segunda-feira, dezembro 23, 2024

A gambiarra de Natal e os pontos de fixação…


O país anda em polvorosa com as ações policiais. Encontrei a lupa para a sua análise numa situação simples do meu quotidiano.

Por sugestão da minha filha, estendi, ao longo da parede da minha sala, uma gambiarra de natal. Fixei-a em sete ou oito pontos, com recurso a pastilha de fixação (vulgarmente designada, por efeito do frequente fenómeno de ‘colagem’ de uma marca ao produto, como ‘bostik’). O efeito luminoso cadenciado entusiasmou-nos e tudo parecia estar preparado para que os enfeites de natal ficassem para durar.

Após a primeira noite, porém, a gambiarra foi parar ao chão. Um dos pontos de fixação cedera e arrastara toda a estrutura, ponto após ponto, por efeito da lei da gravidade, cujo imposto pagamos com a dificuldade em voar.

Na segunda noite, estive atento. Quando o primeiro ponto cedeu, reforcei a dose de ‘bostik’ e assim se manteve até agora. A estrutura não voltou a ceder.

A situação não podia ser mais exemplificativa do que a realidade portuguesa pedia que visse.

Somou-se, curiosamente, a esta situação quotidiana, a convergência de uma conversa em sala de professores. Contava-me uma colega que, dias antes, percorrera uma das ruas da cidade e encontrara, num troço de uma calçada portuguesa, uma pequena pedra levantada. Decidira repô-la no sítio.

Dias mais tarde, regressara ao mesmo ponto. A pedra que colocara tinha sido, entretanto, retirada e arrastara, entropicamente, outras que, pela sua deslocação, tinham deixado aberta uma ‘progressiva’ cova no chão tipicamente português (não sei se a calçada ou a falta de conservação são o que melhor ilustra o espírito português, mas serve-me, para aqui, a ambiguidade da expressão…).

Ambas as situações são ilustrativas e suficientemente exemplares para que delas se retirem as implicações de múltiplas ordens.

Veja-se como a sua aplicação pode fazer-se ao âmbito pedagógico.

É melhor e mais eficaz evitar a acumulação de problemas e dúvidas e ‘atalhar’ as dificuldades de aprendizagem quando elas se apresentam, em vez de esperar pela acumulação de progressivas dificuldades em que já só planos profundamente transformadores poderão permitir alguma resposta, mas com enormes custos em termos de recursos e com expectativa menor de resultado positivo.

Já Steven Levitt e Stephen Dubner, no seu livro ‘freakonomics’[1], tinham feito uma constatação coincidente com estas intuições. Nos Estados Unidos, os estados com molduras penais mais pesadas (com pena de morte, por exemplo), não são, necessariamente, os que têm menos crimes. A inibição dos crimes não se faz com a ameaça de penas mais pesadas, mas com a eficácia no combate aos pequenos delitos. Se sei que o pequeno delito será punido, isso inibe o progresso para crimes mais graves. Se, pelo contrário, só se ameaça com penas pesadas, os que têm ‘tentação’ do crime confiarão, sempre, na sorte e na expectativa de que não lhes chegue a ser aplicada essa pena.

Ora, é notório, com estes dados, que, mesmo que, politicamente, tragam menos benefícios eleitorais a prevenção e inibição do crime pela punição dos delitos logo no seu emergir, é o método mais eficaz para que se possa garantir uma sociedade pacífica. E, bem certo que, numa democracia que vive dos resultados eleitorais, a tentação será a de mostrar resultados de grande monta, em vez de se dedicar a cuidar e conservar, evitando o avolumar perigoso do peso do ponto de fixação que cede… Mas o que queremos, como sociedade?

Recupero, para a consolidação desta resposta, o que conta Baltasar Garzón, o super-juiz espanhol entretanto caído em desgraça, no seu livro ‘Um mundo sem medo’[2]. Recorda este juiz que o combate ao crime organizado precisa de gente corajosa, que não se deixa vencer pelo medo (onde há medo, não há liberdade!), mas que, para que essa gente corajosa possa atuar, precisa de receber sinais da sociedade. No caso do combate contra a máfia italiana, a operação ‘mãos limpas’ precisou do envolvimento do povo, cansado do crime e da insegurança e que, pouco a pouco, foi dando pequenos sinais (atirar uma pequena moeda para o chão, quando se aproximava um mafioso…) para se agregar em torno da causa que veio a limpar a Itália da influência mafiosa. A operação veio a ser desencadeada após a morte do incorruptível Juiz Guiseppe Falcone, assassinado com a família, pela Máfia, durante uma viagem de carro.

Para os que se interessam com resultados eleitorais, deixar avolumar os problemas permite tornar mais visíveis as respostas, com custos cifráveis e fotografáveis. Mas uma sociedade justa, equilibrada e assente na autêntica paz, que não se faz com recurso ao aumento do som das armas, é feita de decisões pouco visíveis, mas que asseguram a tranquilidade e impedem o que muitos designam como ‘mexicanização’ das sociedades.

O sonho está nas nossas mãos. O ponto de fixação soltou-se? É preciso voltar a fixá-lo… A gravidade não perdoará se deixarmos que outro ponto vacile.



[1] Steven Levitt e Stephen Dubner, Freakonomics: o estranho mundo da economia, Lisboa, Presença, 2006.

[2] Baltasar Garzón, Um mundo sem medo, Porto, Ambar, 2006.

Natal: 2000 anos depois, o escândalo continua…

 

Artigo originalmente publicado no Correio do Vouga

Luís Manuel Pereira da Silva*

‘Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria que o será para todo o povo: hoje, na cidade de David, nasceu-nos um Salvador que é o Messias Senhor!’ (Lc 2, 10)

A frequência da escuta embotou-nos os ouvidos que já amenizaram o escândalo, como se de um lugar-comum tratassem as palavras que recordam o mistério. (Ou teremos levado tão a sério o convite a que não tivéssemos medo que, efetivamente, o superámos?)

Mistério evoca sempre a ideia de uma realidade diante da qual cabe fazer silêncio, emudecer-se. Mas o mistério cristão, escandaloso como sempre, já não é, apenas, uma realidade diante da qual cabe fazer silêncio. É um desvendar da realidade que, de tão denso, nos interpela a reler a existência e reconfigurar o nosso olhar. O mistério cristão define-se, essencialmente, como realidade que, de tão densa, é paulatinamente desvendável, mas nunca suficientemente abarcável: tomamos parte mas muito mais é o que nos escapa. O que se capta, porém, é já suficientemente significativo para nos dar novo sentido à existência.

Deste modo de pensar o mistério se trata ao falar do da Encarnação.

Dois mil anos volvidos, o que aconteceu em Belém continua, aos ouvidos atentos de hoje, a ser motivo de escândalo e estonteamento.

Ao tempo, fora-o para judeus, incapazes de aceitar que o distantíssimo Deus, de que só nos poderíamos acercar pela Sua Lei, pudesse tornar-se humano. Essa kenose, tão sublimemente enunciada pelo também judeu Paulo de Tarso, no seu hino cristológico feito epístola aos Filipenses, era inaceitável para os ouvidos judaicos. Não o era porque a corporeidade não pudesse ser abarcável pela sua compreensão de Deus, mas pela insignificância do humano, perdido desde o paraíso e errante pelo mundo. Ver a Deus era de todo impossível. Encarnar era, então, inadmissível.

Fora-o, também, para os gregos e todos os que, na senda do espírito helénico, reduziam o homem ao seu espírito, encarcerado que estava num corpo material, essencialmente mau e de que se pretendia a libertação.

As duas reticências permaneceram, ao longo da história… A reticência judaica e a reticência grega.

A encarnação, para os que não a anestesiam sob a capa da habituação, constituiu-se, ao longo dos tempos, escândalo maior, seja pela via judaica, seja pela grega.

Pela judaica, pela natureza de Deus; pela via grega, pela natureza do homem.

Hoje, o pêndulo continua a oscilar entre os dois ímanes.

Tende, porém, a ser mais fortemente atrativo o íman grego, nestes tempos que voltam a reduzir, gnosticamente, o homem ao seu pensamento e à sua alma.

A encarnação e a sua celebração como natal continua a escandalizar estes tempos para quem alguns de entre nós dizem habitar corpos que não são os seus. Como se não nos fizéssemos do encontro indissociável entre matéria e forma, impossibilitada que é a existência de uma essência (forma) sem a sua materialização (matéria).

Hoje, celebrar o Natal volta (continua, talvez!) a escandalizar porque se aceitou como verdadeira a afirmação de que alguém pudesse pensar-se sem se pensar no aqui e agora. O poder que tem o pensamento de voar convenceu alguns de que o voo fosse uma abstração e não movimento do pensamento concreto de alguém, situado e situável. O pensamento é sempre de alguém, com toda a sua história, feita de chão e habitar lugares concretos. É identidade feita caminho, feita de história, de tempos e lugares finitos de que se guardam lugares vividos, para abrir, antecipando, lugares a poder viver. Mas é um sujeito concreto, real, corporeamente real, que mora o passado, o presente e se lança para o futuro. É indissociável do seu realizar-se concreto.

Mas o íman grego continua a atrair…

O escândalo cristão continua a dar atualidade ao anúncio de que ‘hoje nasceu-vos o Salvador’, que é o verdadeiro ‘Emanuel’, ‘Deus connosco’. Apesar de instados a não temer, continuamos a ter medo e a recusar…

Aos nossos olhos de vidas tão curtas, 2000 anos já seriam tempo suficiente para se esperar que o escândalo se tivesse suplantado. Mas Deus é paciente e, aos seus olhos, nunca é tarde.

Deus continuará a precisar de nos anunciar, pela voz daquele que traz a mensagem, que, de uma só vez, Ele mesmo encarnou. Não como quem reencarna, para o repetir vezes sem conta, mas como quem assume, de uma só vez, de forma singular e irrepetível, a história única do encontro entre o Eternamente Outro e aquele em quem quis refletir-se como imagem e Sua semelhança. Os primeiros cristãos sabiam da natureza escandalosa de tão denso mistério e das suas implicações para o reconhecimento da unidade indissolúvel do humano. Por isso o quarto evangelho utiliza o termo grego ‘lógos’ (cuja tradução para português por ‘Verbo’ – do termo latino ‘verbum’– atenuou a força do significado), em que se congregam ideias como a de ‘palavra’, ‘pensamento’, mas também ‘ação’ e, numa densificação da etimologia, podemos chegar à ideia de ‘reunir’, ‘recolher’, ‘juntar’ (‘Logos’, in Logos, vol. 3, p. 475). João sabe que Aquele que ‘recolhe’, junta, reúne’ é, Ele mesmo o ‘Reunido’.

No mistério do Natal, afirma-se, enfim, que a realidade é toda ela - face às forças que pretendem cindir, separar, dividir - intrinsecamente simbólica, isto é, agregadora, unitiva. O Natal supera, por isso, a tentação de Adão: queria ser, unidimensionalmente – só ele, fechado em si, autossuficiente, uma só dimensão. O Natal é a explicitação de que a realidade se define, essencialmente, como unidade da alteridade, como encontro, como ‘lançar juntamente’ e não como separação.

É por isso (e precisamente por isso!) que a religião que nasceu deste mistério fundamental foi a criadora da ideia de pessoa. Não somos indivíduos fechados, autossuficientes, mas ‘pessoas’, seres intrinsecamente definíveis a partir do encontro, do ver-se e compreender-se a partir do tu.

Tudo isto está em causa, nestes tempos em que o Natal voltou a densificar-se como escândalo.

Verdadeiramente, é preciso voltar a anunciar que um Salvador nos nasceu, de uma vez por todas, para nos salvar do risco e da tentação da divisão, da dissolução da unidade incindível que define o ser humano, feito de ‘húmus’, de terra, de pés no chão real… Somos o que Deus quis ao criar-nos como Adão: imagem e semelhança no facto de sermos relação, encontro, real e feito do pó e da terra onde nos realizamos. Somos um fazer-se… Não um pensamento e alma imutável e definitivamente realizada e implantada num corpo.

O Natal restaura a humanidade como humana, contra a sedução dos ímanes judaico e grego.

O elogio do assentimento | Para uma sociedade da confiança!

 Artigo originalmente publicado na Agência Ecclesia

(Caríssimo leitor, antes de iniciar a leitura deste artigo, solicito-lhe que verifique a sua respiração. Dê-se conta de que respira.

Assegurado dessa condição, pode, então, prosseguir, lendo esta reflexão…)

 

A modernidade, particularmente após a convicção cartesiana de que precisamos de nos certificar, em cada momento, da verdade das nossas convicções, gerou na humanidade uma atitude de desconfiança constante.

Para mais, Descartes, não satisfeito com essa pretensa segurança, deslocou a fonte da certeza e da confiança para o sujeito individualmente considerado e solipsisticamente isolado.

O filósofo francês lançou, de uma assentada, um duplo envenenamento na estrutura mais basilar da condição humana: gerou-lhe, por um lado, uma condição, não de dúvida metódica, como dizia pretender, mas de dúvida sistemática, e, por outro, convenceu-nos de que a sua resolução só poderia operar-se rompendo os laços com os demais.

Ficou o sujeito isolado, na sua dúvida e busca de certezas.

 

(Caríssimo leitor, recordo que deverá assegurar-se das boas condições respiratórias. Inspire… Expire…

Verificadas as condições, prossiga com a leitura.)

 

Sobrou uma solidão suicida, em que os outros se afiguram como estorvo e impedimento. Se a dúvida só se resolve na busca interna de ideias claras e distintas, o outro, diante de mim, para além de poder ser nada mais do que uma projeção, é dispensável e, no limite, um autêntico obstáculo à minha busca de me realizar, sendo, no dizer de Sartre, muitos séculos depois, um inferno (‘o inferno são os outros’, concluía…).

Os esforços por resolver este nó górdio que herdámos de René Descartes têm falhado, muito provavelmente porque se propõem desfazê-lo mantendo a convicção mais estruturante do pensamento cartesiano. Quem procura desfazer o nó mantém-se convicto de que o pensamento humano só é seguro se for cético, se partir, a cada momento, da estaca zero, sem nada pressupor como merecedor de confiança.

 

(Meu bom amigo leitor, não avance sem voltar a verificar que respira. Inspire… Expire…

Agora, avance…)

 

Um tal quadro promoveu a convicção societária de que a autêntica convivência entre os humanos só poderia garantir-se, já não assente em pressupostos tomados como seguros e universalmente aceitáveis, mas sobre uma neutralidade a-histórica considerada a única condição possível para que sujeitos isolados pudessem entender-se, pois de nenhum se pressupõe o que quer que seja.

O corolário deste processo está diante de todos.

Vivemos em sociedades em que nem a história pessoal de cada indivíduo, mesmo quando acompanhado pelos seus progenitores que o viram nascer (menino ou menina), mas que desconhecem em que ‘ideias claras e distintas’ vai assentar a sua vida, pode ser tomada como pressuposta ou confiável. O sujeito, isolado e solitário, é que tem o poder de dizer que identidade o define. Os outros não lhe podem aceder, oculto que está no seu pensamento fechado e hermeticamente enclausurado.

 

(Amigo leitor, faça uma última verificação da sua respiração. Inspire… Expire…

Pode avançar…)

 

O percurso, presumível desde o início, pois as sementes permitiam vislumbrar a natureza da árvore que delas brotaria, deveria ser suficiente para que as sociedades devessem ter há muito abandonado os pressupostos cartesianos aqui enunciados.

Nenhum ser humano se estrutura, saudavelmente, sobre os pressupostos em que Descartes fez assentar a (sua) modernidade.

Uma outra modernidade deveria tê-la suplantado, imediatamente.

Uma outra assente sobre a ‘ideia clara e distinta’ – sim! – de que a primeira certeza que temos é a da existência dos outros. Eles estão aí, diante de nós, e é deles que herdamos todas as sementes que, em nós, germinarão com os traços que lhes acrescentaremos, com o avançar da nossa existência.

Herdamos deles a biologia, a nossa base psicológica, a descoberta do ‘tu’ diante do qual nos tornamos ‘eu’, a língua, a cultura, etc.

Herdamos e é diante da herança que nos diferençamos e não, como Descartes pressupõe, somos uma tábua rasa em que, posteriormente, se ‘colam’ os elementos vindos do exterior.

Nós somos nó de encontros e, nesse pressuposto, distinguimo-nos, num segundo momento (num movimento de exteriorização).

O primeiro momento não é, por isso, o da reflexão ‘clara e distinta’. O primeiro momento é o do assentimento, o da anuência, o do acolhimento do que recebemos e diante do qual, num segundo momento, nos distinguimos.

Uma sociedade assim, uma sociedade do assentimento, é uma sociedade baseada na confiança, ao invés da sociedade cartesiana, estruturada sobre a desconfiança e a dúvida sistemática.

Como defendi, já há algum tempo, urge inverter a ‘dúvida metódica’ para um registo de ‘confiança metódica’, o assentimento que pressupõe que o outro não só não é um inferno, como é, inclusive, a condição de possibilidade de existirmos.

Sem o outro, diante do qual nos tornamos ‘eu’, jamais emergiria a consciência de nós mesmos.

Esse assentimento não é, porém, fruto de uma reflexão discursiva, racional, mas é meta-racional, anterior à própria racionalidade.

É, aliás, semelhante ao que acontece, biologicamente, com cada ser humano.

Não estamos, permanentemente, a verificar a nossa respiração (como ‘teimosamente’, fui solicitando, ao longo deste texto). Só quando estamos doentes ou a precisar de reparar desvirtuações é que nos detemos no respirar. Que o digam os que, por doenças pulmonares, precisam de auxílio para este tão básico ato! Quanto desejam não ter de pensar no respirar!

Mas, sem ser por situação patológica, a nossa existência não precisa de estar a racionalizar o seu respirar. Pressupõe-no!

Dir-nos-á esta necessidade cartesiana de sempre pôr em causa os pressupostos, com tantos custos societários, que esta é, afinal, uma ‘modernidade’ doente?

Exigem-nos que sempre nos fixemos na ‘inspiração’ – ‘expiração’… Quando poderemos, afinal, viver como humanos?...

Só quando aceitarmos que a vida se baseia, afinal, num genuíno e ‘metódico’ assentimento, o reconhecimento de que, para sermos acolhidos temos de estarmos dispostos a acolher o outro.

Respire fundo, caro leitor. Pode, finalmente, viver!

EDUCADORES COMO AUTÊNTICOS PEREGRINOS DA ESPERANÇA | O PEREGRINO, O ALFORGE, O CAJADO E A META

 Conferência proferida online em 26 de outubro de 2024


1 | O PEREGRINO

Sabe que não tem aqui morada permanente, mas habita os tempos e os lugares, ao invés do turista que passa e não os habita nem se deixa habitar.


Este dinamismo do peregrino é dos mais fecundos para se compreender a educação. Educar não é entreter. É fazer caminho, não como quem vê e sobrevoa as coisas, mas como quem se constrói em cada experiência. 

Um dos grandes desafios de EMRC, na escola de hoje, é o de fazer dos nossos alunos peregrinos quando tudo os desafia a que sejam meros turistas. 

E, para mim, uma das causas deste ‘turistizar’ da educação está no facto de pressupormos que o desafio da tolerância e do respeito signifique o silenciamento das identidades.

Esta foi a matriz, durante muito tempo, por influência da perspetiva francesa da laicidade, que entendia que o lugar público era um lugar de neutralidade, na senda da teoria da secularização de autores como Peter Berger.

Uma perspetiva que, no caso português, era reforçada na convicção equívoca de que a constituição da III República defendia uma laicidade à francesa. Esta visão é, como disse, equívoca. A nossa constituição, ao omitir, intencionalmente, a referência à laicidade, e ao defender, no artigo 41º, número 4, que «As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.», está a defender, não uma neutralidade e indiferença do Estado para com as igrejas, mas, pelo contrário, a sustentar que, em primeiro lugar, está a liberdade religiosa.

Foi este entendimento que permitiu que, em 1987 e 1993, quando se pronunciou de modo claro sobre a nossa disciplina, o tribunal constitucional não tenha encontrado sinais de inconstitucionalidade na oferta desta disciplina, no sistema educativo público. Isto deveria acabar de uma vez com as dúvidas sobre a legitimidade da nossa disciplina que encontra, ainda, mais respaldo, no direito prioritário dos pais à educação e, naturalmente, para além disto, no direito concordatário que também só é possível porque a constituição o permite.


Ora, mas regressemos a Peter Berger.

A perspetiva deste e outros autores que fizeram escola era a de que as identidades, em particular as de matriz religiosa, iriam tender a desaparecer. Ficaria um espaço comum, sem identidades.

Peter Berger, um dos grandes gurus desta visão, veio, nos últimos anos, rever a sua tese. 

No livro ‘os numerosos altares da modernidade’, Berger vem reconhecer que estava errado. O futuro não será o do silenciamento das identidades e das religiões, mas o da convivência entre as diversidades religiosas.

É precisamente isso que temos, hoje, nas nossas escolas.

E o que deve fazer uma identidade específica, neste contexto, por exemplo, uma identidade como a da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica? 

Deve adotar duas atitudes simultâneas: reconhecer a sua identidade e (como propõe o documento Unitatis Redintegratio) formular uma hierarquia das verdades em que seja notório o que é fundamental, mas dispor-se, também e simultaneamente, ao diálogo. 

Sem uma destas duas condições – identidade e disponibilidade para o diálogo – o diálogo não pode existir. Não pode existir se não houver identidades – há monólogos ou discursos vazios – não pode existir se não houver disponibilidade para o diálogo – cada identidade permanece fechada em si. Só restará o conflito.

Ora, diante destas constatações, é fácil perceber que uma disciplina como EMRC não só tem a sua legitimidade reforçada, mas também pode ser um fator de criação de pontes.



 2| O ALFORGE

Não pode encher-se de ‘coisas’ pois sabe que o impedem de caminhar. Centra-se no ser.

Gostava de iniciar este ponto recordando um bom amigo, padre, que lutou contra um cancro, e partiu em setembro de 2023. Organizei, com ele, ainda ele desconhecia a doença, a passagem dos símbolos da JMJ por uma das escolas que ficava numa das paróquias dele.

Morreu como viveu toda a vida: muito sereno.

Num dos últimos telefonemas que lhe fiz, perguntei-lhe: ‘Padre Zé Augusto, como consegues viver, com esta serenidade, estes dias?’

Respondeu-me:

- – ‘Luís, há, no tratamento uma parte que depende de mim. Estou a fazê-la. Outra parte que depende dos médicos. Estou certo de que estão a fazê-la. E há uma parte que não depende, nem de mim, nem dos médicos. É o lugar da confiança. Confio-me…’


Esta é a atitude de quem tem o alforge de peregrino.

Percebe, com clareza, que há âmbitos que dependem de si. Não os transfere para outros. Responsabiliza-se por eles. 

[Faço aqui uma pequena deriva. Uma confidência. Entendo, interiormente, que o agrupamento onde estou é a minha terra de missão. Sinto-me como que uma presença do pastor (que não sou, bem certo) que não abandona as suas ovelhas. No início de cada ano, verificando que houve desistências, vou conversar com os alunos que não renovaram a matrícula. E lanço uma iniciativa de convites aos que nunca frequentaram. Neste ano, esta dinâmica já fez com que 32 alunos novos ou regressados se inscrevessem…]


Voltemos ao ponto de análise da resposta do meu amigo…

Há outros aspetos que dependem dos que estão próximos de si. Incentiva-os, pergunta-lhes, interpela-os. Acompanha para que não baixem os braços e cumpram o que lhes é devido.

Mas, por fim, sabe que há partes que não lhe cabe a si determinar. Confia. 

Não se angustia. 

E não confia no vazio. Confia em Deus amor.

Quanto mais tempo tenho de professor de EMRC, mais confirmo a necessidade que os nossos alunos têm de que, na reflexão, lhes falemos do amor que Deus é. Isto não trai a distinção entre EMRC e a catequese, mas seria uma traição à disciplina e aos alunos não o fazer.

Conto-vos uma situação passada com um aluno que não era batizado, não frequentava a catequese.

O único contacto dele com o cristianismo era através de EMRC.

Na unidade sobre as origens, eu tinha insistido na ideia de que somos seres criados à imagem e semelhança de Deus. Sublinhei como a nossa capacidade de amar, a liberdade, a nossa capacidade de nos abrirmos ao transcendente eram marcas dessa condição icónica do ser humano.

Um aluno, de nome Leonardo, diz-me: ‘professor, posso acrescentar uma conclusão: se somos seres feitos à imagem e semelhança de Deus, e se Deus é Criador, então, também é sinal de sermos à sua imagem o facto de conseguirmos criar.’


Eles precisam de olhar o mundo de um outro modo, o modo que EMRC tem para lhes propor.

Para aqueles de nós que possam pensar que a identidade religiosa de EMRC possa ser uma menos-valia, recordo o livro de Alain de Botton, ‘religião para ateus’, um livro escrito por um descrente que olha com admiração para as religiões (que, para ele, não passam de construções humanas; parte que custa a ler, neste livro!) e que afirma que, até hoje, a humanidade nunca foi capaz de superar a eficácia que as religiões conseguem, numa série de áreas: nas motivações morais, na solidariedade, na arte, na educação, etc.

Ler este livro poderia ajudar a perceber que relativizar a identidade da disciplina é um erro e um retrocesso.

Um erro e um retrocesso para a disciplina, mas também para a educação.

Veja-se como é difícil para cidadania e desenvolvimento fundamentar porque haveremos de cuidar dos outros, de acolher os outros, cuidar do ambiente.

Normalmente, a fundamentação faz-se ou com base no medo (ai que estão aí as alterações climáticas; ai que estamos na iminência do fim do mundo, ai… ai…) ou com base na lei positiva (está escrito aqui e ali… Na convenção A, na declaração B…).

EMRC fundamenta e diz-nos porquê e só EMRC o pode dizer: o mundo é dom e o outro é meu irmão.

No diálogo com filosofia, é também notório em que medida EMRC é imprescindível: a filosofia pergunta e deixa os alunos vazios e enredados em perguntas. 

EMRC pergunta, bem certo (isso tem sido reforçado), mas não se fica pela pergunta. Os alunos, como sujeitos humanos, sujeitos de sentido, procuram resposta. EMRC aponta resposta.


3 | O CAJADO

O peregrino está consciente de que não é omnipotente; sabe que cairá muitas vezes. O cajado é símbolo do perdão: irá errar mas não se tornará errante.

O cajado expressa a ideia de que somos seres que, no peregrinar, irão cair e precisarão de se levantar.

É, hoje, no contexto escolar, das «águas» de que mais se necessita. Os nossos alunos (mas também os professores e assistentes operacionais) vivem, muitas vezes, a angústia de um dia terem ‘errado’. Muitos deles, por causa disso, tornaram-se ‘errantes’.

EMRC e o professor de EMRC tem uma missão única, na escola. A mensagem de que o erro não tem de significar uma errância permanente é forte e necessária. 

Um aluno que reprovou, uma vez, não tem de se considerar um falhado.

Confidencio-vos que foi conversa que tive, com vários alunos, no início deste ano.

Ouvirem um professor dizê-lo é, para eles, uma surpresa.

E uma surpresa que só a experiência cristã do perdão pode dar solidez.

A esta experiência de perdão que surpreende associo uma nota que não posso deixar de fazer. Nas minhas aulas, um dos sinais deste perdão é o humor. 

Deus é amor, mas também é humor.

O humor que acontece quando nos enganamos ou quando queremos repreender de forma original e com uma ‘graça’ surpreende.

E, ao humor, acrescento o jogo. 

Os meus alunos estão, muitas vezes, em dinâmica de jogo. Integram um jogo, da primeira à última aula: o jogo ‘um por todos e todos por um’. 

Um jogo que os compromete uns com os outros (posso explicar, se o tempo o permitir).


4 | A META

Os seus pés pisam o chão e sobre ele habita, mas o seu coração aponta-lhe a meta: aí vai buscar a fonte da esperança.

Face às correntes de mindfulness e outras correntes que, bem-intencionadas, rapidamente esbarram na verificação de que o sujeito só se está a encontrar a si mesmo, num narcisismo fechado que só adia a depressão e a tristeza, EMRC é um oásis, no espaço escolar, que suplanta as miragens e diz que a esperança não é uma vaga utopia ou um subjetivo desejo. 

A esperança de que falamos nasce de um acontecimento, de um real encontro pessoal, não de um efeito de espelho que reflete o sujeito apenas um pouco para fora de si. 

Só este pressuposto permite que se fale do amor como algo maior do que um mero sentimento voltado sobre o sujeito. Só EMRC pode falar do amor como o oposto ao egoísmo. Só emrc pode falar, aliás, de egoísmo. Ninguém arrisca, noutros contextos, falar de tal coisa.

Só EMRC arrisca falar de real fraternidade e não, como fez a revolução francesa, fala de fraternidade, mas, primeiro, mata o Pai comum para instaurar, a seguir, uma orfandade…

EMRC olha para o outro como irmão.

EMRC fala aos alunos de um sonho e é com base nesse sonho que olha para o mundo e cuida dele. Não como quem tem medo, mas como alguém que, movido pela esperança, protege, trata bem. 

EMRC dá os fundamentos que outros estão impedidos, por causa da ‘neutralidade’ vazia, de facultar…

É por tudo isto que as palavras de Jesus que estão entre as mais frequentes dos evangelhos – ‘Não temais’ – continuam a ser-nos dirigidas, nestes tempos.

Não temais!

Temos, orgulhosamente, motivos para a esperança e, nestes tempos de tantos desesperos, se não a levarmos, alguns continuarão a ‘turistar’ quando poderiam tornar-se peregrinos.


sábado, dezembro 07, 2024

Sabes, leitor... | 12 | Marca de água do livro de Mariolina Ceriotti Migliarese, 'O casal imperfeito: e se também os defeitos fossem um ingrediente do amor?'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Mariolina Ceriotti Migliarese, O casal imperfeito: e se também os defeitos fossem um ingrediente do amor?, Apelação, Paulus Editora, 2022.

Mariolina Ceriotti Migliarese conjuga dimensões raramente reunidas na mesma pessoa: o suporte científico (é médica, neuropsiquiatra infantil e psicoterapeuta de adultos e casais), o realismo de quem conhece o ‘barro de que somos feitos’ (é casada desde 1973 e mãe de seis filhos), uma consolidada base teórica de antropologia [refletida na sua prolífica obra publicada: em português, encontro edições de ‘O casal imperfeito’ e de ‘erótica e materna: viagem ao universo feminino’, mas contam-se, ainda, entre os seus títulos, ‘Querido médico. Respostas a famílias imperfeitas’ (2013), ‘Masculino. Força, eros, ternura’ (2017), ‘Casa comigo, novamente!’ (2020), ‘Alfabeto dos Afetos’ (2021), ‘Perfeitos imperfeitos’ (2022) e ‘Pais e Filhos’ (2023). É coautora dos livros ‘Apoiando a Paternidade’ (Franco Angeli, 2011), ‘Pré-adolescência’ (Franco Angeli, 2013), ‘Ser Mulher líder’ (SDA Bocconi, 2017)], e a atitude de sonho de quem não se rende ao já conquistado e adquirido (é crente!).

Conheci esta obra de Migliarese, que li entre os dias 6 e 16 de setembro de 2022, quando escrevia a unidade letiva dedicada a ‘o Amor e o Amar’, editada pela Fundação SNEC, e na qual fiz eco de ideias e citações. Revi-me e regozijei-me por ver, com a força de letra gravada em texto escrito, muitas das ideias que venho consolidando no meu pensamento e, inclusive, escrevendo.

Entre elas, a ideia estruturante de que devemos pensar-nos a partir da finitude e da fragilidade, como defendi, em 2008, em tese de mestrado e que repercuti no livro ‘bem-nascido… mal-nascido…’ (edição da Tempo Novo, 2019). Essa é uma das ideias-alicerces deste livro: somos imperfeitos e é a partir da imperfeição que devemos pensar-nos e pensar as nossas decisões. Muito do que hoje nos ‘deprime’ nasce da ilusão da perfeição já real.

Grande ponto de partida!

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

 

Migliarese resiste, neste livro, àquela que considero ser a ‘grande tentação’, a que chamarei ‘sedução’, do nosso tempo… Entre as grandes ‘seduções’ dos discursos contemporâneos está a presunção da descoberta d’a’ resposta numa dimensão por si absolutizada e elevada à condição de ‘resposta definitiva’. O Homem ou é ‘corpo’, ou é ‘espírito, pensamento; o Homem ou é o agora (a emoção, o sentimento), ou é a sua história (o que foi, o seu passado) ou o que há-de ser (o seu futuro, o projeto). OU… Ou…
Talvez a esta condição contemporânea se deva a tão acentuada clivagem dos discursos. Valerá a pena recordar o que a história do cristianismo de matriz católica sempre evidenciou perante esses discursos. Viu-os como ‘escolha’, mas, como ‘escolha’ que absolutizava uma só dimensão, não reconhecendo neles o mérito de ‘ortodoxia’, ‘opinião correta, acertada’. Olhou-os por isso como ‘haeresis’, isto é, escolhas, opções, mas com os limites próprios dessas escolhas de apenas partes. Era preciso olhar o todo.
Migliarese olha o todo.
Não olha para o ser humano apenas em parte de si. Não escolhe o ‘espírito’ contra a carne (a corporeidade) ou a carne contra o espírito, sedutoras tentações de todos os tempos e hoje revisitadas como transumanismo e outros poderosos movimentos antropológicos, essencialmente desencarnados, ou como monismos materialistas que reduzem o humano à horizontalidade do visível.
Antes, vê o Homem como um todo, projetado para além de si, mas também essencialmente imperfeito.
Não o olha só enquanto presente… ou enquanto apenas passado… ou, ainda, como apenas futuro!
O humano de MIgliarese reside na tensão entre os três vetores do tempo. É memória, atualizada na decisão que se repercute, necessariamente, em consequências. Donde, a responsabilidade!
E é por isso que o texto de Migliarese nos contagia e prende.
Vemos, nas histórias que conta, as mil e uma histórias de reais mil e uma noites de luz e treva que domiciliam as nossas existências. Histórias em que o realismo de nos sabermos finitos, frágeis, débeis, imperfeitos, poderia ser a resposta perante as ilusões e idealizações em que o ‘sonho’ redundou em pesadelo. Aceitarmo-nos imperfeitos e, por isso, carentes do real perdão que deve fazer parte das histórias que se querem para sempre, é condição para que se construam histórias perfectíveis e, por isso, nunca suficientemente perfeitas.
É particularmente belo o que diz sobre o perdão, que não é ‘esquecimento’ (denunciando mitos tantas vezes difundidos e responsáveis por tantos fracassos), nem minimização, nem um regressar ao ponto anterior, mas reconhecimento da gravidade da ofensa como condição para que o mal feito não continue a fazer-nos mal.
Neste livro, mora dois pressupostos que tenho vindo a repercutir em muito do que escrevo (e, por isso, tanto me revi nestas páginas): que a liberdade não é um exercício de legitimação do que pretende a vontade, mas a determinação de transcender o que se quer e que o amor é muito mais do que um sentimento, mas o envolvimento da pessoa toda, compreendida como inteligência, vontade e afeto, em que amar é a decisão profunda de acolher o outro e o pretender fazer feliz, sendo feliz nessa decisão.
Este livro, porque fala de casamento e da constituição da família, é, como seria de esperar, um convite. Não o convite para um momento efémero e fugaz, mas um convite a transcender a efemeridade de uma hora, sabendo que é na revisitação da decisão primeira, alimentada em cada dia, que se assegura a verdade do amor para toda a vida e de toda a vida.

 

Na mesma página que o autor (citações)

‘Quando nos apaixonamos, todos fazemos a experiência de que o amor pede um horizonte de eternidade: disso são sinais simples todas as poesias de amor e todas as canções, forma hodierna de poesia, que ontem como hoje nos acompanham sem mudanças substanciais, apesar do tempo que passa. Hoje, como no passado, canções e poesias falam do desejo de um amor que desafia o tempo, que nos faça sentir acolhidos por aquilo que somos, que vá além das aparências; falam do sofrimento profundo de quem é deixado, falam da aspiração profunda de um coração abandonado, mas confiante no outro.

Porque é que então é tão difícil mover-se no sulco deste desejo? Porque é que os casamentos não duram e se rompem tão facilmente? Mais ainda: porque é que nos estamos a encaminhar para um mundo em que as pessoas até renunciam ao casamento, preferindo fazer apenas investimentos modestos em pequenas histórias, em que cada um está muito atento em não se entregar demasiadamente ao outro para não ser ferido no futuro?

O casamento parece ter perdido o seu forte significado de promessa e de novidade e é visto pela maioria das pessoas como algo superado, inútil, se não mesmo falso e prejudicial para o amor entre duas pessoas. Considera-se que só em pouquíssimos casos particularmente afortunados seja possível continuar a amar-se durante toda a vida e que depois de um certo número de anos o mais provável que pode acontecer a duas pessoas casadas é manterem-se juntas «apenas por causa dos filhos», ou «porque se habituaram», cultivando uma estranheza progressiva em que cada um dos dois procura noutro lugar a verdadeira resposta aos seus desejos. Nesta lógica, parece que as pessoas mais honestas são as que não fazem promessas ventureiras de amor eterno, porque, se foram tão temerárias em se casar, tiveram depois «a coragem de se separar» assim que o sentimento se enfraqueceu ou se apagou.

Este livro nasceu do desejo de fornecer reflexões para se voltar a entender o sentido pleno de uma «relação para sempre» que o casamento deveria representar, e que infelizmente se perdeu: creio, com efeito, que não existe aventura humana mais profunda, envolvente e apaixonante do que a que se pode desenvolver na vida de duas pessoas que decidem seriamente unir-se até à morte.’ (pp. 14-15)

‘Hoje, o verdadeiro risco é o desaparecimento de todo o sentido da profundidade das coisas, privilegiando a quantidade das experiências em prejuízo da sua intensidade, e esta falta de espessura da experiência torna tudo mais aborrecido e frágil.’ (p. 16)

‘A vulnerabilidade das coisas, bem como das pessoas, é parte integrante da sua preciosidade e deveria levar-nos a procurar multiplicar as nossas capacidades para amá-las e delas cuidar. O medo, pelo contrário, leva-nos a afastar o olhar do que é frágil, a esconder o que é imperfeito em nós e a evitá-lo quando o reconhecemos presente no outro.’ (p. 16)

‘Nada daquilo que é complexo pode encontrar uma solução adequada se não aprendermos primeiro a alargar o olhar além do imediato e do contingente, para orientar os nossos passos para uma meta.’ (p. 19)

‘Encontrei uma frase perfeita para sintetizar o que é o coração do desafio que o casamento representa: unir, no quotidiano, os aspetos mais práticos e prosaicos da nossa vida com os mais elevados e espirituais. Não será este um desafio especial?’ (p. 22)

‘Hoje, como no passado, os filhos continuam a ter necessidade de que os adultos saibam tomar posição sobre questões importantes, não para homologar-se a eles, mas para ter um ponto de partida e de referência para poder amadurecer de modo adulto o seu pensamento. Os filhos devem conhecer os nossos valores e por que razão os consideramos importantes: isto permitirá evitar eventuais contestações, e obriga-los a pensar em vez de seguir simplesmente o que está na moda.’ (p. 28)

‘[…] nos últimos decénios modificámos as nossas imagens mentais e o nosso modo de «sentir» sobre muitos argumentos cruciais, e muitas das nossas opiniões sobre casamento, família, identidade sexual, valor do corpo e do sexo, valor da vida e da pessoas, se foram formando mais por sugestões progressivas do que através de uma verdadeira e aprofundada reflexão, capaz de nos levar a convicções realmente motivadas.’ (p. 33)

‘A carne liga-nos e determina-nos, mas também nos manifesta. Nós somos mais do que a nossa carne, mas também não podemos existir sem ela. O conhecimento que os outros têm de nós é sobretudo conhecimento da nossa carne, entendida como o que de nós aparece e se põe sensivelmente em contacto com o outro, com os seus lados agradáveis, mas também com os menos agradáveis.’ (p. 38)

‘O corpo que desejamos deveria ser inodoro, incolor e insípido: o corpo verdadeiro resulta embaraçante, e causa-nos preocupação pela sua neutralização para não termos que dele nos envergonhar. Usamo-lo como se fosse uma vestimenta, em vez de o habitar e o viver. […] «Somos» o nosso corpo ou «temos» o nosso corpo?’’ (p. 39)

‘[…] na vida das pessoas cada decisão e cada gesto colocam-se sempre dentro de uma história: nada se faz que não tenha em si o gérmen das suas consequências. Entre as coisas que se podem fazer, há gestos com consequências reversíveis, e há gestos definitivos, em que não se pode voltar atrás. A relação sexual é, por essência, um destes: o que acontece nunca mais pode ser cancelado, aquilo que dei nunca mais pode ser retirado. Se a relação com o outro fosse interrompida, o desconforto de ter entregado a minha intimidade a alguém que será conotado como um estranho permaneceria em mim.’ (p. 48)

‘A nossa cultura […] não gosta do que é definitivo e que empenha, e define como aborrecido e pesado tudo o que cria ligações e parece dificultar a mudança; é por isso que progressivamente se trabalhou para separar o sexo de qualquer possível consequência, para que seja possível vivê-lo como um ato reversível, não definitivo, nem empenhativo, e por isso mesmo «ligeiro» e divertido, com valências de tipo exclusivamente expressivas e lúdicas.’ (p. 49)

‘[…] a afirmação tão cativante e à primeira vista convincente segundo a qual devemos «ser livres de seguir o instinto» contém em si uma contradição terminológica: como era bem evidente às grandes culturas que nos precederam, não é na verdade necessária nenhuma capacidade particular nem exercício de liberdade para seguir os próprios instintos, que são biologicamente determinados e que biologicamente nos determinam. O instinto sexual, o instinto de conservação ou o de sobrevivência possuem uma força intrínseca tal que segui-los não exige nenhum exercício de liberdade.

O verdadeiro e difícil exercício reside no desenvolver a capacidade de dominar os instintos, para se ser, então sim, realmente livres de os seguir quando e como considerarmos uma coisa boa fazê-lo.’ (p. 53)

‘Aquilo a que somos chamados a aceitar responsabilidades diz respeito àquilo que voluntariamente fazemos como resposta a estas solicitações e a estes desejos: este é o verdadeiro campo no qual exercer de modo inteligente a nossa liberdade.’ (p. 54)

‘O homem e a mulher são muito diferentes até mesmo na sua expressividade sexual, no modo de experimentar o desejo e no modo de experimentar o prazer.’ (p. 56)

‘«Promessa» é uma palavra de grandíssimo valor na civilização ocidental: sobre esta palavra baseia-se toda a civilização judaico-cristã e o modelo antropológico que dela deriva, que se construíram nos séculos precisamente a partir de uma Promessa e da esperança confiante da sua realização. […] Com a perda progressiva do consenso à volta do modelo de antropologia cristã, também o valor das promessas, da confiança recíproca, do vínculo constituído pela palavra dada e recebida foram-se extinguindo e perdendo peso: o valor da promessa (ligado à partilha de uma posição ética que vê a pessoa no centro de toda a relação) foi sendo substituído pelo valor do contrato (que põe no centro não já a pessoa, mas o valor de um bem), e o sentido de culpabilidade por ter infringido uma promessa (punição «interna» que nós mesmos nos infligimos quando faltamos a um dever que sabemos ser objetivamente importante) muitas vezes não parece já necessário, porque se considera suficiente, perante a quebra de um contrato, pagar ao outro com recompensas de natureza económica.

Mas poderá uma compensação económica pagar real e plenamente a quem é vítima da quebra unilateral de um acordo importante?’ (pp. 70-71)

‘[…] escolher é o que nos faz livres, mas escolher é algo muito mais envolvente e complexo do que seguir um impulso, porque compreende em si sentimento, inteligência e vontade.’ (p. 98)

‘De um ponto de vista psicológico, a escolha de assinalar com um rito publicamente partilhado a passagem a um «nós» reveste uma importância crucial, porque comporta uma mudança decisiva do centro afetivo da relação: enquanto a relação entre o eu e o tu do casal permanecer confinada à esfera privada, de facto, todo o acento é posto sobre cada um individualmente e joga-se à volta de identidades individuais; a escolha de torna pública a ligação e de exigir um reconhecimento social coloca o acento sobre a nova e pequena comunidade, marcando o nascimento de um novo sujeito que é, ao mesmo tempo, social e afetivo.’ (p. 106)

‘[…] entre as muitíssimas mudanças da nossa época há uma fundamental, sobre a qual nem sempre se refletiu bastante: trata-se da revolução copernicana constituída pela difusão exponencial de instrumentos contracetivos e de como isto modificou radicalmente o nosso modo de aproximação ao tema do amor e ao tema da procriação.’ (p. 117)

‘Desde sempre […] o início de uma gravidez é acompanhado de vivências ambivalente, sobretudo pela mãe, que, por um lado, é quem mais sente a inexorabilidade da união e sente o risco de ser sonegada pelo seu filho, e, por outro, poder ter sofrimentos inevitáveis numa futura separação.

Mas como estabelecer se e quando dar espaço a um filho na nossa vida?

A própria possibilidade de fazer esta escolha, pelo facto de nos parecer tão totalmente em nossas mãos, expõe-nos a dificuldades psicológicas novas e imprevistas, porque lança sobre nós uma responsabilidade difícil de aguentar e desconhecida pelas gerações precedentes, que podiam muitas vezes contar, por vezes com alívio, com a chegada de filhos quase por acaso.’ (p. 119)

‘Poderemos dizer que existem duas diferentes modalidades psicológicas em relação a um novo nascimento, projetado ou não: há as crianças «acolhidas» e as crianças «pretextos», e estes dois modos diferentes dão lutar a duas modalidades diferentes de encontro entre pai e filho. A criança «pretexto» é a que foi trazida ao mundo para completar a vida dos seus pais, como algo que foi acrescentado no momento oportuno a todos os outros objetivos que nos propusemos atingir. É uma criança que corresponde à realização de um nosso projeto, e enquanto tal o seu êxito ou o seu falhanço serão inevitavelmente um sinal do nosso êxito ou do nosso falhanço. Mas precisamente por este motivo, trata-se normalmente de crianças que suscitam em nós uma ânsia maior e com quem a relação educativa é mais difícil desde o início, porque tendemos a carrega-las de expectativas demasiado grandes.

Muito diferente é o encontro que se verifica com o novo rebento se a vivência dos seus pais for de acolhimento da vida como dom precioso e imerecido: embora com todas as naturais e inevitáveis expectativas, prevalecerá nos confrontos deste filho curiosidade e abertura, e será possível fazer prevalecer neste caso uma atitude mais serena.’ (pp. 122-123)

‘[…] o matrimónio, se quiser ser realmente um casamento, é por sua necessidade «indissolúvel», e deve definir-se como uma aliança pronta a bater-se a todo o custo para resistir a tudo o que o quiser dissolver e desagregar, minando o acordo de confiança entre as pessoas que o contraíram.’ (p. 137)

‘A família […] constitui um sujeito específico dotado de uma identidade própria; ao mesmo tempo, porém, podemos defini-la, também como um sistema complexo, formado por pessoas dotadas, cada uma, de uma identidade pessoal e que se influenciam reciprocamente de maneira circular: cada componente interage com os outros com uma força diferente em relação ao grau de união. Este sistema complexo desenvolver-se à volta de dois eixos principais, que podemos imaginar dispostos em sentido espacial: o primeiro é um eixo horizontal, constituído pela relação do casal; o segundo é um eixo que se cruza com o primeiro de modo vertical, e é constituído por ligações que o casal tece com outras pessoas que no tempo o precedem (os pais) e que o seguem (os filhos). Para que uma família, e nela cada um dos seus membros, se desenvolva e cresça de modo psicologicamente saudável, é indispensável que entre os dois eixos se estabeleça um equilíbrio válido, em que o eixo horizontal constitua o ponto de união estável do eixo vertical. O casal, se e quando sabe construir e desenvolver a sua relação no tempo, pode tornar-se capaz de cuidar de modo preciso tanto da geração que o precede como da geração que dele toma origem e que o continua no tempo.’ (p. 139)

‘Da psicologia aprendemos que há algumas regras fundamentais para garantir aos filhos um bom crescimento e saúde mental: entre estas são cruciais a capacidade de respeitar o seu limite psicofísico e a capacidade de manter em relação a eles uma distância relacional correta, colocando-os na posição justa no interior das relações familiares. Isto significa, em primeiro lugar, ter o conhecimento claro de que um filho não nos pertence, mas é-nos simplesmente confiado pela vida para que cuidemos dele e o acompanhemos com respeito e se impulsividade em relação ao seu futuro.’ (p. 140)

‘Ainda há uma coisa que é sempre possível fazer na nossa vida, e é aprender a aproveitar tudo o que nos aconteça, até mesmo uma coisa negativa e dolorosa. Ser traídos, receber verdadeiras ofensas, sentir-se pouco apreciados, são evidentemente coisas muito negativas e à primeira vista inaceitáveis. No entanto, se o quisermos, até mesmo coisas como estas podem tornar-se para nós ocasião de crescimento, de desenvolvimento, de afinamento da personalidade. […] ninguém fora de nós pode encontrar a chave de sermos felizes, tal como ninguém pode realmente tornar-nos felizes s enão não lho permitirmos.’ (p. 165)

‘[…] como pude aprender com um jovem colega psiquiatra que estava para se casar, «não existe a pessoa certa, existe só a pessoa que escolhi». E a pessoa que escolhi é sempre única.’ (p. 168)

‘Quando nos apaixonamos por alguém, fazemos a experiência especial de intuir algo do seu Eu: intuímos que o outro é único, mas também o que pode vir a ser, o que nele se pode vir a desenvolver. É uma perceção sintética, difícil de dizer por palavras, mas muito importante: é parecida com a capacidade de rêverie dos pais sobre os filhos, quando intuem no filho a presença in nuce do homem ou da mulher que podem vir a ser.’ (p. 169)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

 

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