sexta-feira, setembro 04, 2015

A civilização do efémero - das decisões pessoais à construção da sociedade


No final da década de 80, um dos mais influentes sociólogos franceses, Gilles Lipovetsky, publicava uma das suas muitas obras marcantes: «o império do efémero». Ali, defendia que, desde o maio de 68, o que movia as vontades já não eram motivos profundos ou, sequer, motivos, mas o simples desejo de mudar. Chamava ele a essa categoria da «mudança pela mudança» simplesmente «moda».

O mesmo autor foi prosseguindo a sua análise, ao longo dos tempos, e constata, hoje, que vivemos na sociedade hipermoderna, isto é, a sociedade marcada pela deceção. Do efémero, que parecia ser a definitiva libertação de todas as tradições, chegámos aqui: à deceção.

Portugal ainda irá, provavelmente, a meio do tabuleiro desta ponte. Muitos são os que ainda vivem fascinados pela mudança enquanto mudança, mesmo que ela não leve para lado nenhum.

Denuncia, na minha perspetiva, tal visão, o que as estatísticas (segundo o Pordata) revelam sobre a capacidade ou incapacidade que evidenciamos de nos comprometer com projetos de longa duração. Permitem concluir isto, por exemplo, as taxas de nupcialidade nacionais, isto é, o número de casamentos por 1000 residentes. Se olharmos para o que as estatísticas revelam, verificamos que 2014 foi o ano em que Portugal apresentou a mais baixa taxa de nupcialidade de sempre, com 3 em cada mil, o que permite verificar que, em 14 anos, esta reduziu para metade (em 2000, era de 6,2). Se juntarmos a isto que, de 2000 para cá, a taxa de divorcialidade (o número de divórcios por 100 casamentos) aumentou mais de 100%, passando de 30% em 2000 para 70,4% em 2013, os dados tornar-se-ão ainda mais preocupantes. Desafio, aliás, o caríssimo/a leitor ou leitora a percorrer os olhos pelos últimos números do Terras do Vouga e a verificar que, em cada mês, muito poucos são os casamentos celebrados nas nossas comunidades paroquiais... Não merecerá isto uma reflexão? Que futuro se poderá esperar de uma sociedade que não protege a família, reconhecida, no artigo 16º da declaração universal dos direitos humanos, como «elemento natural e fundamental da sociedade tendo direito à proteção desta e do Estado»?

Não no fixemos, porém, na estatística. Interessa, aqui, uma outra ordem de análise: olhar para estes números num registo pastoral, num registo de leitura cristã. Que inquietude cristã deverá colher-se da análise destes números?

Sem querer dramatizar o que, já por si, deveria ser lido com olhos «esbugalhados», não podemos deixar de verificar que, de algum modo, por uma via silenciosa e subtil, estes números permitem constatar que alguma coisa está a falhar no anúncio cristão e um progressivo diminuir da marca cristão na cultura do povo, entendida aqui a cultura como a constelação dos valores decisivos na vida de uma determinada comunidade.

Na verdade, se formos ao âmago do que é o cristianismo, ele não é, primeiramente, uma proposta moral ou ética, uma forma de pensar a política e o mundo, mas sim, a afirmação da certeza de que o amor vence e é fiel. Perante uma sociedade divorcista, não se pode senão constatar que a mensagem não está a ser transmitida com eficácia e a sua capacidade de levedar a cultura está diminuída.

Apetece recordar a tristemente célebre afirmação de Afonso Costa, proferida em 23 de março de 1911 e reproduzida por Amadeu Gomes de Araújo, em «um erro de Afonso Costa», editado, recentemente, pela Alêtheia: «está admiravelmente preparado o povo para acolher essa lei (da separação); e a ação da medida será tão salutar que em duas gerações Portugal terá eliminado completamente o Catolicismo, que foi a maior causa da desgraçada situação em que caiu.» Afonso Costa errou, em termos estatísticos, pois continuamos a ser uma ernome maioria católica, porém, parece que se quer que ele tenha razão no que é essencial. Hoje, a influência cristã nas decisões pessoais e coletivas parece reduzir-se à celebração de grandes eventos multitudinários, em que os compromissos e as implicações pessoais não são tidos como determinantes mas meramente acessórios. Vale a pena recordar que os dados que se reúnem nas estatítiscas coligem em bloco aquilo que, afinal, é somatório de decisões individuais. Vale de pouco criticar a sociedade individualista quando, ao chegar a nossa vez de tomar uma decisão que nos diz respeito, somos, afinal, igualmente individualistas.

É bom recordar que a matéria que diz respeito ao casamento e à relação com os filhos não é acessória na vivência cristã. Desde cedo os cristãos se aperceberam de que a sua coerência como fiéis se evidenciava neste tipo de opção. Recordemos um excerto da célebre carta a Diogneto, que os mais recentes estudos (segundo Roque Frangiotti) atribuem a Quadrato, por volta de 120 d.C. e eventualmente dirigida ao imperador Adriano (que recebia o título de Diogneto): «Os cristãos, de facto, não se distinguem dos outros homens, nem pela sua terra, nem pela sua língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam uma língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. A sua doutrina não foi inventada por eles, graças ao talento e à especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum ensinamento humano. Pelo contrário, vivendo em casas gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros.Toda a pátria estrangeira é pátria deles, e cada pátria é estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põem a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm a sua cidadania no céu; obedecem às leis estabelecidas, mas com sua vida ultrapassam as leis; amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, apesar disso, condenados; são mortos e, deste modo, é-lhes dada a vida; são pobres e enriquecem a muitos; carecem de tudo e têm abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, tornam-se glorificados; são amaldiçoados e, depois, proclamados justos; são injuriados, e bendizem; são maltratados, e honram; fazem o bem, e são punidos como malfeitores; são condenados, e alegram-se como se recebessem a vida. Pelos judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos, àqueles que os odeiam não saberiam dizer o motivo do ódio.»

O que Portugal tem vivido, nas últimas décadas, não difere muito daquilo com que já se debatiam os primeiros cristãos. Ontem, como hoje, eles sabiam que a sua fé se repercutia nas suas escolhas individuais e isso construiu uma civilização diferente, em que a pessoa é pessoa e não mero indivíduo. E essa civilização está em risco se cada um se reduzir à sua individualidade e se se esquecer de que é um com os outros e, com eles, um diante do Outro, totalmente Outro.

Se, hoje, o autor da carta a Diogneto voltasse a escrever aos imperadores de agora, seria ainda capaz de recordar em que se distinguem os cristãos dos demais? Ou até os cristãos já cederam à civilização do efémero?




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