sexta-feira, março 29, 2019

A propósito do azul masculino e do rosa feminino… | Igualdade de género ou igualdade entre os sexos?


Começo este artigo com uma nota de ordem cultural.
Conta-nos Homero, na Odisseia, que Ulisses, na viagem de regresso a Ítaca, pediu aos seus companheiros de viagem que o prendessem ao mastro do seu barco, pois sabia que teria dificuldade em passar junto às sereias que conseguiam, com os seus melodiosos cantos, seduzir até os mais resistentes. Aos companheiros mandou que tapassem os seus ouvidos com cera, para que eles próprios não as ouvissem. Ulisses mostra, nesta cena, a sabedoria dos homens visionários que, mesmo diante de discursos melodiosos e inebriantes, pedem para que os prendam ao mastro do navio a fim de que não sucumbam. Uma sabedoria que, hoje, rareia. Muitos são os que se deixaram seduzir pelo discurso melodioso de uma ideologia que nos propomos, neste artigo, denunciar, com a agravante de a cera ter derretido e já não parecer haver companheiros de viagem.
Ulisses vive, hoje, provavelmente, o drama de uma outra figura da mitologia clássica, Cassandra, que tinha o poder de prever o futuro, mas era vítima de uma maldição: ninguém acreditava nela.
Hoje, os que ousam pensar por si e denunciar que ‘o rei vai nu’ parecem levar o barco de Ulisses sem companhia e denunciar uma verdade em que já ninguém parece querer acreditar.
Feitas estas notas preambulares, analisemos o assunto chamado a título.

Azul para menino e rosa para menina: o que está em causa?
Têm sido frequentes as notícias de gente que se insurge e censura artigos ou livros em que se referem distinções entre meninos e meninas, considerando-as ultrapassadas e destituídas de sentido.
O mais recente caso prendeu-se com um livro em que se recordava o hábito de associar o azul aos rapazes e o cor-de-rosa às meninas.
Não me interessa, aqui, entrar no detalhe da discussão sobre a relevância ou não de associar o azul aos meninos e o cor-de-rosa às meninas, mas à agressividade e à minúcia com que se está a orquestrar toda uma estratégia que se propõe, não apenas, nem primeiramente, a igualdade entre os sexos, mas sim a igualdade entre os géneros.
Não temos aqui espaço para grandes desenvolvimentos, mas importa, no imediato, sublinhar, primeiramente, que se assiste a um movimento internacional que, como bem recorda a Carta Pastoral ‘a propósito da ideologia de género’ (14 de novembro de 2013), tem em curso um processo que vai da modificação da linguagem à defesa de uma certa ideologia.
Clarifiquemos, antes de mais, que, em nome da dignidade humana, é legítimo, justo, necessário e nunca totalmente concretizado, o desejo de assegurar a igualdade entre o homem e a mulher. Não é disto que falamos, agora. A igualdade entre homem e mulher não poderá, nunca, porém, consistir em não os distinguir, na sua identidade, mas em não discriminar naquilo em que ambos desempenham funções iguais. Feita esta ressalva, regressemos ao que está aqui em causa.

Uma ideologia que começa na linguagem
Como acima se referia, a estratégia da ideologia de género começa na linguagem. Repare-se que não se fala de ‘sexos’, mas de ‘géneros’, sendo que, se se consultarem autores que analisaram esta matéria com detalhe (Aristide Fumagalli, Xavier Lacroix, etc.), poderemos concluir que a mudança linguística veicula uma intenção: falar de ‘sexo’ vincula ao aspeto natural e biológico, enquanto ao falar de ‘género’ (tradução pouco ajustada do termo inglês ‘gender’) se está a referir uma construção mental e cultural. O que se pretende, dizendo-o de modo simples, é desvincular a identidade (neste caso, sexual) da dimensão herdada que é o corpo, a natureza fisicamente observável. Parecendo puro jogo de palavras, a realidade demonstra que não é só isso. Basta ver que são de considerar dois sexos – masculino e feminino -, enquanto a ideologia de género vem aumentando o número de géneros identificados, referindo, já, 92 géneros (!). Não será difícil concluir que, se a lógica vingar, atendendo a que o género é do âmbito da construção mental, poderemos sempre continuar a aumentar o número destes géneros até ao limite do número de humanos sobre a Terra.
As consequências disto são muitas, mas poderemos sublinhar, fundamentalmente, três:
- o ser humano fica reduzido à sua condição individualista (sou eu que me faço e nada devo aos outros ou a algo ou alguém anterior a mim);
- a humanidade é apenas a sua dimensão de pensamento e não a sua história;
- nada devemos à família (somos apenas o indivíduo).

«Quem não distingue confunde!»
Tive um professor de Filosofia no ISET (Coimbra), José de Oliveira Branco, autor de ‘O brotar da criação’, ‘o Deus que não temos’, ‘a pergunta de Job’, ‘O humanismo crítico de António Sérgio’, etc. que recordava, frequentemente, que ‘quem não distingue confunde’. Há, na defesa da indistinção entre o sexo masculino e o sexo feminino, de facto, uma intenção de não distinguir para gerar a confusão. Uma confusão que ganha a muitos, principalmente aos que, desde sempre, quiseram promover os ‘ideais’ do anarquismo e que pretenderam eliminar toda a influência do Cristianismo na matriz ocidental.
Essa eliminação passa, no nosso entendimento, pelas três dimensões que acima referíamos:
- Reduzir o ser humano à sua mera individualidade, contra a visão personalista e relacional com que o cristianismo sempre definiu a condição humana;
- Eliminar da identidade pessoal a influência do corpo, como se o ser humano fosse, apenas, o seu pensamento. É muito curioso verificar que esta perspetiva recupera a lógica do gnosticismo, um dos primeiros adversários com que o cristianismo se depara e que pretendia, inclusive, logo nos primeiros séculos, defender que Jesus Cristo não tinha encarnado, pois isso era indigno de Deus. Hoje, estamos de novo aí. Reduzir o homem ao seu pensamento, à sua alma, e negar que a corporeidade faz parte da sua identidade é cair num novo platonismo, visão que tem origem no pensador grego, Platão, e que contribuiu para que alguns movimentos defendessem que o mundo, a matéria, eram a causa do mal, e não boa criação, como se pode depreender da leitura do livro do Génesis.
- Tornar irrelevante a missão e função da família na construção da identidade pessoal. Neste passo, não resisto a reproduzir aquilo que nos conta Orlando Figes, no seu livro Sussurros, publicado pela Alêtheia, que nos descreve o que pretendia a revolução russa (onde se inspiram muitos destes movimentos que estamos, aqui, a denunciar): ‘Os bolcheviques estavam convencidos de que, obrigando as pessoas a partilhar o espaço vital, conseguiriam torná-las mais comunistas no modo de pensar e nos comportamentos. Os espaços privados e a propriedade privada acabariam por desaparecer, a vida familiar seria substituída pela fraternidade e organização comunista, e a vida privada do indivíduo seria submetida à vigilância mútua e ao controlo da comunidade.’ E porque é que a visão revolucionária atua deste modo? Por causa da visão que tem sobre a família monogâmica. Uma visão pessimista que serve de base à ação da revolução. Nada melhor do que pôr a falar os próprios revolucionários. Diz A. F. Shishkin, autor de ética marxista: «O primeiro antagonismo de classes que surge na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, a do sexo feminino pelo sexo masculino.»
Uma tal visão das coisas terá de resultar, naturalmente, na decisão de que é urgente combater aquela que é considerada a causa de tal opressão: a família.
Muitas tentativas efetivas foram feitas para concretizar este objetivo, mas, até hoje, o grau de eficácia tem sido diminuto. A família pareceu resistir, com segurança. Mas a ideologia de género conseguiu atingir o âmago do problema e está a revelar-se mais eficaz do que qualquer outra estratégia. Passou por legitimar que a construção da identidade não passa por cada um se reconhecer num contexto concreto e situado, em que a família representava o lastro em que cada um se constrói, mas por cada um ser o criador da sua própria identidade. Muitos recordam que a ideia que subjaz à ideologia de género se cunhou na expressão de Simone de Beauvoir que defendia que «ninguém nasce mulher; faz-se mulher».
A pergunta que cabe fazer é se o futuro da realidade poderá compaginar-se com este individualismo extremo. Imagine-se o que seria cada um construir o seu próprio idioma, ou definir as leis à sua medida, ou estabelecer o que lhe caberá dar à sociedade, etc.
O que está em causa é, por isso, muito mais do que a cor de identificação de menino ou menina, mas se ainda poderemos continuar a pensar-nos de acordo com a nossa corporeidade. Não temos, apenas, um corpo; somos corpo! Negá-lo significa construir uma humanidade desencarnada. Mas talvez esse seja o objetivo dos que estão tão eficazmente a levar por diante a ideologia de género. Enquanto os restantes se deixam embalar pelas vozes de sereias…

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