sexta-feira, março 07, 2025

Sabes, leitor... | 15 | Marca de água do livro de Enrique Rojas, 'O homem light'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Enrique Rojas, O homem light: uma vida sem valores, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1994.

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Abundam, em língua portuguesa, os títulos da autoria de Enrique Rojas. Pela mão da mesma editora que nos garantiu ‘o homem light’, contam-se ‘O amor inteligente’, ‘Tu, quem és?’, ‘A conquista da vontade’, ‘As linguagens do desejo’, ‘Sonho de viver’, ‘Remédio para o desamor’, a que podemos somar ‘Uma teoria da depressão’ (Tenacitas), ‘Adeus depressão’ (Livros d’hoje), ‘Não te rendas’, ‘Vive a tua vida’, ‘Sos ansiedade’, ‘A vida não se improvisa’, estes últimos com a chancela da editora ‘Matéria prima’.

Une-os, como o fio que alinhava a dobra de um tecido, a ideia de que o ser humano é muito maior do que o seu presente, é muito mais digno do que aquilo que o materialismo (teórico e/ou prático) tem vincado e pretendido afirmar como verdade insofismável. Opondo-se a esta presunção da condição menor que se tem tornado ‘paradigmática’ (um paradigma em que todos assentam sem se interrogarem sobre a sua legitimidade ou pertinência), Enrique Rojas socorre-se da sua experiência de psiquiatra para, através de uma escrita clara e coerente, conduzir o leitor à descoberta de que a autêntica felicidade não é uma soma de pequenas alegrias, mas a convicção profunda e enraizada do sentido da vida. Ideia que Rojas vem difundindo pelos seus livros, mas também, enquanto pensador, ensaísta e conferencista, vem propondo nos mais diversos areópagos, em particular de língua espanhola (Rojas é espanhol, nascido em Granada), desde Espanha ao México, Argentina, onde vem publicando, seja pela via do livro, seja enquanto colaborador habitual na imprensa [ABC (Madrid), ‘Excelsior’ (México),  ‘El Mercurio’ (Santiago do Chile), ‘La Nación’ (Buenos Aires)]. É, ainda, o presidente de uma fundação fundada pelo seu pai, Luis Rojas Ballesteros, um muito prestigiado psiquiatra e professor catedrático de Psiquiatria.

Como se afirma, na apresentação deste Instituto Rojas-Estapé, o objetivo é ‘levar a psicologia e a psiquiatria à rua (livros e publicações)’. Percebe-se esse desiderato na obra de Enrique Rojas. O livro, na mão do leitor, é um guia de ‘sobrevivência’, não como um receituário inibidor da autonomia, mas como um ‘canivete suíço’ que apela à criatividade do seu utilizador.

 

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

 

‘O homem light’ é um livro que revisito, frequentemente. Desde que o li, em 1996, regresso a ele e retomo, dele, ideias que se tornaram lastro para muitas navegações, como o que equilibra, no mar alteroso, o navio de grandes descobertas. Entre elas, a que se repercute no título. Como refere o próprio Rojas, no prólogo, este livro diz, logo à partida, ao que vai. A primeira frase predispõe-nos para o que vamos encontrar: ‘este é um livro de denúncia’.

Estamos anestesiados, inebriados com o bem-estar que a sociedade parece garantir-nos como seguro e para sempre. Mas o ser humano, feito de fragilidade, não é apenas isso. E, quando confrontado com os limites, desiste porque não se preparou. É que, à maneira dos produtos designados como ‘light’, o Homem contemporâneo vive iludido na sua autossatisfação. E, sob o efeito anestésico dessa ilusão, deixou de se inquietar com o que é importante, bastando-se com o que, imediatamente, lhe dá prazer e gozo. O ‘homem light’ é, assim, o ser humano que se pretende como o ‘café sem cafeína’, o ‘açúcar sem sacarose’, o ‘tabaco sem nicotina’. Pretende ‘ser-se’ sem ser quem é… E esse é o risco que Rojas vê na proposta societária atual: ao reduzir o ser humano ao hoje, ao agora, ao que dá prazer, ao que gera satisfação imediata, sem pretender o risco de ousar lutar por ideais ou de assumir compromissos que comportem sacrifício e esforço, o ser humano desfigura-se. A proposta de Rojas define-se pelo reconhecimento de que a condição humana genuína implica a aceitação de que a felicidade não é um objetivo e fim em si mesma, mas o resultado de uma vida ‘argumentativa e coerente’, uma vida com sentido, assente numa trilogia fundamental: ‘amor, trabalho e cultura’ sob o invólucro de ‘uma personalidade com um certo grau de maturidade e equilíbrio psicológico’ (p. 140).

O ‘homem light’ é, por isso, bem certo, um livro de denúncia (talvez a razão principal do seu sucesso editorial)… Mas é, também, um livro de proposta. E, na minha perspetiva, dado assentar numa antropologia sólida e bem estruturada, em que os vetores do tempo (passado-presente-futuro), e as dimensões da existência (corporeidade e espiritualidade) se encontram devidamente concertados, o livro merece leitura por uma outra e outra razão. Denuncia com pertinência, mas também propõe com coerência e novidade… Dezasseis capítulos de uma narrativa que deixará ao leitor o desejo de revisitação.

Não termino sem uma referência ao tradutor da edição que tenho em mãos. Virgílio Miranda Neves foi um eminente professor de Teologia Moral do Instituto Superior de Teologia de Coimbra que, nos tempos em que foi docente naquela instituição superior entretanto extinta, deu mostras de fina inteligência que se repercute na tradução aqui apresentada.

 

Na mesma página que o autor (citações)

‘Assim como nos últimos anos entraram na moda certos produtos light – o tabaco, algumas bebidas ou certos alimentos -, também se foi gerando um tipo de homem que poderia ser qualificado como o homem light.

Qual é o seu perfil psicológico? Como poderia ser definido? Trata-se de um homem relativamente bem informado, porém com escassa educação humana, entregue ao pragmatismo, por um lado, e a bastantes lugares comuns, por outro. Tudo lhe interessa, mas só a nível superficial; não é capaz de fazer a síntese daquilo que recolhe e por conseguinte, foi-se convertendo num sujeito trivial, vão, fútil, que aceita tudo mas que carece de critérios sólidos na sua conduta. Nele tudo se torna etéreo, leve, volátil, banal, permissivo. Presenciou tantas mudanças, tão rápidas e num tempo tão curto, que começa a não saber a que ater-se ou, o que é o mesmo, faz suas afirmações como ‘tudo vale’, ‘tanto faz’ ou ‘as coisas mudaram’.’ (pp. 7-8)

‘O homem light não tem referências, perdeu o seu ponto de mira e encontra-se cada vez mais desorientado ante as grandes interrogações da existência.’ (p. 11)

‘Como diz Julian Marías, o ser humano necessita de uma «hierarquia de verdades» que crie o subsolo no qual assentem as ideias, crenças e opiniões fundadas na autoridade, as «opiniões contrastadas» que vamos recebendo e essa sabedoria especial e profunda que constitui a experiência de vida. Sobre esta variada gama de verdades se sustenta a nossa existência e entre todas elas se estabelecem umas relações recíprocas, complexas e enredadas, muitas vezes difíceis de investigar, e entre as quais se articulam conexões presididas pelo que foi e é a nossa vida em concreto.’ (p. 20)

‘O ocaso dos valores supremos é um dos dramas do homem actual, porém como este necessita do mistério e da transcendência, cria outros que, de alguma maneira preencham esse vazio em que se encontra. Aparecem assim aqueles já mencionados no curso destas páginas: hedonismo e o seu braço mais directo: consumismo; permissividade e o seu prolongamento: subjectivismo; e todos eles unidos pelo materialismo.’ (p. 24)

‘A informação converteu-se num rio de dados e notícias, mas o importante é saber captar o que flui debaixo dele. Quando alguém se esquece do substancial, perde-se no anedótico. Diante de tantas notícias negativas, desgraças colectivas ou pessoais, o ser humano torna-se insensível e imuniza a sua pele qual mecanismo de defesa ante o aluvião que o arrasta.’ (p. 26)

‘[…] o amor verdadeiro torna o homem mais humano, transforma o seu passado e ilumina o seu porvir; é uma síntese de ingredientes físicos, psicológicos e espirituais.’ (p. 49)

‘[…] o consumidor de zapping comunga com tudo e não se identifica com nada, o que representa a entronização do individualismo mais atroz.’ (p. 65)

‘O light leva implícita uma verdadeira mensagem: tudo é ligeiro, suave, descafeinado, leve, débil e tudo tem um baixo teor calórico; poderíamos dizer que estamos ante o retrato de um novo tipo humano cujo lema é tomar tudo sem calorias. […] A vida light caracteriza-se pelo facto de tudo estar descalorizado, carecido de interesse e já não importa a essência das coisas, sendo cálido só o superficial.’ (pp. 66.67)

‘Que fazer? Há que lutar para vencer a vida light, porque esta conduz a uma existência vazia; e voltar a recuperar o sentido autêntico do amor à verdade e da paixão pela liberdade autêntica.’ (p. 70)

‘O homem actual está descontente porque perdeu a bússola, o rumo, e sente-se bastante vazio. Fomos fabricando um certo tipo de homem cada vez mais débil, inconsistente, que flutua num constante sem-sentido.’ (p. 85)

‘A toxicodependência é a expressão permanente do mito de ambrósia: aquela substância que ao ser tomada pelos deuses, os tornava imortais sem esforço algum.’ (p. 106)

‘Numa palavra trata-se de regressar ao homem espiritual capaz de descobrir todo o belo, nobre e grande que há no mundo e de procurar lutar para o alcançar.

Saber que a perda de todo o paradigma, em nome de uma mobilidade relampejante e climatizada não conduz à felicidade. Esse não é o caminho, mas sim aquele de escapar ao culto da novidade, que tanto embriaga a pessoa light e nos mostra outra série de valores muito diferentes dos perdidos. Mais ainda, a religião chega a ser o novo, como necessidade do final do século em decadência que precisa duma renovação profunda e forte. Esta nova moral individualista, por encomenda, subjectivista, em que se escolhe o que se gosta e se recusa o que é exigente, está construída sobre umas bases amorais, onde existe a liberdade ilimitada de fazer o que cremos conveniente sem daí advir nenhum tipo de culpa pessoal, já que isso neurotiza.’ (p. 138)

‘A felicidade nunca é uma oferta, há que conquistá-la e moldá-la com ilusão. […] Alinham-se […] na felicidade verdadeira, a coerência, a vida como argumento, o esforço para que se manifeste o melhor que carregamos dentro de nós e a fidelidade. Cada ingrediente fixa e sustém o que para mim é a chave que a alimenta, essa trilogia composta de amor, trabalho e cultura. E o seu invólucro: ter uma personalidade com um certo grau de maturidade e equilíbrio psicológico.’ (p. 140)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

sexta-feira, fevereiro 07, 2025

Sabes, leitor... | 14 | Marca de água do livro de Gilles Lipovetsky, 'O império do efémero'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Gilles Lipovetsky, O império do efémero: a moda e o seu destino nas sociedades modernas, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989.

.Foi com ‘O império do efémero’ que cheguei a Lipovetsky. Estávamos em 1996. O livro fora editado, pela primeira vez, em Portugal, em 1989, sendo o original francês de 1987. As minhas anotações registam que o comprei na livraria ‘Latina’, na cidade do Porto, onde frequentava, então, o curso de Teologia. Recordo-me de quanto me marcou a leitura deste livro, associada à de dois outros, desta feita de autores espanhóis: ‘Ideias e crenças do homem atual’, de Luis González-Carvajal, e ‘O homem light’, de Enrique Rojas. Pela pertinência das análises, talvez venha a dedicar-lhes uma destas rubricas.
Mas detenhamo-nos, agora, em Lipovetsky e no seu ‘O império do Efémero’.
Outros livros de Lipovetsky vieram a preencher os meus tempos de leitura. ‘O crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos’, ‘a cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada’, ‘a era do vazio’, ‘a sociedade da deceção’. Neste último, encontramos o conceito de hipermodernidade, fazendo justiça a uma característica deste sociólogo francês: a sua capacidade de criar termos e conceitos novos. Assim acontece, aliás, com a ideia de ‘moda’, omnipresente neste livro em que, agora, detemos a nossa atenção. O termo, em si, não é novo. É-o, sim, o conceito que ele lhe associará, como veremos, mais adiante.
Surpreendeu-me, desde a primeira hora, no pensamento de Lipovesty, a coragem e a fina análise da sociedade, que, não sendo pessimista, ousa pôr em causa o otimismo e a ‘generosidade’ com que muitos a pretendem ler. Não o faz por motivos religiosos (tende-se a associar o pessimismo em relação ao progressismo otimista…), mas pela lupa que lhe faculta a linha sociológica que adota (lembrando, aliás, atitude que iremos encontrar, também, num outro afamado sociólogo contemporâneo, Zigmunt Bauman). Revi-me, ao longo da leitura dos seus livros, em muita da sua crítica. Não, certamente, pelas motivações de fundo (não se lhe percebe uma leitura transcendente da existência…), mas pela atitude de quem antecipa o futuro das decisões hoje tomadas. Recupero, a este propósito, convicção que tenho como profundamente enraizada: a distinção entre o progressista e o conservador está no papel do futuro. O progressista nada se preocupa com o impacto futuro da sua decisão atual: pode fazê-la, tomá-la. Então, toma-a! Não é assim com o conservador que antecipa o futuro e vislumbra o impacto da sua hipotética decisão atual. Prevendo ser-lhe nefasta, desiste dela ou ameniza-a, de forma a diminuir os custos futuros, mesmo que se lhe apresente como prazerosa a hipótese na mesa.
Face a este retrato, mesmo que ele não se entenda assim, interpreto Lipovetsky como um conservador, isto é, alguém que olha para o agora e vê nele os custos das nossas decisões. (Que me perdoe se não gosta do epíteto, mas estou certo de que reconhecer que alguém conserva é elogioso, pois ‘quem não conserva deixa estragar’, como venho dizendo, repetidamente.)
Mesmo se não se reconhece como um conservador, este sociólogo e filósofo francês é um crítico do otimismo progressista. Veremos como é adequada esta nossa leitura, na análise ao livro.

 

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

 

‘O império do efémero’ gravita em torno de um conceito axial: a moda. Entende-a, porém, não como o âmbito da economia dedicado à decoração ou ao ‘estilo’ mais ou menos afetado da indumentária ou seus adereços, mas como uma categoria interpretativa, como algo que define o ‘modus cogitandi’ contemporâneo. Ele fala de ‘forma-moda’. Como, na escolástica a forma era o que conferia a natureza própria a uma matéria, a forma-moda é o modo próprio de ser da contemporaneidade.
E como a define Lipovestky?
Como um estado permanente de mudança.
Toma, para a sua análise, a referência histórica da revolução do maio de 68. Na senda do que defendeu Raymond Aron, que a designou como a ‘revolução inexistente’, Lipovetsky considera esta como a primeira revolução sem causa. Para a defesa desta tese, discorda da ideia de que a moda tenha origem em motivos de ordem económica ou de distinção de classes para a fazer emergir do individualismo e do espírito da fugacidade. A concretizar este motivo está a associação entre a moda e a juventude, identificada como o modelo a seguir (também nesta matéria Lipovestky coincidirá com um autor conotadamente conservador: Roger Scruton). Esta associação comportará um risco: o da perda da memória, tornando tudo efémero e prontamente ultrapassado.
É a força desta constatação que explica a controvérsia que o livro gerou, no contexto francês, aquando da sua publicação. O autor ousara colocar a mão na toca da víbora sobre o qual, como francês, assentava morada. Como poderia pensar-se a França de então e de hoje sem lhe associarmos a omnipresença da moda? Mas, a dar como certeira a análise de Lipovetsky, não estará já, neste espírito, a origem da sua caducidade e não estaremos, já, a sentir o odor fétido do seu sucumbir?
Adivinharam-no os adversários do nosso autor e por isso não lho perdoaram.
Mas o que eco das terras gaulesas, que preconizam o individualismo total, defensor de que seja um direito a mãe eliminar o seu filho totalmente dependente de si, nos leva a reconhecer é que Lipovetsky tinha razão e a mudança pela mudança retira o Humano do chão donde emergiu. O individualismo extremo destrói a pessoa, cinde as relações e põe em risco as próprias democracias. O império do efémero torna efémero tudo o que devia permanecer.

 

Na mesma página que o autor (citações)

‘[…] a moda é menos o sinal das ambições de classe do que a saída do mundo da tradição, é um desses espelhos onde se dá a ver o que faz o nosso destino histórico mais singular: a negação do poder imemorial do passado tradicional, a febre moderna de novidades, a celebração do presente social.’ (p. 17)

‘A moda começou a exprimir, no luxo e na ambiguidade, esta invenção própria do Ocidente: o indivíduo livre, desamarrado, criador, e o seu correlativo, o êxtase frívolo do Eu.’ (p. 65)

‘A moderna idade democrática honrou as frivolidades, elevou à categoria de arte sublime a moda e os temas subalternos. Num movimento de que o dandismo oferece uma ilustração peculiar mas exemplar, o fútil (decoração, lugares frequentados, trajos, cavalos, charutos, refeições) tornou-se coisa primordial, em igualdade com as ocupações tradicionalmente nobres.’ (p. 116)

‘Na raiz da promoção da moda, o repúdio do pecado, a reabilitação do amor de si, das paixões e do desejo humano em geral.’ (p. 119)

‘A Alta Costura, menos do que disciplinar ou uniformizar a moda, individualizou-a.’ (p. 130)

‘Na origem do pronto-a-vestir está a democratização última dos gostos de moda trazida pelos ideais individualistas, pela multiplicação de jornais femininos e pelo cinema, mas também pelo apetite de viver no presente, estimulado pela nova cultura hedonista de massa.’ (p. 155)

‘A expansão de uma cultura jovem durante os anos cinquenta e sessenta acelerou a difusão dos valores hedonistas e contribuiu para dar um novo rosto à reivindicação individualista.’ (p. 162)

‘Um novo princípio de imitação social se impôs, o do modelo jovem.’ (p. 165)

‘Com o individualismo moderno, o Novo encontra a sua plena consagração: por ocasião de cada moda, há um sentimento, por muito ténue que seja, de libertação subjetiva, de alforria dos hábitos passados’. (p. 246)

‘[…] as indústrias culturais instituem na esfera do espetáculo o primado do eixo temporal peculiar à moda: o presente.’ (p. 282)

‘A uma cultura da narrativa substitui-se até certo ponto uma cultura do movimento; a uma cultura lírica ou melódica substitui-se uma cultura cinemática construída com base no choque e no dilúvio de imagens, na busca da sensação imediata, da emoção da cadência sincopada.’ (p. 283-284)

‘Maio de 68 encarna […] uma figura inédita: sem objetivo bem programa definidos, o movimento foi uma insurreição sem futuro, uma revolução no presente que demonstrou ao mesmo tempo o declínio das escatologias e a incapacidade de propor um caminho claro para a sociedade do futuro.’ (p. 327)

‘A deriva fluída do sentido é, por certo, acompanhada da banalização-espetacularização da política, da queda do militantismo e dos efetivos sindicais, do alinhamento do espírito de cidadania pela atitude de consumo, de indiferença e por vezes de desafetação perante as eleições: outros tantos aspetos reveladores de uma crise do homo democraticus idealmente concebido.’ (p. 332-333)

‘[…] a moda tem razões que a razão desconhece.’ (p. 353)

‘A moda é a nossa lei porque toda a nossa cultura sacraliza o Novo e consagra a dignidade do presente.’ (p. 359)

‘Há mais estímulos de toda a espécie, mas mais inquietações de viver, há mais autonomia privada, mas mais crises íntimas. Eis a grandeza da moda, que reconduz sempre o indivíduo a si próprio; eis a miséria da moda, que nos torna cada vez mais problemáticos a nós mesmos e aos outros.’ (p. 382)

 


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

terça-feira, fevereiro 04, 2025

Laicidade tem de significar ‘silenciamento das religiões’? A propósito da abertura do ano judicial e da ausência das religiões

 Artigo originalmente publicado no site da Comissão Diocesana da Cultura|Aveiro

Inicio esta reflexão com uma declaração de apreço e reconhecimento: admiro a sensatez evidenciada pelos constituintes de 1976 no que respeita à matéria deste texto – a relação entre o Estado e a Religião.

Na verdade, os constituintes souberam encontrar um equilíbrio que a história da República mostra que era necessário (ainda que difícil!) encontrar. O laicismo da Primeira República e a difícil garantia prática (ainda que, no texto escrito, ela se afirmasse) da liberdade religiosa da Segunda criavam um quadro exigente para os que tiveram a difícil tarefa de redigir uma Constituição, após a Revolução de Abril.

Mas conseguiram-no. E, entre os seus maiores méritos, está, curiosamente, um silêncio.

Os Constituintes tiveram a inteligência de evitar o termo a que as posições democráticas associam, habitualmente, a justa relação entre Estado e Religião: laicidade!

A sua omissão do texto da Constituição foi uma decisão inteligente e prudente. Como venho sustentando, a nossa Constituição não utiliza o termo: opta pela descrição.

É que, com efeito, a inclusão do termo, dado ser ambíguo na sua interpretação (quando não, mesmo, equívoco), tem sido fonte de tremendas dificuldades, nos países que optaram por fazê-lo. O mais paradigmático é, bem certo, o caso da República Francesa que, na senda do espírito da ‘sua’ Revolução, desconfia da religião e prefere fazer de conta que ela não existe. Ao incluir, logo no artigo 1.º, a referência a que a república se define como ‘laica’ (o artigo afirma que ‘A França é uma República indivisível, laica, democrática e social.’) favorece toda uma abordagem elástica da relação entre Estado e Religião que, no caso gaulês, tem dado prevalência a uma leitura de pendor laicista. Como é sabido, a França, isto é, o seu Estado, tem um problema com as religiões. Não sabe o que fazer com elas, como se, para ele (Estado), elas não existissem (mas existem e fazem parte do sentir do seu povo...).

Clarifiquemos…

O termo ‘laicidade’, etimologicamente derivado de ‘laos’ (em grego, ‘povo’) evoca a ideia de uma distinção entre o âmbito político estrito (na sua configuração organizacional enquanto Estado) e o domínio do religioso. Repercute, mais profundamente, a distinção entre o sagrado e o profano.

Reparemos, porém, que a distinção não significa a indiferença ou separação sem relação. Como, aliás, acontece em todas as matérias em que falar de dualidade não implica, necessariamente, sustentar um qualquer dualismo. Assim quando se fala na dualidade antropológica ‘corpo-alma’ que, para muitos, é pretexto para o dualismo que coloca um em oposição ao outro, redundado na afirmação de que só num dos dois está a realidade humana.

Este fenómeno ‘epistémico’ (no âmbito do conhecer e da configuração do saber) verifica-se, também, quando falamos da laicidade.

A distinção – legítima e, na perspetiva católica, correspondente ao desejo do próprio Jesus Cristo de ‘dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César’ – tem servido, porém, de pretexto para se sustentar um dualismo que, afunilando cada vez mais a interpretação, conduz à convicção de que o Estado deverá compreender-se como fim em si mesmo (cabendo aos cidadãos servi-lo ‘acefalamente’ como se tudo visasse o bem do Estado e não, afinal, fosse o Estado, já, a servir os cidadãos e a procurar o bem destes…), nada mais havendo entre estes e o cidadão individualmente considerado e omitindo toda a relevância das estruturas e comunidades intermédias onde este se realiza, enquanto pessoa e, afinal, cidadão…

É fácil, face a esta breve descrição, constatar que o termo ‘laicidade’ se presta, portanto, a derivas que, sendo bem-intencionadas, inicialmente (o Estado não é a Religião; a Religião não é o Estado, ganhando ambos em liberdade com esta distinção…), se encaminham, por abuso de interpretação, para um beco de que dificilmente se sairá, sem custos graves: o Estado passa a gravitar em torno de si mesmo.

Ora, a leitura atenta da Constituição da III República permite constatar que os nossos constituintes perceberam (consciente mente ou talvez não…) que a equivocidade do termo exigia que se tivesse o cuidado de não o utilizar, porque, como se afirma no artigo 41.º da constituição (o primeiro, aliás, em que se fala desta matéria), o que está em causa é a liberdade religiosa e não a neutralidade absoluta do Estado. O Estado serve os cidadãos e, como eles são religiosos, deve garantir as condições para que estes se vejam respeitados enquanto religiosos. Por esse motivo, o Estado não se identifica com nenhuma religião, mas obriga-se a respeitar a liberdade dos seus cidadãos. Repare-se que a formulação adotada no número 4 do artigo 41.º coloca o acento na liberdade e não na já acima enunciada neutralidade do Estado. O que este número defende é, de facto, que o Estado não pode imiscuir-se no que é matéria das religiões, ao dizer que ‘As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.’ O Estado limita-se quanto a tiques cesaropapistas, mas não se reconhece o poder de silenciamento do âmbito religioso. Isso está ausente da nossa Constituição que, aliás, na linha do que eminentes constitucionalistas (entre os quais merece destaque o professor Jorge Bacelar Gouveia, que detidamente, analisa estas matérias em ‘Direito da Religião: laicidade, pluralismo e cooperação nas relações Igreja-Estado’, editado pela Almedina) vêm defendendo, colide com a ‘separação cooperativa’ que se observa no espírito da nossa Constituição.

Os constituintes de 1976 foram inteligentes. Perceberam que a história nos ensinara a não repetir o ‘erro de Afonso Costa’ (aludo ao livro de Amadeu Gomes de Araújo, editado pela Alêtheia e que recorda que entre as causas principais da queda da I República, está a sua aversão e, mesmo, afronta à religião.). Sê-lo-ão, igualmente, os intérpretes do espírito dos constituintes?

Os tiques laicistas, e os desejos de que o termo equívoco (omisso, mas sempre forçado a tornar-se latente) favoreça o emergir de uma atitude indiferente do Estado para com o real sentir e viver dos cidadãos, estão sempre à espreita.

Avançamos ou regredimos (ao que não queremos repetir) quando a ausência de representantes religiosos em cerimónia de abertura de ano judicial se considera motivo de regozijo?

Temo o que os sinais fazem presumir…

domingo, janeiro 19, 2025

Perante o aborto, qual a verdadeira compaixão que chega a todos? A todos, mesmo! | Desde 2007, o aborto legal já foi responsável pela morte de quem o praticou.

Artigo publicado, originalmente, no site da Comissão Diocesana da Cultura|Aveiro

 

O discurso que pretende legitimar a prática do aborto é muito eficaz. Sendo o aborto voluntário um ato pelo qual se impede um filho de crescer até se tornar autónomo, eliminando-o, na sua fase mais frágil e mais dependente de quem o deveria proteger, os que o pretendem legitimar têm sabido instrumentalizar os argumentos convencendo parte da opinião pública de que a compaixão está do seu lado.

E um dos mais frequentes argumentos é o de que a clandestinidade do aborto é que mata as mulheres que a ele pretendem recorrer.

Uma busca rápida de relatórios das complicações associadas ao aborto legal prontamente deitará por terra esta convicção.

Apesar de escassos (ainda que devessem ser anuais, de acordo com a Norma nº 001/2013 de 29/01/2013), dois dos relatórios das complicações associadas à prática do aborto legal permitem retirar várias conclusões que deveriam fazer pensar.

(Reporto-me a dois relatórios: ‘RELATÓRIO DE ANÁLISE DAS COMPLICAÇÕES RELACIONADAS COM A INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ 2013’ e ao ‘RELATÓRIO DE ANÁLISE DAS COMPLICAÇÕES RELACIONADAS COM A INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ 2009 – 2010’, publicado pela Divisão de Saúde Reprodutiva, em janeiro de 2011.)

Das muitas informações que podem encontrar-se, aqui, destaco as mais relevantes.

Nestes relatórios, são registadas as inúmeras complicações advindas do aborto legal. Sublinho ‘complicações advindas do aborto legal’.

No relatório de 2011, que reporta informações do período em que já vigorava um quadro de legalidade decorrente da decisão tomada pelo Parlamento, após o referendo de 11 de fevereiro de 2007, podemos destacar as complicações mais graves, a saber, ‘infeção/sepsis’, que, entre 2008 e 2010, se verificou em 54 casos, havendo 7 situações de perfurações de útero.

No relatório de 2013-14, verificamos que as infeções/sepsis continuam a ter um nível de incidência significativo: no ano de 2011, foram 31; em 2012, foram 23; em 2013, 46; em 2014, 31. Também continuam a verificar-se perfurações de útero: em 2011 e em 2014, não foram registados casos, mas assim aconteceu, porém, em 2012 (1 caso) e em 2013 (2 casos).

Poderá, ainda, observar-se que são muito significativos os números de casos de aborto retido (em que o embrião ou feto não é expulso do útero, após a intervenção): em todos os anos relatados, os abortos retidos superam os 150, chegando, em 2010, a atingir o número de 524.

Os mesmos relatórios reportam outras complicações (endometrite, necessidade de terapêutica cirúrgica ou transfusão sanguínea, persistência de saco gestacional após intervenção, etc.), densificando o reconhecimento das inúmeras consequências do aborto para a própria mulher (bem certo que a complicação ‘morte’ é constante, no caso do filho…). Volto a sublinhar que as complicações não são decorrentes da clandestinidade do ato, mas sim do ato em si. Todas estas complicações acima sumariamente enumeradas são referentes ao aborto legal.

E soma-se a estas complicação a morte da própria mulher, facto que podemos verificar no relatório de janeiro de 2011 que observa que ‘A morte por choque tóxico associado com infecção a Clostridium sordellii, constitui uma complicação muito rara, mas que deve ser considerada como diagnóstico diferencial.’ Por ‘diagnóstico diferencial’ podemos entender ‘hipótese sempre a colocar’. Na verdade, fonte de informação segura reportou-me que a morte de mulheres por aborto legal voltou a ocorrer em pelo menos mais duas situações, em data posterior à que reportam estes dois relatórios.

Face a estes dados, deveria concluir-se que não é a clandestinidade a responsável pelas complicações associadas à sua prática, mas a natureza do próprio ato de abortar, que é a interrupção abrupta e subjetivamente determinada de um processo em que já está empenhado todo o organismo da mulher.

Acresce que, em causa, já não está só o corpo da mulher, mas a vida do seu filho.

Por tudo isto, compadecer-se de uma mulher que está grávida e se convenceu de que o seu problema é o seu filho em gestação não é legitimar-lhe a determinação de o eliminar, mas ajudá-la a acolher o filho. Eliminar o filho é decisão irreversível, motivada por circunstâncias sempre reversíveis. Os casos que acompanhei, desde a fundação da ADAV-Aveiro, e de que resultou a decisão livre da mãe de desistir de abortar, permitem-me concluir que o filho, que parecia problema, veio, afinal, a ser a causa de reconfiguração de sentido e a fonte de esperança, em momentos mais negativos (bem me lembro desses testemunhos sofridos…).

Sendo o aborto um erro, como podemos continuar a achar que ele seja sinal de compaixão?

Compadecer-se é, sim, ajudar o outro a encontrar uma saída construtiva para um problema que se lhe afigura insuperável… E para isso aí estão as associações de defesa da vida que têm, desde 1998, criado respostas para que não fique sem ajuda mulher alguma cujo filho decidiu ouvir: em sussurro, ele pedia-lhe que o acolhesse…

terça-feira, janeiro 07, 2025

Sabes, leitor... | 13 | Marca de água do livro de Gustavo Zagrebelsky, 'A crucificação e a democracia'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Gustavo Zagrebelsky, A crucificação e a democracia, Coimbra, Edições Tenacitas, 2004.


Gustavo Zagrebelsky é, infelizmente, entre nós, um muito ilustre desconhecido. Basta uma rápida busca de livros da sua autoria, entre as editoras portuguesas, para percebermos que, com a honrosa exceção do livro com que nos abeiramos, nesta rubrica, da sua fina inteligência, não terá havido outros livros que tenham merecido o labor editorial lusitano.
Não é, assim, porém, no país vizinho, onde as traduções da sua obra abundam. Títulos como ‘ o direito dúctil’, ‘Livres servos’, ‘Direitos à força’, ‘Princípios e votos’, ‘A virtude da dúvida’, etc. mereceram tradução para castelhano. Outros públicos, outras ousadias, outros leitores!
Mas, entre nós, só pela via de ‘a crucificação e a democracia’ nos poderemos abeirar do pensamento fino deste professor catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Turim e também membro do Tribunal Constitucional italiano, de que foi Presidente em 2004.
Nesta edição que aqui apresento, a qualidade da reflexão é emoldurada por uma não menos interessante e luminosa ‘palavra de apresentação’ da autoria de António Maria Barbosa de Melo, Presidente da Assembleia da República entre 1991 e 1995 e reconhecido professor de Direito da Universidade de Coimbra. ‘Palavra’ que é um excelente guia para o ‘percurso’ que nos proporciona o autor entre os meandros da ‘democracia’ que, pela via da manipulação das massas, se degrada em ‘demagogia’.
Um livro oportuno e quase ‘profético’, dada a sua capacidade de antecipar, em duas décadas, os sinais de perigo que a manipulação das massas acríticas faz emergir e germinar.

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

 

Começo esta abordagem com um elogio. Às edições Tenacitas devemos a tradução para português de algumas obras e autores que, de outro modo, nos ficaria vedado conhecer. Nomes como Robert George, George Weigel, entre outros, mereceram tradução para português de obras que permitem ler, de forma fina e acutilante, a realidade que se nos apresenta, muito para além da espuma de tanta literatura que repete em círculo o pensar vulgarizado.
Entre essas ‘raridades’ contamos este ‘A crucificação e a democracia’.
É pena, porém, que a belíssima capa que reproduz um ‘ecce homo’ de autor anónimo do século XV possa ter inibido o acesso de leitores que, tomados pelo ‘preconceito’ de que pudesse tratar-se de um livro de natureza religiosa ou piedosa, desviaram o olhar para outras capas mais sedutoras.
A capa é, porém, decorrente de uma interpretação correta do livro, dado que o nosso autor faz uma abordagem sobre o que deverá ser uma democracia madura (ele chama-lhe ‘democracia crítica’) e do que são democracias débeis (ele chama-lhes ‘céticas’ e ‘dogmáticas’) tomando por referência o processo histórico de julgamento de Jesus Cristo, às mãos da multidão manipulada pelos líderes políticos e religiosos de então.
Superado o ‘preconceito’, o leitor é surpreendido com uma escrita entusiasmante e entusiasmada que envolve e favorece a leitura voraz. A tese fundamental é a de que as democracias são realidades vulneráveis, suscetíveis de instrumentalização, pelo que, dada esta natureza frágil, devem amadurecer no sentido da superação das ‘certezas’ das leituras dogmáticas ou céticas que lhes atribuem o direito de poderem legislar sobre tudo o que respeita ao cidadão, inclusive sobre a vida e a morte destes.
As consequências desta tese são facilmente constatáveis. Matérias que concernem a decisões irreversíveis como o aborto, eutanásia, pena de morte, etc., excedem os limites que deveriam admitir-se as democracias maduras (as ‘críticas’, que sabem que o poder tende a absolutizar-se, sendo vulnerável à manipulação que conduz a formas totalitárias).
Olhando para um processo com 2000 anos, Zagrebelsky não deixa de constatar a ‘permanência’ dos ‘tiques autoritários e totalitários’ que percorrem a história da consolidação da democracia.
Hoje, porém, dizemo-lo nós, após tantos sinais e indícios que deveriam conduzir a processos de ‘autolimitação’ das democracias, os sinais não parecem dar-nos motivos para tranquilizarmos. As democracias que pensávamos ter amadurecido, assentes numa atitude ‘crítica’ (consciente da sedução maviosa do poder), estão, afinal, vez após vez, renovadamente tomadas pelos tiques ‘demagógicos’ que transformam o ‘povo’ numa ‘massa’ instrumentalizável e disponível ao serviço de desejos múltiplos que se congregam em tornou do saboroso paladar do ‘poder’.
A tese deste experiente professor de direito e juiz deveria continuar a servir de alerta, em tempos em que a decisão sobre a vida e a morte, já não de abstratos cidadãos, mas sobre os próprios filhos ainda não nascidos ou sobre os pais acamados, enfermos, dementes, está a ser envolvida sob o manto de um putativo direito a reconhecer pelos Estados que atingem, assim, um limite que parecia nunca poder aceitar-se: já não só o de os Estados, pela mão de alguns seus representantes, poderem exercer esse hipotético direito, mas de ele ser reconhecido a cada um. O salto parece abismal, mas adivinha-o Zagrebelsky na cedência às degenerescências da democracia.
Servirão as suas palavras de alerta? Ainda irão a tempo?
Ou voltaremos a crucificar o inocente, deixando, de modo demagogicamente intencional, o real culpado entre os que assistem à execução do seu ‘substituto’?

 

Na mesma página que o autor (citações)

‘A verdade e a falsidade, o bem e o mal, não podem […] depender do número e das opiniões’ (p. 19)

‘Se se considerar a condenação de Jesus sob a perspetiva do conjunto de factores que a determinou, torna-se evidente que tanto o dogma como o cepticismo podem conviver com a democracia desde que quer um quer o outro a instrumentalizem. Tanto o dogmático como o céptico se podem apresentar como amigos da democracia, mas apenas como falsos amigos. O dogmático pode aceitar a democracia só se e enquanto ela servir como força, uma força dirigida a impor a verdade. O céptico, por seu lado, como não acredita em nada, não encontrará nenhuma razão para preferir a democracia à autocracia. Ou melhor: encontrará uma razão, não na fé em qualquer princípio, mas sim numa conveniência. Isto é: poderá ser democrático, enquanto o for, não por idealismo mas por realismo do próprio interesse, ou seja, por oportunismo.’ (pp. 19-20)

‘A estes dois modos de pensar – opostos nos fundamentos mas convergentes na instrumentalização – uma teoria da democracia como fim, e não apenas como um meio, deve saber contrapor um outro, que não presuma possuir a verdade e a justiça mas muito menos considere insensata a sua busca. É este pensamento da possibilidade, que é próprio daqueles que rejeitam tanto a arrogância da verdade possuída quanto a renúncia da realidade aceite. O pensamento da possibilidade contém sempre – e de novo – a abertura à procura e o seu postulado é a estrutural plurivalência de todas as situações nas quais nos venhamos a encontrar. A sua exigência ética não é a verdade ou a justiça absolutas, como para o espírito dogmático, mas, entre todas as possibilidades, a procura orientada do melhor, uma exigência que somente o espírito radicalmente céptico poderá negar, em nome de uma tentação absolutista de sinal contrário. Só pra o pensamento da possibilidade, a democracia, além de um meio, pode também ser um fim e, por isso, além de servir, deve também ser servida. À democracia que assume como própria esta atitude do espírito dá-se o nome de democracia crítica.’ (p. 20)

‘Contra a habitual representação do homem tíbio, débil, cobarde e aprisionado ao seu interesse mesquinho, pode colocar-se a compreensão de Pilatos como político puro, aquele para quem o poder e o governo são a finalidade; e tudo o resto, incluindo a verdade e a justiça, desce à condição de puro meio, útil, inútil ou pernicioso consoante as circunstâncias. Quase um maquiavélico ante litteram.’ (p. 91)

‘O crucifica-o! foi um alarido unânime. No seio da multidão em frente ao Pretório não havia lugar a dissensões. O medo mantinha-a unida como um corpo compacto.
Se uma voz, entre tantas, se tivesse levantado para se fazer escutar e tivesse conseguido abrir um debate; se, nesse caso, se tivessem formado diferentes grupos, talvez a decisão se tivesse orientado de outra maneira, talvez se produzisse uma mudança radical ou a procura de uma solução de compromisso. Talvez. Falta a contraprova. Mas, tal como os Evangelhos relatam o desenrolar dos factos, o povo actuou verdadeiramente como uma massa que se dirige cegamente para o precipício, impedindo a qualquer força contrária o mero acto de se manifestar.
Haveria possíveis dissidentes? Provavelmente sim, talvez uma minoria. Mas estavam atemorizados.’ (p. 103)

‘A turba não agiu. Apenas reagiu. Não se tratou de uma reunião de homens senhores de si próprios, mas de uma massa manipulada por outros. Essa multidão não era um sujeito, mas um objeto.’ (p. 106)

‘Agir depressa! Não havia tempo. A rapidez era a tendência natural daquela multidão emocional e não racional. Mas era também a intenção dos que a incitavam.’ (p. 107)

‘Quem se atribua o direito de decidir sobre a vida e a morte, de alguma forma, conscientemente ou não, quer valer tanto como Deus. Pilatos e o Sinédrio, pondo em última e definitiva instância a vida de Jesus nas mãos da multidão, adularam-na, divinizando-a. Precisamente: vox populi, vox dei.’
Isto expressa um conceito totalitário da democracia como força, e como força absoluta; um conceito que nos remete para muitas das características que vimos na decisão popular contra Jesus. Sobretudo, a ausência de procedimentos e garantias a favor das vozes potencialmente discordantes.’ (p. 111)

‘Na democracia crítica, a democracia é função de si própria. E, dado que sempre se coloca a si mesma as suas finalidades, é ao mesmo tempo meio e fim. E sendo portanto à vez meio e fim, não pode criar-se uma contradição para sair da qual possamos vermo-nos na alternativa de salvar os fins renunciando à democracia como meio, ou salvaguardar a democracia como meio renunciando aos fins.’ (pp. 114-115)

‘Na democracia crítica, a autoridade do povo não depende, de modo nenhum, das suas supostas qualidades sobre-humanas, como a omnipotência e a infalibilidade. Depende, ao invés, do motivo exactamente oposto, quer dizer, do facto de assumir que todos os homens e o povo no seu conjunto são necessariamente limitados e falíveis.’ (p. 115)

‘Do ponto de vista de uma visão da democracia sem ilusões, devem rejeitar-se como insensatos e portadores de insidiosas tentações todos os conceitos de democracia que atribuam ao povo a capacidade de nunca se equivocar, de sempre se basear intrinsecamente no justo.’ (p. 116)

‘Na democracia crítica, todas as decisões hão-de ser revogáveis e revisíveis. As decisões definitivas, de facto ou de direito, não são admitidas porque o carácter definitivo pressupõe a infalibilidade e nelas o espírito da possibilidade fica anulado. […] a democracia crítica não rejeita apenas a pena de morte. É também incompatível com muitas outras decisões, seja por estas serem irreversíveis, ou por implicarem consequências irreversíveis.’ (pp. 120-121)

‘Retornemos, uma vez mais, ao processo de Jesus. A multidão que gritava o crucifica-o! era exactamente o contrário daquilo que a democracia crítica pressupõe: tinha pressa, estava fragmentada mas era totalitária, não tinha instituições nem procedimentos, era instável, emotiva, e, por isso, extremista e manipulável – uma multidão terrivelmente parecida com o “povo”, a quem a “democracia” podia confiar o seu destino no futuro próximo. Essa turba condenava “democraticamente” Jesus e assim acabava por reforçar o dogma do Sinédrio e o poder de Pilatos.’ (p. 129)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Imagem recolhida de http://www.tenacitas.pt/producto/a-crucificacao-e-a-democracia/

Sabes, leitor... | 15 | Marca de água do livro de Enrique Rojas, 'O homem light'

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