diversos prémios, merecendo destaque o prémio ‘Humanisme Chrétien’, em 2016, pelo livro "A família, os direitos do Homem e a vida eterna’, também publicado na Princípia Editora, e o prémio ‘Anton Neuwirth’, em 2014, prémio que homenageia um destacado médico eslovaco (que viveu entre 1921 e 2004), que se insurgiu contra o totalitarismo comunista, tendo estado envolvido na célebre ‘revolução de veludo’ que conduziu à democracia a ‘Checoslováquia’ que veio a dividir-se em dois Estados: República Checa e Eslováquia.

São públicas e reconhecidas as suas intervenções, nos mais diversos areópagos, alertando para os riscos, para a coesão social, do progressivo relativismo que vai entranhando as legislações nacionais, a pretexto de reivindicações que, sob a capa da liberdade de pensamento, de consciência e de religião, expressam, afinal, conveniências pessoais. Mas há genuínas reivindicações de objeção de consciência e de liberdade de pensamento e religião.

É por esses e pela exigência de clarificar os conceitos que se torna incontornável a leitura destas páginas que, sucintamente, apresentaremos, de seguida.

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

A impressão que logo nos é deixada pela leitura das primeiras páginas do livro aqui em análise é a de que a questão é um verdadeiro nó górdio, nas sociedades contemporâneas. Dois grupos opostos tenderão a simplificar o assunto, arrumando-o, por um lado, sob a capa de que a lei positiva tudo determina (logo, ficando reduzido de sentido falar de objeção de consciência), ao mesmo tempo que os seus opositores radicais afirmarão que sempre e em qualquer circunstância, o sujeito individual deverá ver protegidos os seus interesses e opiniões.

É porque as tendências estão a ser ‘sugadas’ por estes dois remoinhos que a leitura deste livro se afigura como um quase ‘dever de consciência’.

Grégor Puppinck revela-nos, neste seu Objeção de consciência e direitos humanos, um pensamento muito bem articulado, claro, fino e profusamente ilustrado com casos e referências que fazem deste livro um ‘lugar’ a revisitar, vezes sem conta. Muitas são as citações de decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, da Comissão Europeias dos Direitos Humanos (extinta em 1999), do Comité Europeu dos Direitos Sociais e de outras jurisdições.

Perante as diversas decisões descritas, Puppinck evidencia uma tripla preocupação: a rigorosa precisão dos conceitos (como jurista de elevado quilate, define, com clareza, os diversos conceitos em jogo, com erudição que não é, contudo, resultante de intenção de evidenciar atitude de academismo hermético, mas reveladora de uma preocupação em efetivamente clarificar o assunto em análise, antecipando questões e buscando respostas que o leitor sente emergirem em profundo respeito para consigo, como se o autor estivesse em diálogo vivo com a sua leitura), a busca da coesão interna do discurso, denunciando, quando considera necessário, incoerências nas próprias decisões internacionais e, por fim, um registo proléptico, antecipador das consequências das opções tomadas pelas instâncias internacionais nas suas decisões.

À luz deste último vetor que acabamos de enunciar, registe-se que se constata uma crítica omnipresente, neste livro, à tendência relativista, subjetivista de influência liberalizante, seguida na argumentação adotada por muita da jurisprudência internacional. Com efeito, Puppinck, à medida que vai desenvolvendo o seu pensamento, deixa transparecer que a jurisprudência internacional foi deixando cair para segundo plano uma fundamentação assente no reconhecimento de um bem objetivo, que o sujeito valora e reconhece, respeitando a sua anterioridade (do bem objetivo em relação ao próprio sujeito), tendendo a fundamentar as suas decisões no dever de garantir a convivialidade e o pluralismo, favorecendo um progressivo relativismo que comporta o risco de incorrer na arbitrariedade.

É a esta luz que, à medida que progride na sua análise, Puppinck vai evidenciando os riscos de se ir optando por uma fundamentação que se desloca do âmbito da objetividade dos bens em proteção para a subjectivização dos fundamentos, levando-o a defender que ‘a transformação cultural ocorrida na sociedade ocidental alterou o fundamento da liberdade de consciência e de religião, fazendo emergir um novo fundamento (coletivo) que tende a substituir o fundamento (pessoal) da dignidade; trata-se do ideal de sociedade democrática, pluralista e liberal. Contudo, uma vez que a conceção que cada pessoa tem da sociedade orienta a sua atitude em relação à objeção de consciência, a fonte do direito à liberdade de religião e de consciência, que é absoluta quando se fundamenta na dignidade humana, torna-se relativa e contingente quando decorre do ideal de sociedade democrática, porque este ideal não assenta numa ontologia, mas na vontade de coexistência, que é essencialmente prática.’ (p. 134)

E adivinham-se as consequências: ‘o que esta reflexão pretende, ao colocar-se entre o positivismo e o subjetivismo, é procurar a objetividade da justiça, um esforço que poderá parecer inglório numa sociedade que renunciou, pelo menos parcialmente, à convicção pública de que existe um bem objetivo; mas recusar-se a fazê-lo seria renunciar à racionalidade da justiça e resignar-se à sua arbitrariedade.’ (p. 12)

A leitura desta obra, fácil e contagiante (li-a, entre os dias 15 e 18 de abril de 2025), lança reptos e interpela o leitor. A objeção de consciência deve ser interpretada, não como um ‘favor’ que nos faz o Estado, mas, quando exercida em resposta a um dever de consciência (pelo que se impõe distingui-la da ideia de conveniência pessoal) por significativa mole de cidadãos, como um sinal de que a legitimação coletiva possa estar a incidir sobre objetos que, na sua natureza, não devam ser reconhecidos como bens em si, mas, provavelmente, como ‘males tolerados’ que deveriam ser repensados.

Em tempos em que os desejos tendem a ser identificados com direitos, mas em que, por influência de sinal contrário, os tiques totalitários também se fazem sentir, uma leitura como a desta obra ajudará a precisar os atos merecedores de objeção e o alcance de proteger esse direito fundamental a não ser impedido de seguir a sua consciência, seja positivamente (permitindo realizar [ou não] os atos que, em consciência, se sente deve fazer), seja negativamente (não sendo obrigado a realizar o que, em consciência, se reconhece como mal).

Mas, caro leitor, siga a sua consciência e aja em coerência: até no que concerne à possibilidade de não ler este livro… Ao fazê-lo, já estará a justificar a legitimidade de ele ter sido escrito.

Na mesma página que o autor (citações)

‘«Se a consciência tem direitos é porque pressupõe deveres. Nos nossos dias, porém, no espírito da maioria das pessoas, os direitos e a liberdade de consciência só servem para dispensar a consciência.»’

John Henry Newman, ‘Carta ao duque de Norfolk» (Citação em epígrafe), p. 9

‘O direito à objeção de consciência apresenta-se como um monstro jurídico cada vez mais reivindicado, em consequência do crescente pluralismo da sociedade e da desconexão entre a lei e a moral. Testemunha da amplitude do fenómeno, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos é regularmente interpelado por casos de pessoas que, em nome da sua consciência, se recusam a cumprir o serviço militar, a jurar sobre a Bíblia, a celebrar uniões entre pessoas do mesmo sexo, a autorizar a caça nas suas terras, a colaborar com a prática de abortos, a vacinar os filhos ou ainda a permitir que os filhos frequentem aulas de disciplinas obrigatórias como Ética, Religião e Educação Sexual; foram ainda apresentados ao seu pretório casos que dizem respeito a recusa de transfusões de sangue, de pagamento de impostos, de assistência a atividades religiosas e ainda de acatar a proibição do uso de vestes e símbolos religiosos.’ (pp. 11-12)

‘Impõe-se, pois um esclarecimento da noção de objeção de consciência, que não visa alargar o seu domínio de aplicação ao ponto de a tornar indefensável, mas pelo contrário, defini-la melhor a fim de poder ser garantida numa dimensão justa.’ (p. 12)

‘O que esta reflexão pretende, ao colocar-se entre o positivismo e o subjetivismo, é procurar a objetividade da justiça, um esforço que poderá parecer inglório numa sociedade que renunciou, pelo menos parcialmente, à convicção pública de que existe um bem objetivo; mas recusar-se a fazê-lo seria renunciar à racionalidade da justiça e resignar-se à sua arbitrariedade.’ (p. 12)

‘Depois de clarificar alguns conceitos relativos à noção de objeção de consciência – nomeadamente, os conceitos de consciência, convicções, objeção, e foro interno e externo -, este estudo identifica casos de objeção de consciência reconhecidos pelo direito positivo, quer do ponto de vista do dever de objeção, quer do ponto de vista do direito de objeção. A partir desses casos, passa ao esclarecimento das distinções que permitem caraterizar vários tipos de objeções, bem como identificar critérios de avaliação do respeito que cada um deles merece. Finalmente, com base nestes critérios, o estudo aponta os direitos e as obrigações do Estado face aos diferentes tipos de objeções.’ (p. 13)

‘A consciência não é o conjunto das convicções pessoais de um indivíduo, mas a origem prática delas, ou seja, a fonte da qual provêm. A consciência tem uma função psicológica e moral muito específica: emitir, por meio da razão, juízos acerca da moralidade de situações concretas; tem por isso a faculdade de julgar as normas sociais e religiosas.’ (pp. 15-16)

‘Para São Tomás de Aquino, a consciência moral é «uma aplicação da ciência ao ato», isto é, um ato realizado com ciência, cum scientia. Já Immanuel Kant chama-lhe «a expressão da razão prática», ou seja, o meio pelo qual cada pessoa exerce a sua razão nas situações concretas, práticas, com vista ao bem. É possível distinguir, ainda, a posse do sentido moral, que é designada por «consciência habitual», da sua utilização em cada circunstância particular, que é designada por «consciência atual».’ (p. 17)

‘Estes princípios fundamentais da moral – fazer o bem e evitar o mal – estão presentes em todas as pessoas: são a consciência habitual, também chamada «sindérese». Para Cícero, estes princípios da moral, reconhecidos como universais, são uma lei inata, que não se pode perder; para Séneca, são «um espírito divino [que reside dentro de nós], que observa e rege os nossos atos, bons e maus». Por sua vez, tanto os gregos como os judeus falam do «coração» para designar a consciência como fonte da vida moral.’ (p. 17)

‘[…] cada pessoa é moralmente responsável não apenas perante a própria consciência, mas também pela própria consciência, garantindo-lhe uma formação adequada.’ (p. 19)

‘Mas o ignorante é responsável pela má formação da sua consciência.’ (nota 10, página 19)

‘A consciência moral não é, pois, um ato arbitrário, mas um ato de conhecimento do bem; não produz a obrigação moral, mas reconhece-a (com risco de erro), à luz da sindérese, à qual via buscar a sua autoridade.’ (p. 19)

‘Antes de serem vinculativas, as leis têm uma função pedagógica, que consiste em mostrar aos indivíduos o bem que deve ser procurado e em suscitar neles o desejo desse bem, ou seja, a sua adesão, a fim de que apliquem as normas sociais de forma consciente e voluntária, realizando assim o bem que têm em comum com a sociedade. Inversamente, uma norma que seja considerada, em consciência, contrária ao verdadeiro bem não pode ser desejada, mas deve ser rejeitada e não terá outra autoridade que não seja a força da vontade de quem a prescreveu; será então recebida como violência por aquele cuja consciência reconhece nela um mal. A verdadeira origem da nossa autonomia pessoal é a transcendência do bem percebido pela nossa consciência pessoal.’ (p. 21)

‘A lei retira a sua força da inteligência de quem obedece ou da vontade de quem manda? Normalmente, de ambas em simultâneo. Esta pergunta remete para a distinção clássica entre direito (jus) e lei (lex): o jus (direito) é conforme à justiça, enquanto a lex (lei) é promulgada pela autoridade para garantir a realização da justiça, mas pode afastar-se dela. Quando lei garante o direito, retira a sua força da inteligência daquele que reconhece o bem e lhe obedece; quando, porém, a lei não garante o direito, a sua força é apenas a da vontade de quem manda, e a lei torna-se uma violência para aquele cuja inteligência reconhece nela um mal.’ (nota 12, p. 21)

‘[…] Hitler queria «libertar o homem dessa aviltante quimera a que dão o nome de consciência ou moral», e um dos slogans do regime nazi afirmava que «a consciência dos alemães chama-se Adolf Hitler».’ (p. 22)

‘As convicções não são […] opiniões arbitrárias ou fantasistas, mas sim a expressão de um imperativo interior na pessoa. As prescrições da consciência são convicções sobre o que convém fazer ou deixar de fazer.’ (p. 23)

‘As convicções não são as únicas expressões da consciência; de facto, quando esta permanece na incerteza, limitando-se a opinar em favor deste ou daquele juízo que lhe parece ser provavelmente verdadeiro, tem uma opinião. A consciência pode ainda permanecer na dúvida; nesse caso, a pessoa suspende o seu juízo. Nem a opinião nem a dúvida são convicções. Finalmente, uma pessoa pode ainda não ter adquirido o uso da razão (é o caso das crianças), ou tê-lo perdido (por efeito das paixões ou de uma enfermidade), e, nesses casos, os seus juízos também não merecem ser classificados como convicções.’ (p. 24)

‘[…] o foro interno releva do ser da pessoa e o foro externo do seu agir’. (p. 26)

‘A objeção

«Perante uma pessoa que nos incita a [fazer] aquilo que a nossa inteligência ajuíza ser mau, a nossa consciência ergue-se, em nome da própria verdade do bem, que é o fundamento da obrigação moral», e prescreve-nos que não realizemos esse ato. A consciência individual opõe-se ao cumprimento de uma ordem que a pessoa ajuíza ser má, interpondo-se entre essa ordem e o seu cumprimento; a consciência objeta, colocando-se diante da ordem para servir como obstáculo à sua realização.’ (p. 27)

‘Para compreender a objeção de consciência, é preciso compreender claramente a diferença fundamental entre, por um lado, ser impedido de agir segundo a própria consciência e, por outro, ser forçado a agir contra a própria consciência. Esta diferença – que é muito simples – está relacionada com outra, que é fundamental, e que separa o facto de um sujeito realizar positivamente um ato que a sua consciência lhe prescreve do facto de um sujeito se abster de realizar um ato que a sua consciência lhe proscreve.’ (p. 28)

‘[…] a consciência só é objeto de direitos porque impõe deveres à pessoa. Este duplo aspeto aparece com grande nitidez no regime da objeção de consciência, objeção esta que deve ser apreendida como um dever, antes mesmo de ser eventualmente reconhecida como um «direito».’ (p. 38)

‘[…] os agentes nazis em Nuremberga […] foram condenados por terem preferido acatar as ordens das autoridades públicas a obedecer àquilo que a sua própria consciência pessoal deveria ter-lhes prescrito que fizessem.’ (p. 41)

‘Assim, antes de ser, eventualmente, um direito, a objeção de consciência é essencialmente um dever moral e jurídico, que impõe a uma pessoa ou a um grupo de pessoas a obrigação de se recusarem a executar uma ordem injusta. Contudo, a par do dever de objeção, foi progressivamente reconhecido um direito à objeção de consciência, a fim de que os objetores pudessem seguir as prescrições da respetiva consciência sem perder a vida, a liberdade ou o trabalho.’ (p. 42)

‘Uma objeção de consciência poder ser reconhecida pelo legislador ou o juiz tendo em consideração o seu objeto ou a convicção do sujeito; ou seja, pode ser classificada como objetiva ou como subjetiva.’ (p. 46)

‘É interessante notar que, de acordo com a abordagem liberal, o reconhecimento do direito à objeção de consciência nos ordenamentos nacionais não resulta de uma superior consideração pela consciência, como instrumento capaz de reconhecer o que é bom e justo – pois isso implicaria pôr em causa a ordem que é alvo da objeção -, mas da renúncia à ideia de que a consciência humana seja capaz de se pronunciar sobre a integralidade do bem. Dito de outro modo, a objeção liberal e subjetiva é uma consequência do relativismo.’ (p. 48)

‘[…] num aparente paradoxo, quando a promoção do direito à objeção de consciência se funda numa conceção subjetiva da consciência, está a participar de uma desvalorização da apreciação social da consciência pessoa; a situação inverte-se quando estamos a falar do reconhecimento da objeção objetiva e do dever de objeção, que não têm como fundamento último o respeito pela consciência, mas o bem percecionado pela consciência. Significa isto que uma pessoa que reclame o benefício da objeção de consciência deve usar de prudência quando decide colocar-se num ou noutro terreno.’ (p. 48)

‘[…] o legislador [em França] dotou a despenalização o aborto, ocorrida em 1975, de uma cláusula segundo a qual «nenhum médico é obrigado a praticar uma interrupção voluntária da gravidez»; e que afirma, na segunda alínea, que «nenhuma parteira, enfermeiro ou enfermeira, auxiliar médico ou outro é obrigado a participar numa interrupção da gravidez». À época, Simone Veil, a promotora da lei, afirmava: «É evidente que nenhum médico ou auxiliar médico será jamais obrigado a participar». Esta cláusula de consciência adquiriu posteriormente valor constitucional em França.’ (p. 61)

‘Com base na própria filosofia do conceito de objeção de consciência e na jurisprudência do TEDH, propomo-nos distinguir diversas situações, consoante:

- a recusa em agir seja apresentada por uma pessoas razoável;

- a objeção tenha origem em simples conveniências pessoais ou num imperativo de consciência;

- a objeção de consciência obedeça a imperativos de natureza moral ou religiosa;

- a proximidade entre o ato ao qual se objeta e o conteúdo da convicção.’ (p. 86)

‘Note-se que a tarefa de julgar se uma objeção é verdadeiramente justa e moral se torna muito problemática numa sociedade que, em nome do relativismo e do subjetivismo, renunciou, pelo menos em parte, à convicção de que existe um bem objetivo; contudo, a recusa em fazer este esforço equivaleria a renunciar à racionalidade da justiça e a resignar-se à arbitrariedade.’ (p. 104)

‘No que diz respeito ao aborto e à eutanásia, é relativamente fácil demonstrar a inexistência de um verdadeiro direito fundamental, porque uma pessoa não pode abortar ou praticar a eutanásia livremente, isto é, cm a mesma liberdade com que pode exprimir as suas opiniões ou andar de um lado para o outro. A existência do feto opõe-se a isso. A resolução adotar em França pelos membros do Parlamento no 40.º aniversário da Lei Veil é, aliás, reveladora: embora apresente o aborto como um direito universal no primeiro artigo, recomenda a sua prevenção no segundo artigo; ora, se o aborto fosse efetivamente um direito fundamental, seria absurdo e injusto tentar evitar que fosse praticado. É precisamente porque é tolerada como um mal menor que esta prática deve ser alvo de uma política eficaz de prevenção.’ (p. 117)

‘[…] de acordo com a abordagem à liberdade de consciência fundada na dignidade humana, o direito ao respeito por esta liberdade não é concedido pelo Estado, mas apenas enquadrado por ele, já que o mesmo direito tem origem fora da vida social, é um direito que cada pessoa possui por natureza.’ (p. 125)

‘A transformação cultural ocorrida na sociedade ocidental alterou o fundamento da liberdade de consciência e de religião, fazendo emergir um novo fundamento (coletivo) que tende a substituir o fundamento (pessoal) da dignidade; trata-se do ideal de sociedade democrática, pluralista e liberal. Contudo, uma vez que a conceção que cada pessoa tem da sociedade orienta a sua atitude em relação à objeção de consciência, a fonte do direito à liberdade de religião e de consciência, que é absoluta quando se fundamenta na dignidade humana, torna-se relativa e contingente quando decorre do ideal de sociedade democrática, porque este ideal não assenta numa ontologia, mas na vontade de coexistência, que é essencialmente prática.’ (p. 126)

‘Convém […] ter presente que a objeção de consciência não é apenas uma modalidade do exercício da liberdade de consciência – é, também, e antes de mais, um testemunho pessoal e um sinal de alerta para o conjunto da sociedade. Quando muitas pessoas se recusam a praticar determinado ato, as autoridades públicas não devem procurar coagi-las, mas interrogar-se sobre as causas dessa recusa, porque último juiz e testemunha da justiça não é a lei positiva, mas a consciência pessoal.’ (p. 134)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'


'Os Sete Dias da Criação' |4| Luís M. P. Silva 'O primeiro dia: a luz!'

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