quarta-feira, julho 19, 2023

Um decide, mas dois assumem as responsabilidades…

Perdoe-me o leitor tão simples parábola, mas o poder simbólico que nela se reserva projeta-me para a escrita.

Esta história que aqui contarei germinou no terreno fértil da convicção de muitos de que certas leis ditas ‘liberais’ são sinais de progresso, sem, porém, se deterem a ler para que abismo os leva tal progredir…

 

Mário e Maria são dois amigos de longa data. Os sonhos de um são o terreno dos sonhos do outro. E as suas histórias parecem confundir-se de tão longamente se fazerem em paralelo.

A vida tem-lhes sorrido e projetam criar uma empresa correspondente ao sonho em que se entretecem as suas vidas.

Dão o salto.

Registam a empresa, partilham quotas em partes iguais, certos de que o sonho tem tudo para ser mais real do que o seu próprio desejo.

O lugar para estabelecerem a empresa dos seus sonhos é um belo espaço que o Mário herdou do pai e que ele considera como o seu porto seguro.

Os primeiros momentos parecem fundir sem fronteira o onírico e o real, tal a certeza e segurança com que se lançam à aventura.

Cedo, porém, o Mário começa a evidenciar sinais de que a partilha das responsabilidades iniciais poderá não se fazer corresponder em iguais benefícios.

O espaço onde estabeleceram a empresa veda-se à entrada da Maria que assiste, ao longo de quase três meses, ao passar do tempo sem que a tal correspondam novidades sobre o seu projeto.

Mas ouve dizer que a sua empresa se expande e progride, sem que, contudo, nada saiba sobre o que está a acontecer. Mário nada lhe conta, de nada lhe apresenta informações…

Contam-lhe que celebrou contratos com esta e aquela multinacional e que o negócio vai de vento em pompa.

Cansada de nada saber, tenta, por todos os meios, que o Mário lhe descreva o que vai fazendo. Mas já nem dele sabe. O espaço da empresa é um lugar inacessível, alegando ele – por aquilo que lhe transmite um advogado a quem ele incumbiu de lhe transmitir, a conta-gotas, que o sonho se está a concretizar - que Maria verá como é bonito aquilo em que o sonho que ambos tinham idealizado se virá a tornar.

Cerca de três meses depois de um prolongado silêncio, Mário reaparece, pedindo a Maria que o apoie, pois o sonho está a um curto passo de se esfumar, pois os contratos entretanto celebrados goraram-se e foram, provavelmente, demasiado ousados para as possibilidades com que partiam.

Maria fica atónita…

‘Como pode ele vir pedir-lhe que assuma responsabilidades, quando, durante quase três meses, de nada lhe deu conta, nada lhe disse, impedindo-a, mesmo, de entrar no espaço da empresa, sob o pretexto de estar a preparar o sonho, mas sabendo ela que se devia a um oculto sentimento de que aquilo era terreno dele e, por isso, não partilhável?!”

Maria está diante de vários cenários…

Mário foi quem, durante aqueles quase três meses, tudo decidiu. Como pode, agora, vir pedir-lhe que assuma ela responsabilidades sobre decisões que foram, exclusivamente, dele? Apetece-lhe impunhar todas as decisões, pois deveriam ter sido tomadas pelos dois. Ou, em alternativa, deixar que assuma ele, sozinho, as consequências do que, exclusivamente, determinou ser o melhor rumo da empresa.

Mas, se ela assumir não reentrar na história, esboroa-se o sonho.

O que fazer?

 

Ocorreu-me esta parábola ao voltar a ouvir alguns, que se autonomeiam como ‘progressistas’, alegarem que a eles se deveram as mais relevantes decisões políticas e sociais do nosso país e do mundo.

Ouvi-los recorda-me como os ditos ‘progressos’ significam, tantas vezes, pelo contrário, um retorcer do Direito, tão explicitamente descrito nesta história.

Vejamos porque o digo…

O nosso mundo alega que a legalização do aborto, primeiro nos países coletivistas, na década de 20 do século XX e, depois, nos países democráticos, a partir de 1973 (com o célebre caso ‘Roe vs Wade’, baseado, como é sabido, num perjúrio reconhecido pela própria Roe pouco tempo depois), foi um progresso.

Esta parábola mostra como essa legalização não só não representa um progresso como se baseia num esmagamento e adulteração do próprio Direito, na medida em que, por um lado, desprotege o mais frágil (o filho, que não se retrata na parábola aqui contada), e, por outro lado, entrega toda a decisão a apenas um, vindo a exigir a outro responsabilidades sobre uma nova realidade jurídica sobre o qual, entretanto, não tivera quaisquer ‘direitos’. Dois geram o filho, mas só um tem ‘poder’ sobre ele, ao longo de dez semanas (cerca de dois meses e meio), alegando-se tratar-se de corpo da mulher. (Como assim, se, então, a partir das dez semanas, o homem também passa a assumir responsabilidades sobre o que era, até aí, mero corpo feminino?).

À luz desta simples parábola, é fácil constatar que todos os homens do mundo que assumem (e bem, obviamente!) os seus filhos, nascidos depois da legalização do aborto nos seus países, o fazem, não por uma obrigação ou imposição, mas por um ato de pura generosidade, pois assumem um dever quando nenhum direito tiveram durante um período que medeia entre terem gerado o filho e voltarem a ter (alegadamente) ‘direitos e deveres’ sobre ele. O Direito que os obriga, depois de os ter privado de decidir e entregando a outrem, exclusivamente, esse poder, é, como será fácil concluir, um direito arbitrário. As obrigações do pai recaíam sobre a realidade jurídica que resultara do ato de gerar. As obrigações que são atribuídas, após as dez semanas de decisão exclusiva da mulher, ao pai que fora excluído da decisão sobre abortar passam a recair sobre uma nova realidade jurídica: aquele que resulta da decisão exclusiva da mulher. Só por pura arbitrariedade se exigem a outrem deveres para com aquele novo bem jurídico.

Biologicamente, o filho (contrariamente ao que defendem os ditos progressistas) é o mesmo; juridicamente, é uma nova realidade: o que resulta da decisão exclusiva de um só - a mulher.

Só se quebrará este arbitrarismo jurídico reconhecendo a ilegitimidade destas leis, reconhecendo o dever de tutelar e proteger a vida intrauterina como uma etapa de um contínuo que é a vida de cada ser humano, e invertendo a lógica de desproteção substituindo-a por uma lógica do cuidado em que cada filho humano gerado é um bem reconhecido por toda a sociedade. Um filho humano deve merecer o enlaçar de toda a sociedade em torno do reconhecimento de que nele se deposita a esperança de um amanhã que ultrapassará o limite esperado do tempo dos seus pais. Só haverá tempo para além do que poderão viver aqueles que poderão ser pais se houver filhos que o prolonguem… Um filho em gestação faz de uma mulher uma mãe e confere-lhe uma condição que deve ser acarinhada, acolhida, cuidada, primeiramente, pelo ‘cúmplice’ e corresponsável por esta nova condição, o pai, mas também por toda a sociedade que deve reconhecer a ousadia de ser pai e mãe e o contributo que tal decisão constitui para si, comunidade que se pretende projetada para o futuro. Sem filhos, o futuro é um lugar sombrio e meramente desejado.

Se as leis que temos são o progresso, então, a ditadura e a arbitrariedade jurídica são o húmus de que se fertiliza o progredir…

Não tenho esse conceito de progresso, antes o entendo como a evolução dentro dos limites da lógica e da humanidade. Não contra elas!

quarta-feira, julho 12, 2023

Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Um Deus assim alimenta a esperança e o sonho

   

Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)

Pela mão de Ulisses, no regresso a casa depois da guerra de Troia, temo-nos mantido movidos pelo sonho do Éden. Desde o início, temos feito as pontes entre as duas mais profundas matrizes do ocidente: a influência greco-romana e a raiz judaico-cristã. Como diz George Steiner, no seu incontornável ensaio ‘A ideia de Europa’, na ‘nossa descendência dupla de Atenas e Jerusalém’ está um dos cinco axiomas para definir a Europa (p. 44 – edição de 2007 de Gradiva). Atenas e Jerusalém são, aqui, cidades-símbolo desta dupla fonte.

Fiéis a este nosso lento caminhar, olhemos, agora, em espelho, de que nos falam a ‘teologia’ de Atenas e Jerusalém.

A ‘teologia’ grega (é muito impreciso falar-se de uma teologia, neste contexto. Utilizo, aqui, o termo no sentido da visão sobre ‘o mundo divino’ e não considerando-a como uma detida e argumentativa reflexão…) não poderá alhear-se do seu multitudinário panteão, encimado pela trilogia de Zeus, Hera e Atena – replicados no Júpiter, Juno e Minerva romanos. Todos os deuses clássicos têm nascimento e fragilidades, revelam-se ciumentos e agressivos nas seus reações, ao ponto de Evémero, um siciliano dos séculos IV e III a.C. ter sustentado, como nos recorda Pierre Grimal, no seu dicionário da mitologia grega e romana (sigo, aqui, a edição da editora Antígona, edição de 2020), ‘que os deuses [gregos] são simplesmente homens a quem, pelos seus méritos, pelos serviços que prestaram aos seus semelhantes, foram prestadas honras divinas.’ (introdução, p. XLII)

E uma leitura atenta dos mitos gregos tornará fácil a adesão a uma tal abordagem, que a história consagrou como ‘evemerismo’, decorrendo do nome do seu proponente.

Zeus, o ‘mais importante deus do Panteão helénico’ (p. 468), é filho do titã Crono e de Reia. Sem me alongar na descrição dos mitos que se conservam sobre o deus maior da mitologia grega, sublinho um elemento que passará despercebido ao olhar distraído. Crono, o pai de Zeus, é o titã do tempo. Como nos recordam as mitologias a ele associadas, devora os seus filhos (tenho-o recordado, repetidamente: os gregos lembravam que o tempo (cronos) devora os seus filhos. Nisto, havia muita profundidade de leitura: o tempo devora-nos, de facto!). Para sobreviver, Zeus tem de ser escondido do pai, para que não o devore.

Tudo é trágico e muito comezinho. Tudo é humano, demasiado humano, para aludir a expressão de Nietzsche, esse pensador que nos pretendeu apresentar o cristianismo como decadente e a mitologia grega como o modelo.

Mas onde ficaria o sonho, onde ficaria a fonte da esperança se dos deuses nada mais poderia esperar-se do que encontramos, já, entre os humanos?

Jamais, de facto, poderia encontrar-se entre estes deuses uma qualquer sombra sequer de que o perdão pudesse ser a verdadeira fonte de novas relações entre os homens.

Terá de se esperar, de facto, pelo cristianismo, para se ousar afirmar que o amor não só possa vir a possuir-se como, afinal, que ele é, efetivamente, a origem última de tudo.

Quão longe está destas invejas e fúrias divinas a afirmação joanina de que Deus possa não só ‘ter’ amor, mas ‘ser’, Ele mesmo, Amor!

Tudo, na teologia judaico-cristã aponta para redenção. Tudo parece apontar, na mitologia greco-romana, para a tragédia.

Bem certo que a dimensão trágica nos desperta de toda a tentação de ilusão, mas teria de redundar numa insuperável desilusão?

Tal é a distância entre o desejo humano e a resposta de que nos fala o cristianismo que dificilmente se lhe poderá atribuir a condição de projeção, como pretenderam alguns descrentes do século XIX, com Feuerbach à cabeça.

Uma projeção entregaria o poder aos fortes.

A afirmação do lugar do amor e do perdão partilha o poder entre todos, tornando-nos credores e devedores uns dos outros, simultânea e incessantemente.

O evemerismo é insustentável quando aplicado ao cristianismo, por muito que o pretendam os Feuerbach de outrora e de hoje.

Bem recorda Berdiáiev, no seu ‘contra a indignidade dos cristãos’, que a verdadeira crítica às insuficiências dos cristãos não tem de procurar-se fora do próprio cristianismo, pois nele estão os critérios mais do que necessários para um exigente juízo. Como ele recorda, ‘a rejeição do cristianismo baseado na imperfeição e nos defeitos dos cristãos é, em essência, uma ignorância e uma incompreensão do pecado original. Para os que são conscientes da queda, está claro que a indignidade dos cristãos não desmente a dignidade do cristianismo, mas antes a confirma. O cristianismo é a religião da redenção e da salvação; anuncia que o mundo vive no mal e que o homem é pecador. Outras doutrinas pensam que se pode alcançar a vida perfeita sem ter vencido o mal de forma efetiva. Mas o cristianismo não pensa assim, antes exige uma vitória real, espiritual sobre o mal, um renascimento espiritual.’ (p. 155-156. Edição de 2019, das ediciones Sígueme)

Como poderia esperar-se a redenção se em Deus se n’Ele se projetassem os comportamentos humanos? Donde nos viria a esperança de deuses em tudo iguais aos humanos, igualmente egoístas e irascíveis?

Ah, quão oportunas são, nestes tempos cinzentos e nebulosos, as palavras de Berdiáiev que interpelam a que se regresse à fonte de que pode esperar-se a renovação, em tempos lamacentos e em que a indignidade dos que se dizem cristãos parece projetar-se sobre a própria dignidade do cristianismo!

O nosso sonho é o do Éden, não como um passado a que queremos regressar, mas como um horizonte para que queremos caminhar: o da correspondência ao Amor que Deus é!

terça-feira, julho 11, 2023

Cristianismo e mudança - O elogio da permanência

 


(Este ensaio é um ponto de partida, mais do que um ponto de chegada. Peço, a quem o ler, que tenha a delicadeza de o sorver como quem se deixa levar pela mão, sem prejuízos nem preconceitos… Apenas indo, indo…)

 

Tenho mudado. Muito! Basta-me a constatação de que, hoje, tenho 50 anos que não foram a minha idade de sempre (pois!) para me dar conta de que mudar é uma inevitabilidade, enquanto formos presença na História.

Sim, de facto, mudar é inevitável.

Restará, por isso, diante deste facto incontornável e observável, concluir que o humano é o mudar até se consumir, em definitivo?

Heráclito[1] de Éfeso parecia responder que ‘sim’ a tal interrogação que, não a tendo feito, se supõe nas sentenças que dele nos chegaram, em particular, pela mão de Diógenes Laércio, mas também em comentários de Platão e Aristóteles: ‘tudo muda’. (Copleston aventa a hipótese de esta sentença não lhe pertencer, mas a história guardou-a como da sua autoria.)

Arrisco dizer que, na resposta a tal interrogação, se encontrará o segredo para superar o paradigma prevalecente neste tempo definido como ‘pós-moderno’ (Lyotard), hipermoderno (Lipovetsky), ‘líquido’ ou ‘pontilhista’ (Zigmunt Bauman),agorista’ e ‘apressado’ (Stephen Bertman), e entregue à ‘tirania do momento’ (Thomas Hylland Eriksen). Todas estas tipificações confluem para a ideia de que vivemos tempos massacrados pelo complexo da impermanência, pelo desejo ansioso e descontrolado de mudar, mudar, mudar, na certeza, enfim, de que se não mudarmos, não seremos!

Há algo de incontrolado neste sentimento profundo, coletivamente absorvido e entranhado, criando uma vertigem perante a qual o sujeito, individualmente considerado, se sente impotente, se é que ousa pensar que sente.

Soma-se a este entranhado sentimento, uma convicção inquestionada: não se fez, afinal, a história da humanidade, de grandes mudanças? Não estará, por isso, a escapar-me a mudança em que poderia sulcar o meu nome como protagonista?

E a vertigem avoluma-se.

Perante ela, a pergunta que parece impor-se é aparentemente óbvia: o que cabe mudar a seguir?

Um olhar atento e sereno à história da humanidade verificará, porém, um outro retrato, como se de um palimpsesto se tratasse[2]. A verdadeira história da humanidade é a que se faz e se fez da capacidade de conservar o que, até aí, era efémero. Veja-se como os grandes saltos da humanidade se deram quando se passou a ‘conservar’ na pedra o que não passava de imagens na cabeça (as gravuras rupestres); ou quando se passou a conservar, através da escrita, o que não passava de oralidade; quando se passou a poder conservar em papiro, em pergaminho, em papel, em qualquer outro suporte, o que era, por definição, efémero. Veja-se como se deram os maiores saltos quando se pôde conservar a energia, quando se pôde conservar os alimentos, quando se pôde conservar o que víamos e ouvíamos… Conservar foi a causa dos grandes saltos da humanidade. Pois mudar era o evidente.

Irene Vallejo, num livro sublime de título ‘o infinito num junco’, constata algo que cabe aqui somar ao que acabo de dizer: o que demora a estabilizar-se e fixar-se é mais durável do que o que chega e prontamente se instala. Diante desta constatação, ela conclui que é mais provável haver livros, dentro de cem anos, do que telemóveis. Porque o livro levou o tempo da ‘demora’ a permanecer… Não sei se o vaticínio de Vallejo se confirmará, pois o meu tempo de permanência foi mais veloz do que o do livro e não permanecerei, por isso, tempo suficiente para o verificar, mas antecipo verdade na sua conclusão.

Diante disto, ouso regressar a Heráclito e dizer-lhe que o humano não se define pela mudança. As rochas mudam, as plantas mudam, os animais também mudam. O ser humano, enquanto ‘cadáver adiado’, no dizer de Pessoa, também muda. O que define o humano não é isso. Antes, é a capacidade de se interrogar e responder à pergunta decisiva: o que importa guardar, conservar, perante a inevitabilidade da mudança?

Devia ser a pergunta do cristianismo, hoje, perante os desafios da mudança. Desafios da mudança que são, afinal, os de sempre, porque mudar opera-se sem necessidade da ação humana. Mudar é o facto; o que guardar é que cabe ao humano perceber. O que deve permanecer perante a inevitabilidade da mudança? Do resto se sabe que se sumirá no efémero…



[1] Sigo a grafia de Copleston, na sua única e insuperável História da Filosofia, vol. I.

[2] Um palimpsesto é um registo que se desconhecia existir sob um escrito visível feito num pergaminho. Dada a necessidade de reutilizar os pergaminhos, era frequente, na Idade Média, raspar-se um texto original e escrever por cima…

quinta-feira, julho 06, 2023

Ah, quanto se espera do cristianismo! | A encarnação diante dos novos gnosticismos

 (Artigo publicado na Agência Ecclesia - 3 de julho de 2023)

Nas décadas que antecederam o Concílio do Vaticano II, foi-se consolidando uma convicção (que tivera no movimento litúrgico já notória expressão) de que o encontro fecundo entre a Igreja e a sociedade (e o mundo) não poderia fazer-se sem um retorno às fontes. É, aliás, nesse dinamismo que é criada, pela mão de Daniélou, Lubac e Mondésert, em Lyon, em 1943, a célebre coleção ‘Sources Chrétiennes’.

Este modus cogitandi (modo de pensar), dada a sua fecundidade, deve ser retomado, vez após vez, em particular, em tempos de maior dificuldade em discernir onde se encontra o equilíbrio entre a fidelidade ao que deve propor o cristianismo e a fidelidade ao Homem a quem se dirige. Pela sua natureza tensional, este método comporta um equilíbrio entre dois pontos que asseguram que a tensão não é perdida, sendo que a retirada de um dos pontos quebra a mesma tensão, com custos, seja para a fidelidade ao Homem, seja para a fidelidade ao cristianismo.

Vivemos um desses tempos…

Exige-se, por isso, o regresso às fontes, não para nelas permanecer (perder-se-ia a tensão com prejuízo para a fidelidade ao Homem e ao seu tempo, com consequente infidelidade ao próprio cristianismo que se define como religião de salvação da Humanidade…), mas para que o cristianismo seja significativo, permanecendo fiel a si e sendo-o, também, ao Humano para quem é anúncio de salvação.

Regressemos, por isso, às fontes…

Os nossos tempos trazem desafios ‘generosos’ ao cristianismo, perante os quais a tentação da desistência se agiganta. O regresso às fontes permite, porém, constatar que, feitas as devidas adequações, os desafios recuperam encontros já havidos, no tempo das fontes.

Veja-se que o primeiro desafio do próprio cristianismo foi o do confronto entre a sua emergência localizada, precisamente situada na quase incógnita Palestina, e o cosmopolitismo do helenismo com que se encontra, de forma particularmente exigente, São Paulo. Logo nesse encontro se define com precisão a necessidade do estabelecimento de critérios de fidelidade: distinguir o essencial do acidental é um desses critérios estruturantes. Eram acidentais os rituais herdados do judaísmo; era fundamental a afirmação da encarnação. E veja-se como este elemento fundamental (a encarnação) não se afigurava como marca de fácil conformação ao pensamento vigente. Pelo contrário.

Se estudarmos, com detenção, esses primeiros tempos, percebemos que o primeiro grande embate do cristianismo que – defendo-o desde há muito – se retoma, hoje, no transumanismo e na ideologia de género, é, precisamente, o que resulta dessa afirmação: Deus encarnou!

O helenismo trazia consigo um modo de pensar de influência platónica que veio a seduzir as primeiras comunidades cristãs, num amplo movimento designado como gnosticismo. No dizer de Roque Frangiotti, no seu livro ‘história das heresias’, “os gnósticos […] caracterizam-se pelo menosprezo da matéria, da carne e superestimam a alma-espírito. Para eles, a matéria é má em si mesma, incapaz e desnecessária para a salvação. Mais ainda: a matéria é radicalmente oposta ao espírito. São realidades contraditórias. Por isso, Deus, o espírito perfeitíssimo, transcendente, imutável e impassível, não pode, por nenhuma razão, assumir qualquer parcela de matéria.” (Roque Frangiotti, p. 27)

Não será difícil constatar que com esta mentalidade se confrontou o próprio S. João que, nas suas cartas, escritas em finais do primeiro século ou início do segundo, alerta para a centralidade da encarnação.

Afirma, em 1jo 1,1 (sigo a recente tradução que vem sendo disponibilizada pela Conferência Episcopal): “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram, no que respeita à Palavra da vida: é isso que vos anunciamos. Pois a vida manifestou-se, nós vimo-la e disso damos testemunho: anunciamos-vos a vida eterna, que estava junto do Pai e que se manifestou a nós.”

Assim também em 1jo 4,1-31: “Amados meus, não acrediteis em todos os espíritos, mas examinai-os para ver se são de Deus, porque no mundo surgiram muitos falsos profetas. É nisto que reconhecereis o Espírito de Deus: todo o espírito que confessa Jesus Cristo, que veio na carne, é de Deus; e todo o espírito que não confessa Jesus não é de Deus. Esse é o espírito do anticristo, aquele que ouvistes dizer que estava para vir; pois bem, agora já está no mundo.

E, ainda, em 2jo7: “É que surgiram no mundo muitos impostores, que não confessam que Jesus Cristo veio na carne. É esse o impostor e o anticristo!”

A uma leitura menos fina, poderá parecer que o gnosticismo estará longe do que hoje são os desafios do cristianismo. Na minha perspetiva, esta conclusão será precipitada, pois uma das consequências evidentes do gnosticismo foi a relativização da corporeidade, dispensando, por isso, o corpo da sua natureza de entidade intrinsecamente moralizável. O corpo, para o gnosticismo, não é parte da condição humana, escapa-se-lhe e é, por isso, exterior à própria economia salvífica. Só o espiritual se salvará. E, logo, o corpo escapa à moral e à ética, podendo-se fazer ‘com’ e ‘nele’ o que bem se entende. O Homem que somos, na mentalidade de matriz gnóstica, nada tem a ver com o corpo, que lhe é exterior e alheio.

Veja-se como não estamos longe de uma matriz vigente que exclui o corpo do ser que somos, transumanizando-o e reduzindo o Homem ao pensamento que nele apenas ‘reside’. (Como se não pensássemos tudo o que vivemos, isto é, como se não fosse o nosso pensamento a repercussão do que vivemos enquanto corpo que somos!... Pelo contrário, o que pensamos é, na linha de Merleau-Ponty, “corpo vivido”….).

E como respondeu, no tempo das fontes, o cristianismo?

Reconheceu, com Santo Ireneu, no seu Adversus Hereses (livro IV, 11,2) que ‘Deus faz, o homem é feito’, sublinhando a progressividade e carácter desenvolvimental do ser humano, condição inerente à natureza de ser corpóreo, sublinhando que “a glória de Deus é o homem vivente” (Livro IV, 20,7 – sigo tradução não editada do saudoso Pe. Doutor Franclim Pacheco). Não, parte do Homem, mas, sim, a totalidade do Homem.

Uma análise detida das implicações desta ideologia diante da qual se espera o anúncio da encarnação, por parte do cristianismo, permitir-nos-á verificar que, sem a afirmação de que o corpo faz transparecer a pessoa que somos, estaremos diante de uma antropologia solipsista, em que o que aparece, diante dos outros, é opaco e indecifrável. É, por isso, necessário retomar a centralidade do princípio ‘encarnação’ e reafirmar, aos nossos tempos, que quem somos se vislumbra, ainda que provisoriamente e sempre como mistério a descobrir, mais e mais, no corpo que somos.

O regresso às fontes permite-nos recuperar a esperança de que estes não são os últimos tempos e de que muito se espera do cristianismo: que salve o Homem de se fechar em si mesmo, tentação tão densamente descrita no relato do paraíso. O Adão que quer fechar-se e ser autossuficiente continua, dia após dia, a ouvir os passos, no jardim, e a esconder-se por vergonha… Ou talvez já nem vergonha tenha, mas continuará, certamente, a sentir o som dos passos. E é preciso não ter medo de percorrer o caminho do Éden e dar a ouvir os passos que nos dizem que estamos nus.

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal

  ‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Parceria com a revista 'Mundo Rural' Luís Manuel Pereira da Silva*   Cerca de duas décadas ...