domingo, outubro 04, 2015

Nada há de mais progressista do que a moral!

A afirmação que chamámos a título parece uma provocação ou, então, pura demagogia. Tentaremos demonstrar que nem uma nem outra opção corresponde ao sentido exato da afirmação e que, pelo contrário, na verdade desta afirmação reside, de facto, a resposta antecipada para o tímido progresso da humanidade em termos de humanidade.
É muito frequente, em contexto de campanhas eleitorais, ouvir falar dos movimentos progressistas, por oposição a outros, considerados conservadores e reacionários. E a frequência da repetição da afirmação gera insensibilidade e dificuldade em atravessar a neblina e descobrir a realidade escondida. Não nos interessa, aqui, discutir os modelos de organização do Estado ou as conceções económicas a que se pretende associar cada designação, mas discutir um certo uso do termo 'progresso', que se vem consolidando, e que faz crer que será progresso a dissolução da influência da moral na ação pública. Este fenómeno de tentar neutralizar a influência da moral nas decisões políticas não é novo. Corresponde, aliás, a um mais profundo movimento de laicização da sociedade, que se propõe silenciar ou enclausurar no reduto íntimo a influência das convicções religiosas e morais. No caso português, o fenómeno tem os seus primeiros sinais ainda em fins do século XIX, mas encontra o seu maior esplendor no contexto da primeira República. Mas os tiques ficaram.
Por muito originais que sejamos, porém, esta lógica não é um exclusivo nosso. Já na longínqua revolução francesa, o laicismo era marca distintiva e ficou como modelo inspirador.
Então, como hoje, o erro era o mesmo. Confundir o dever de respeito pelos demais e da promoção do diálogo com quem possa pensar de modo diverso com a presunção de que, para evitar o debate ou a discussão, o melhor é fazer de conta que não existe. O erro é tanto maior quanto maior é a sua ineficácia. É, aliás, fácil de perceber que o silenciamento de algo tão definidor da condição humana como as convicções religiosas é praticamente impossível, dado que só poderia fazer-se contra o próprio homem, enquanto ser que procura e busca sentido para a sua existência.
Este tique laicista tem-se apresentado, quase sempre, associado a um pretenso amoralismo, isto é, à convicção de que seja possível agir sem atender a valores morais. Ora, não é preciso pensar muito para verificar que a ação humana é, sempre, por definição, ação moral. O agir humano move-se por valores. Procura atingir fins. E isso torna toda a ação humana moralmente condicionada, isto é, intrinsecamente moral. Resta saber que valores se considera serem mais «valiosos» (permita-se esta redundância). E o problema está aqui, na hierarquia dos valores. Quando se defende o amoralismo, o que está a sustentar-se não é a ausência de moral, mas sim a defesa de que a ação humana, neste caso, a ação política, deva fazer sempre o que pode fazer. «Poder fazer» e «dever fazer» tornam-se coincidentes. E isso não pode senão ser altamente ruinoso para qualquer sociedade. A história demonstra-o.
Assim aconteceu quando, por exemplo, em inícios do século XX, nos Estados Unidos, se criaram movimentos eugénicos, que defendiam que, se se podia proibir que setores ditos inferiores da sociedade se reproduzissem, então, era legítimo impor essa proibição. Ou, então, quando, em plena II Guerra Mundial, se testaram, sem consentimento, sobre humanos substâncias cujos efeitos eram desconhecidos, prática que, infelizmente, se vem repetindo, mesmo após, em 1947, se ter formulado em 10 pontos o código de Nuremberga. Do mesmo modo se passou, no âmbito financeiro, quando os especuladores se foram convencendo de que, se se podia especular, mesmo que isso custasse vidas, então, porque não o fazer? Assim aconteceu, ainda mais recentemente, num escândalo cujos efeitos ainda não se sabe em definitivo quais serão, quando empresas do ramo automóvel descobriram que, se podiam criar um mecanismo que permitisse ludibriar os sistemas de deteção da emissão de gases poluentes, então, por que razão não o poderiam utilizar? Sempre o mesmo raciocínio: se posso fazer e «poder é dever», então, porque não fazer? E é aí que se revela que a moral é aquilo que de mais progressista dispomos. A Moral é uma antecipação do futuro. Em virtude dos valores morais, perante um determinado desafio, e perante possíveis soluções, a moral obriga-nos a pensar sobre o futuro que resulta de cada opção. Em virtude da reflexão moral, determinadas opções afiguram-se como inadmissíveis porque, sendo eventualmente possíveis de executar ('podemos' fazê-las), contudo, comportam custos na vida daqueles sobre quem recaem, obrigando, por isso, a progredir no sentido de encontrar melhor solução. Quem não respeita os princípios morais, esse sim torna-se altamente conservador, pois segue a primeira possibilidade que tecnicamente tem ao seu dispor. É, pelo contrário, a moral que obriga a procurar outras soluções, a progredir, a evoluir, pois aquelas que a moral considera inadmissíveis não são válidas. Sem a moral, tudo o que pudesse ser feito seria feito. E isso custaria o amanhã e não asseguraria grande presente. É à moral que devemos a certeza de que há um amanhã. A título ilustrativo veja-se como seria diferente a realidade se se tivesse respeitado a moral no caso dos embriões excedentários (Sempre a moral disse que haveria que ponderar muito bem e com prudência o recurso a métodos de procriação medicamente assistida, pois a fecundação descontrolada de óvulos iria gerar graves problemas. Hoje, há milhões de embriões a que ninguém sabe que projeto de vida dar.) E tantas outras situações demonstram que, nem sempre o que se pode fazer é o que se deve fazer. É, seguramente, mais fácil fazer sempre o que se pode fazer, mas o amanhã exige que o que se pode fazer se submeta ao que se deve fazer. Porque o amanhã só se garante se cada um tiver clara a hierarquia dos valores: que o desejo e a vontade de cada um não são a fonte da moral nem do direito, mas antes deverão ser os seus agentes.


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