segunda-feira, dezembro 23, 2024

EDUCADORES COMO AUTÊNTICOS PEREGRINOS DA ESPERANÇA | O PEREGRINO, O ALFORGE, O CAJADO E A META

 Conferência proferida online em 26 de outubro de 2024


1 | O PEREGRINO

Sabe que não tem aqui morada permanente, mas habita os tempos e os lugares, ao invés do turista que passa e não os habita nem se deixa habitar.


Este dinamismo do peregrino é dos mais fecundos para se compreender a educação. Educar não é entreter. É fazer caminho, não como quem vê e sobrevoa as coisas, mas como quem se constrói em cada experiência. 

Um dos grandes desafios de EMRC, na escola de hoje, é o de fazer dos nossos alunos peregrinos quando tudo os desafia a que sejam meros turistas. 

E, para mim, uma das causas deste ‘turistizar’ da educação está no facto de pressupormos que o desafio da tolerância e do respeito signifique o silenciamento das identidades.

Esta foi a matriz, durante muito tempo, por influência da perspetiva francesa da laicidade, que entendia que o lugar público era um lugar de neutralidade, na senda da teoria da secularização de autores como Peter Berger.

Uma perspetiva que, no caso português, era reforçada na convicção equívoca de que a constituição da III República defendia uma laicidade à francesa. Esta visão é, como disse, equívoca. A nossa constituição, ao omitir, intencionalmente, a referência à laicidade, e ao defender, no artigo 41º, número 4, que «As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.», está a defender, não uma neutralidade e indiferença do Estado para com as igrejas, mas, pelo contrário, a sustentar que, em primeiro lugar, está a liberdade religiosa.

Foi este entendimento que permitiu que, em 1987 e 1993, quando se pronunciou de modo claro sobre a nossa disciplina, o tribunal constitucional não tenha encontrado sinais de inconstitucionalidade na oferta desta disciplina, no sistema educativo público. Isto deveria acabar de uma vez com as dúvidas sobre a legitimidade da nossa disciplina que encontra, ainda, mais respaldo, no direito prioritário dos pais à educação e, naturalmente, para além disto, no direito concordatário que também só é possível porque a constituição o permite.


Ora, mas regressemos a Peter Berger.

A perspetiva deste e outros autores que fizeram escola era a de que as identidades, em particular as de matriz religiosa, iriam tender a desaparecer. Ficaria um espaço comum, sem identidades.

Peter Berger, um dos grandes gurus desta visão, veio, nos últimos anos, rever a sua tese. 

No livro ‘os numerosos altares da modernidade’, Berger vem reconhecer que estava errado. O futuro não será o do silenciamento das identidades e das religiões, mas o da convivência entre as diversidades religiosas.

É precisamente isso que temos, hoje, nas nossas escolas.

E o que deve fazer uma identidade específica, neste contexto, por exemplo, uma identidade como a da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica? 

Deve adotar duas atitudes simultâneas: reconhecer a sua identidade e (como propõe o documento Unitatis Redintegratio) formular uma hierarquia das verdades em que seja notório o que é fundamental, mas dispor-se, também e simultaneamente, ao diálogo. 

Sem uma destas duas condições – identidade e disponibilidade para o diálogo – o diálogo não pode existir. Não pode existir se não houver identidades – há monólogos ou discursos vazios – não pode existir se não houver disponibilidade para o diálogo – cada identidade permanece fechada em si. Só restará o conflito.

Ora, diante destas constatações, é fácil perceber que uma disciplina como EMRC não só tem a sua legitimidade reforçada, mas também pode ser um fator de criação de pontes.



 2| O ALFORGE

Não pode encher-se de ‘coisas’ pois sabe que o impedem de caminhar. Centra-se no ser.

Gostava de iniciar este ponto recordando um bom amigo, padre, que lutou contra um cancro, e partiu em setembro de 2023. Organizei, com ele, ainda ele desconhecia a doença, a passagem dos símbolos da JMJ por uma das escolas que ficava numa das paróquias dele.

Morreu como viveu toda a vida: muito sereno.

Num dos últimos telefonemas que lhe fiz, perguntei-lhe: ‘Padre Zé Augusto, como consegues viver, com esta serenidade, estes dias?’

Respondeu-me:

- – ‘Luís, há, no tratamento uma parte que depende de mim. Estou a fazê-la. Outra parte que depende dos médicos. Estou certo de que estão a fazê-la. E há uma parte que não depende, nem de mim, nem dos médicos. É o lugar da confiança. Confio-me…’


Esta é a atitude de quem tem o alforge de peregrino.

Percebe, com clareza, que há âmbitos que dependem de si. Não os transfere para outros. Responsabiliza-se por eles. 

[Faço aqui uma pequena deriva. Uma confidência. Entendo, interiormente, que o agrupamento onde estou é a minha terra de missão. Sinto-me como que uma presença do pastor (que não sou, bem certo) que não abandona as suas ovelhas. No início de cada ano, verificando que houve desistências, vou conversar com os alunos que não renovaram a matrícula. E lanço uma iniciativa de convites aos que nunca frequentaram. Neste ano, esta dinâmica já fez com que 32 alunos novos ou regressados se inscrevessem…]


Voltemos ao ponto de análise da resposta do meu amigo…

Há outros aspetos que dependem dos que estão próximos de si. Incentiva-os, pergunta-lhes, interpela-os. Acompanha para que não baixem os braços e cumpram o que lhes é devido.

Mas, por fim, sabe que há partes que não lhe cabe a si determinar. Confia. 

Não se angustia. 

E não confia no vazio. Confia em Deus amor.

Quanto mais tempo tenho de professor de EMRC, mais confirmo a necessidade que os nossos alunos têm de que, na reflexão, lhes falemos do amor que Deus é. Isto não trai a distinção entre EMRC e a catequese, mas seria uma traição à disciplina e aos alunos não o fazer.

Conto-vos uma situação passada com um aluno que não era batizado, não frequentava a catequese.

O único contacto dele com o cristianismo era através de EMRC.

Na unidade sobre as origens, eu tinha insistido na ideia de que somos seres criados à imagem e semelhança de Deus. Sublinhei como a nossa capacidade de amar, a liberdade, a nossa capacidade de nos abrirmos ao transcendente eram marcas dessa condição icónica do ser humano.

Um aluno, de nome Leonardo, diz-me: ‘professor, posso acrescentar uma conclusão: se somos seres feitos à imagem e semelhança de Deus, e se Deus é Criador, então, também é sinal de sermos à sua imagem o facto de conseguirmos criar.’


Eles precisam de olhar o mundo de um outro modo, o modo que EMRC tem para lhes propor.

Para aqueles de nós que possam pensar que a identidade religiosa de EMRC possa ser uma menos-valia, recordo o livro de Alain de Botton, ‘religião para ateus’, um livro escrito por um descrente que olha com admiração para as religiões (que, para ele, não passam de construções humanas; parte que custa a ler, neste livro!) e que afirma que, até hoje, a humanidade nunca foi capaz de superar a eficácia que as religiões conseguem, numa série de áreas: nas motivações morais, na solidariedade, na arte, na educação, etc.

Ler este livro poderia ajudar a perceber que relativizar a identidade da disciplina é um erro e um retrocesso.

Um erro e um retrocesso para a disciplina, mas também para a educação.

Veja-se como é difícil para cidadania e desenvolvimento fundamentar porque haveremos de cuidar dos outros, de acolher os outros, cuidar do ambiente.

Normalmente, a fundamentação faz-se ou com base no medo (ai que estão aí as alterações climáticas; ai que estamos na iminência do fim do mundo, ai… ai…) ou com base na lei positiva (está escrito aqui e ali… Na convenção A, na declaração B…).

EMRC fundamenta e diz-nos porquê e só EMRC o pode dizer: o mundo é dom e o outro é meu irmão.

No diálogo com filosofia, é também notório em que medida EMRC é imprescindível: a filosofia pergunta e deixa os alunos vazios e enredados em perguntas. 

EMRC pergunta, bem certo (isso tem sido reforçado), mas não se fica pela pergunta. Os alunos, como sujeitos humanos, sujeitos de sentido, procuram resposta. EMRC aponta resposta.


3 | O CAJADO

O peregrino está consciente de que não é omnipotente; sabe que cairá muitas vezes. O cajado é símbolo do perdão: irá errar mas não se tornará errante.

O cajado expressa a ideia de que somos seres que, no peregrinar, irão cair e precisarão de se levantar.

É, hoje, no contexto escolar, das «águas» de que mais se necessita. Os nossos alunos (mas também os professores e assistentes operacionais) vivem, muitas vezes, a angústia de um dia terem ‘errado’. Muitos deles, por causa disso, tornaram-se ‘errantes’.

EMRC e o professor de EMRC tem uma missão única, na escola. A mensagem de que o erro não tem de significar uma errância permanente é forte e necessária. 

Um aluno que reprovou, uma vez, não tem de se considerar um falhado.

Confidencio-vos que foi conversa que tive, com vários alunos, no início deste ano.

Ouvirem um professor dizê-lo é, para eles, uma surpresa.

E uma surpresa que só a experiência cristã do perdão pode dar solidez.

A esta experiência de perdão que surpreende associo uma nota que não posso deixar de fazer. Nas minhas aulas, um dos sinais deste perdão é o humor. 

Deus é amor, mas também é humor.

O humor que acontece quando nos enganamos ou quando queremos repreender de forma original e com uma ‘graça’ surpreende.

E, ao humor, acrescento o jogo. 

Os meus alunos estão, muitas vezes, em dinâmica de jogo. Integram um jogo, da primeira à última aula: o jogo ‘um por todos e todos por um’. 

Um jogo que os compromete uns com os outros (posso explicar, se o tempo o permitir).


4 | A META

Os seus pés pisam o chão e sobre ele habita, mas o seu coração aponta-lhe a meta: aí vai buscar a fonte da esperança.

Face às correntes de mindfulness e outras correntes que, bem-intencionadas, rapidamente esbarram na verificação de que o sujeito só se está a encontrar a si mesmo, num narcisismo fechado que só adia a depressão e a tristeza, EMRC é um oásis, no espaço escolar, que suplanta as miragens e diz que a esperança não é uma vaga utopia ou um subjetivo desejo. 

A esperança de que falamos nasce de um acontecimento, de um real encontro pessoal, não de um efeito de espelho que reflete o sujeito apenas um pouco para fora de si. 

Só este pressuposto permite que se fale do amor como algo maior do que um mero sentimento voltado sobre o sujeito. Só EMRC pode falar do amor como o oposto ao egoísmo. Só emrc pode falar, aliás, de egoísmo. Ninguém arrisca, noutros contextos, falar de tal coisa.

Só EMRC arrisca falar de real fraternidade e não, como fez a revolução francesa, fala de fraternidade, mas, primeiro, mata o Pai comum para instaurar, a seguir, uma orfandade…

EMRC olha para o outro como irmão.

EMRC fala aos alunos de um sonho e é com base nesse sonho que olha para o mundo e cuida dele. Não como quem tem medo, mas como alguém que, movido pela esperança, protege, trata bem. 

EMRC dá os fundamentos que outros estão impedidos, por causa da ‘neutralidade’ vazia, de facultar…

É por tudo isto que as palavras de Jesus que estão entre as mais frequentes dos evangelhos – ‘Não temais’ – continuam a ser-nos dirigidas, nestes tempos.

Não temais!

Temos, orgulhosamente, motivos para a esperança e, nestes tempos de tantos desesperos, se não a levarmos, alguns continuarão a ‘turistar’ quando poderiam tornar-se peregrinos.


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