terça-feira, maio 16, 2023

Confissão sentida de um rapaz que foi, por muito tempo, ‘uma’ criança…

 [Este texto é um mero exercício de ironia. Escrevi-o (hoje, convém assegurá-lo…), mas o que nele se defende não corresponde ao que defendo.]

 

Não fosse o marxismo cultural e, com ele, a novilíngua, e nunca me teria descoberto alienado. Mas assim sou, de facto.

Vivi todos estes anos certo de me pertencer, mas descubro que, afinal, vivi uma alienação de que o marxismo cultural me anuncia libertação para breve. Conto com isso, pelo menos.

Senão, vejamos…

Hoje, o marxismo cultural tomou em mãos libertar-nos de uma linguagem que pensávamos plataforma de entendimentos convencionados, mas que percebemos ser, afinal, lugar de opressões de que urge (já peca por tardia essa libertação, garantem-nos!) libertarmo-nos… Onde víamos, até agora, meras convenções que nos facilitavam entendermo-nos, encontramos, agora, com um arregalar de olhos, marcas de escravatura e de machismos reprimidos e opressores.

Libertemo-nos, por isso!

É nessa onda que, após a minha mais entranhada surpresa, decidi empapar esse processo de libertação dos elementos da minha causa.

Descobri que vivi sob uma identidade que me impingiram através da linguagem, identidade desfocada e desajustada daquilo que sou, pelo que me somo aos que pedem que adequemos os termos aos sujeitos a que se refere.

Vejamos, então, o que descobri e constatemos como é urgente que outros somem vozes aos que pedem acabar com os machismos ou as marcas de colonização e outros sinais opressores e desrespeitadores de todas as identidades.

Eu tenho a minha causa a associar a essas vozes.

Pois bem. Cá vai.

Nasci rapaz, mas – vejo, agora, de forma opressora – passaram o tempo a dizer que eu era ‘uma criança’ (Como assim? Que desrespeito para com a minha masculinidade designarem-me como 'a' criança. Constato, agora, por mérito do marxismo cultural, que tal me terá traumatizado, sem que de tal tomara consciência até hoje...).

Não satisfeitos, cresci e passei da infância (eu era um rapaz!) à adolescência (confusão total!) e, desta, à juventude (Irra! Tanto feminino para dizer a vida de ‘um’ rapaz já é abuso!).

E, como se não bastasse, elogiavam-me o que recebiam de mim: a minha voz!

Certamente, nesse desajuste de identidades, procurei refúgio no interior. E o que encontrava, dentro de mim?

Uma alma!

Uma alma? Mas, eu era um rapaz!

Cresci…

Esperei (tomo agora consciência disso, graças ao marxismo cultural que me veio libertar desta opressão de que eu nunca tivera consciência…) pelo avançar da idade (mais uma vez… ‘A’ Idade!) e no que me tornei?

Numa pessoa adulta!

- Bolas! Mas quando é que eu sou quem sou, se afinal a linguagem só me diz no feminino?

E se me dizem que eu sou ‘um homem’, logo me atalham que isso é ‘a minha identidade’…

(Não me livro da opressão feminina que se me impõe…)

A minha descoberta desta dimensão opressora da linguagem que devo ao marxismo cultural gera, porém, uma perplexidade que não consigo superar.

Estranho porque não se entusiasmam os rapazes com ‘a escola’ (talvez por esta ser de provecta idade…). Mas sempre poderiam apaixonar-se pelas ‘disciplinas’, pelas ‘cadeiras’ e, então, se as tratarem pelo nome, o entusiasmo redundará em paixão: ‘a’ Matemática, ‘a’ literatura, ‘as’ ciências (que promiscuidade!), ‘a’ geografia…

Bem, a causa de tal perplexidade ainda está o marxismo cultural por perceber, mas lá chegará a hora em que vislumbrará que libertação nos merecerá nova batalha…

Ah, que felicidade ter descoberto este marxismo cultural que me permitiu descobrir quem sou e que, teimosamente, a linguagem oprimia em redes de escravaturas de liames ocultos!

Ou será sufoco o que me toma a voz que oculta a identidade marcada pela idade de pessoa nascida de uma criança feliz?...

 


segunda-feira, maio 15, 2023

A síndroma do ultrapassado e a religião como antídoto contra os fundamentalismos

Onde há medo, não há liberdade.

Com este pressuposto, tenhamos em conta que nos apavora sermos ultrapassados pela última onda de novidade. Como poderemos sobreviver ao facto de não nos vermos a ‘surfar’ a última onda de mudanças? Vivemos como que oprimidos e amarrados a uma síndroma que nos impede de decidir com tranquilidade: a síndroma do ultrapassado.

Não é de hoje (enraíza-se nos já longínquos tiques setecentistas e oitocentistas do tempo dos estrangeirados em que temíamos que nos escapasse o lugar singular na história…), mas a volatilidade dos tempos, a voracidade das mudanças e a universalização do ‘clique que muda a história’ na ponta da espada digital, tornaram esta síndroma particularmente incapacitante.

Vislumbro nesta vertigem sedutora uma manifestação de um novo absolutismo de tipo ‘crónico’ (de ‘crónos’ - ‘tempo’), constatação que me leva a recuperar uma ideia que tem germinado em mim, desde há muito, e que passo a explicar.

Contrariando uma difundida tese de que o fundamentalismo tem origem religiosa (defendo que os fundamentalismos nascem do medo e de um desejo de poder que é anterior à própria religião, o qual a instrumentaliza), sustento que o verdadeiro ‘antídoto’ contra o ‘veneno’ das verdades absolutas, na história, está, precisamente, nas religiões e que, sem elas, ficaríamos privados das únicas que podem superar, sem cair no relativismo, os perigos de todos os absolutismos.

Explico-me melhor…

A absolutização das verdades, na História, pressupõe que a alternativa a esta absolutização seja o relativismo; do mesmo modo mas em sentido contrário, os relativistas parecem pressupor que são a única alternativa possível à ideia de verdades absolutas e inamovíveis.

Uma e outra convicção são insuficientes e esquecem a alternativa em que as religiões não panteístas são a resposta abstratamente a considerar.

Para entendermos o alcance desta afirmação, tenhamos em conta que as religiões não panteístas (as que distinguem Deus do mundo, não fundindo uma e outra realidade) pressupõem, de forma implícita (mas também explícita), duas condições fundamentais para se problematizar a questão da verdade: que o Absoluto está para além da história e que esta (a História) está em tensão para esse absoluto.

Estas duas condições, reunidas e mantidas unidas, constituem o quadro para a terceira via entre o absolutismo e o relativismo gnosiológico e epistémico.

Por um lado, ao pressuporem que o Absoluto está para além da História, as religiões sublinham que a ninguém deve caber a veleidade de entrincheirar a verdade e impô-la aos outros como sendo definitiva e sem desenvolvimento (mesmo no caso dos dogmas católicos esta consciência está presente, ao falar, na senda do que preconizou o cardeal John Newman [1801-1890], da história do desenvolvimento dos dogmas[1]). Wolfhart Pannenberg [1928-2014], considerado ‘o mais católico dos teólogos protestantes’ sublinhou esta ideia da ‘conquista’ sempre heurística e nunca definitiva da verdade ao afirmar o carácter proléptico da realidade, na qual se antecipa o ‘definitivo’ da História em acontecimentos densamente simbólicos, nos quais se densifica a tensão para o definitivo, no relativo da finitude histórica. Em eventos particularmente teofânicos, antecipa-se o sentido definitivo da história, mas esses momentos prolépticos escapam ao ‘aprisionamento’ no finito. A prolepticidade não é pretexto para uma ideia de ‘absoluto’ conquistado, mas antes sublinha a tensão entre o relativo e o absoluto, evidenciando que o que é particularmente simbólico, na história, deve a sua natureza, não à possibilidade de se absolutizar o agora, mas à abertura do agora e do finito ao infinito, para o qual tende. O absoluto nunca é conquistado e ‘aprisionado’, mas deixa-se vislumbrar, prolepticamente, no finito[2].

Esta condição da realidade faz dela, no dizer de Leonardo Boff[3], transparente: nela ‘transparece’ o transcendente, que não se confunde com ela. O relativo permanece relativo; o absoluto permanece absoluto, mas aquele tende para este.

É esta tensão que se perde numa visão absolutista ou numa visão relativista. Na primeira, a tensão perde-se por fundir no absoluto o relativo; na segunda, por se perder a noção de se encaminhar para o absoluto.

Só as religiões não panteístas podem assegurar essa tensão. Consciência que, bem certo, em muitos momentos da história, elas próprias esqueceram, mas que, como bem recorda Nicolai Berdiaiev no seu ‘contra a indignidade dos cristãos’[4], está nas próprias religiões (em particular, no cristianismo) o antídoto contra os seus próprios limites.

Como pertinentemente observa o não crente Alain de Botton, no seu ‘religião para ateus’[5], jamais a humanidade conseguiu elevar as diversas dimensões e áreas do saber humano para além do que foi conseguido pelas religiões. Contrariamente, porém, a Alain de Botton, não acho que seja por uma insuficiência do saber secular e profano, mas por mérito da religião.

Saberão as religiões permanecer fiéis à sua natureza, nestes tempos radicalizados e extremados entre absolutismos e relativismos?



[1] Cardeal Newman, Apologia, S/L, Verbo, 1974.

[2] Cfr. estas e outras ideias sobre o pensamento de Pannenberg em Luís Manuel Pereira da Silva, Teologia, ciência e verdade. Fundamentos para uma definição do estatuto científico da teologia segundo W. Pannenberg, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2004.

[3] Cfr. Leonardo Boff, Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos, Petrópolis, Vozes, 1993.

[4] Nicolái Berdiáiev, Contra la indignidad de los cristianos. Por un cristianismo de creación y libertad, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2019.

[5] Alain de Botton, Religião para ateus. Um guia para não crentes sobre as utilizações da religião, Alfragide, Publicações Dom Quixote, 2012.

quarta-feira, maio 10, 2023

Um diálogo em condições...

 

Os nossos tempos têm medo… Medo de tudo, mas, particularmente, do outro, do diferente de si próprio. Temos medo daquele que vem de outro lugar, do que pensa de outro modo, do que crê de forma diferente… Por paradoxal que pareça, porém, muitos tomariam estas primeiras afirmações como defesa de um pronto acolhimento das agendas ditas ‘da diferença’. Há, contudo, que reconhecer que uma das maiores promotoras deste medo do outro, do diferente, é, entre outras, precisamente, a ideologia de género (e outras agendas agregadas) que promove um individualismo que fecha cada um em si mesmo, como que revisitando a régua de Protágoras e dando-lhe um novo sujeito: ‘o indivíduo é a medida de todas as coisas’…

Impõe-se, por isso, superar os medos, superar os individualismos enclausurantes, e partir em direção ao outro, ao tu, diante de quem nos definimos como ‘eu’.

A etimologia da palavra ‘diálogo’ ajuda a perceber o alcance desta minha última afirmação.

Uma etimologia fina do que nos diz a palavra ‘diálogo’ permite-nos concluir que ela afirma que a ‘palavra percorre um caminho que vai de um a outro sujeito’. Poderíamos traduzir a palavra ‘diálogo’ como ‘a palavra ao longo de, através de’, como que afirmando que existe uma ‘tensão’ natural, fundamental, que é condição para que a palavra se sinta atraída a sair de um e dirigir-se a outro.

À luz desta etimologia, percebe-se que, para haver diálogo, é necessário assegurar duas condições. Condições que, quando inexistentes, criam o cenário em que se representam os extremismos de direita ou de esquerda.

São essas condições as seguintes:

- Por um lado, diferença;

- Por outro lado, abertura.

Os tempos em que vivemos, radicalizados, polarizados, esquecem uma ou outra condição.

Ora afirmam que, em nome do ‘diálogo’ se fundam as identidades, se omitam as identidades, se neutralizem as identidades, como se tal assegurasse as boas condições para o diálogo. Nada mais errado. A ocultação das identidades impede o diálogo, funde as vozes num monólogo, redundando, por fim, na gritaria dos que elevam mais alto a voz.

Contra esta visão, deve afirmar-se a importância das identidades, da história, da memória, na linha, aliás, do que sustenta a nossa Constituição, quando se refere à natureza da relação entre Estado e Igrejas, e onde se evita uma ideia de laicidade compreendida como silenciamento das religiões ou neutralidade opaca do Estado. A nossa Constituição, ao evitar os termos ‘laico’ e ‘laicidade’ para definir a relação da III República com as religiões, foi sábia, pois compreendeu as lições da História e definiu que a República se relaciona com as religiões como parceiras e como cooperantes na construção da sociedade. A nossa Constituição defende a separação entre Estado e Igrejas, não em nome de uma indiferença e fusão de identidades (neutralizando-as), mas sim em nome da liberdade e identidade religiosa. Evita, com sabedoria, os erros da Constituição francesa que utiliza o termo ‘laica’, criando um problema com as religiões que, felizmente, Portugal não tem.

É esta sabedoria que deveria ter-se sempre que a matéria é diálogo e encontro de culturas. O diálogo não supõe, a esta luz, uma fusão, uma neutralidade das identidades, mas, antes, supõe-nas. Sem identidades, a palavra não percorre um caminho; antes, pára, estagna, não circula…

Este é o risco dos radicalismos de esquerda.

A outra condição é a abertura. Abertura que tem a consciência de que ninguém nasce de si, ninguém se gera a si mesmo, ninguém pode constituir-se como ‘eu’ sem ser diante de um ‘tu’.

O medo do outro, enclausurado numa máscara que faz dele sempre alguém sem virtudes, aprisiona e contradiz o axioma de que sem os outros nunca teríamos consciência de nós mesmos. É diante do outro que nos definimos e não sem o outro. O outro não deveria, por isso, suscitar-nos medo, mas gratidão. O outro é como que a nossa condição de possibilidade, pois, como tenho vindo a afirmar, repetidamente, a nossa liberdade não termina onde começa a do outro (como defendeu Herbert Spencer, preconizador do liberalismo clássico), como se o outro nos limitasse, nos oprimisse e fosse o impedimento para o nosso desenvolvimento, mas antes, a nossa liberdade só é efetiva se crescer com a do outro, se promover a do outro e só germina com a do outro.

O esquecimento disto é o erro dos extremismos de direita.

Radicalismos de esquerda, que fundem as identidades e as neutralizam, ou de direita, que isolam e fecham em si mesmos, esquecem uma das duas condições, absolutizando apenas uma delas.

Ao afirmarem essa condição, que pretendem proteger, parecem seduzir e atrair, mas é sempre bom lembrar aos que, entre os católicos, se identificam com o radicalismo de esquerda ou com o radicalismo de direita que o segredo da catolicidade está em não tomar apenas uma parte, como tantas vezes fizeram as ‘heresias’ (‘heresia’ quer, precisamente, dizer ‘escolha’, ‘opção’, ‘parte’). A verdadeira sabedoria católica está em não ficar com uma parte: é preciso tomar o todo.

E assim haverá um diálogo em condições… Todas!

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