Artigo originalmente publicado no Correio do Vouga
Luís Manuel Pereira da Silva*
‘Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria que o será para todo o povo: hoje, na cidade de David, nasceu-nos um Salvador que é o Messias Senhor!’ (Lc 2, 10)
A frequência da escuta embotou-nos os ouvidos que já amenizaram o escândalo, como se de um lugar-comum tratassem as palavras que recordam o mistério. (Ou teremos levado tão a sério o convite a que não tivéssemos medo que, efetivamente, o superámos?)
Mistério evoca sempre a ideia de uma realidade diante da qual cabe fazer silêncio, emudecer-se. Mas o mistério cristão, escandaloso como sempre, já não é, apenas, uma realidade diante da qual cabe fazer silêncio. É um desvendar da realidade que, de tão denso, nos interpela a reler a existência e reconfigurar o nosso olhar. O mistério cristão define-se, essencialmente, como realidade que, de tão densa, é paulatinamente desvendável, mas nunca suficientemente abarcável: tomamos parte mas muito mais é o que nos escapa. O que se capta, porém, é já suficientemente significativo para nos dar novo sentido à existência.
Deste modo de pensar o mistério se trata ao falar do da Encarnação.
Dois mil anos volvidos, o que aconteceu em Belém continua, aos ouvidos atentos de hoje, a ser motivo de escândalo e estonteamento.
Ao tempo, fora-o para judeus, incapazes de aceitar que o distantíssimo Deus, de que só nos poderíamos acercar pela Sua Lei, pudesse tornar-se humano. Essa kenose, tão sublimemente enunciada pelo também judeu Paulo de Tarso, no seu hino cristológico feito epístola aos Filipenses, era inaceitável para os ouvidos judaicos. Não o era porque a corporeidade não pudesse ser abarcável pela sua compreensão de Deus, mas pela insignificância do humano, perdido desde o paraíso e errante pelo mundo. Ver a Deus era de todo impossível. Encarnar era, então, inadmissível.
Fora-o, também, para os gregos e todos os que, na senda do espírito helénico, reduziam o homem ao seu espírito, encarcerado que estava num corpo material, essencialmente mau e de que se pretendia a libertação.
As duas reticências permaneceram, ao longo da história… A reticência judaica e a reticência grega.
A encarnação, para os que não a anestesiam sob a capa da habituação, constituiu-se, ao longo dos tempos, escândalo maior, seja pela via judaica, seja pela grega.
Pela judaica, pela natureza de Deus; pela via grega, pela natureza do homem.
Hoje, o pêndulo continua a oscilar entre os dois ímanes.
Tende, porém, a ser mais fortemente atrativo o íman grego, nestes tempos que voltam a reduzir, gnosticamente, o homem ao seu pensamento e à sua alma.
A encarnação e a sua celebração como natal continua a escandalizar estes tempos para quem alguns de entre nós dizem habitar corpos que não são os seus. Como se não nos fizéssemos do encontro indissociável entre matéria e forma, impossibilitada que é a existência de uma essência (forma) sem a sua materialização (matéria).
Hoje, celebrar o Natal volta (continua, talvez!) a escandalizar porque se aceitou como verdadeira a afirmação de que alguém pudesse pensar-se sem se pensar no aqui e agora. O poder que tem o pensamento de voar convenceu alguns de que o voo fosse uma abstração e não movimento do pensamento concreto de alguém, situado e situável. O pensamento é sempre de alguém, com toda a sua história, feita de chão e habitar lugares concretos. É identidade feita caminho, feita de história, de tempos e lugares finitos de que se guardam lugares vividos, para abrir, antecipando, lugares a poder viver. Mas é um sujeito concreto, real, corporeamente real, que mora o passado, o presente e se lança para o futuro. É indissociável do seu realizar-se concreto.
Mas o íman grego continua a atrair…
O escândalo cristão continua a dar atualidade ao anúncio de que ‘hoje nasceu-vos o Salvador’, que é o verdadeiro ‘Emanuel’, ‘Deus connosco’. Apesar de instados a não temer, continuamos a ter medo e a recusar…
Aos nossos olhos de vidas tão curtas, 2000 anos já seriam tempo suficiente para se esperar que o escândalo se tivesse suplantado. Mas Deus é paciente e, aos seus olhos, nunca é tarde.
Deus continuará a precisar de nos anunciar, pela voz daquele que traz a mensagem, que, de uma só vez, Ele mesmo encarnou. Não como quem reencarna, para o repetir vezes sem conta, mas como quem assume, de uma só vez, de forma singular e irrepetível, a história única do encontro entre o Eternamente Outro e aquele em quem quis refletir-se como imagem e Sua semelhança. Os primeiros cristãos sabiam da natureza escandalosa de tão denso mistério e das suas implicações para o reconhecimento da unidade indissolúvel do humano. Por isso o quarto evangelho utiliza o termo grego ‘lógos’ (cuja tradução para português por ‘Verbo’ – do termo latino ‘verbum’– atenuou a força do significado), em que se congregam ideias como a de ‘palavra’, ‘pensamento’, mas também ‘ação’ e, numa densificação da etimologia, podemos chegar à ideia de ‘reunir’, ‘recolher’, ‘juntar’ (‘Logos’, in Logos, vol. 3, p. 475). João sabe que Aquele que ‘recolhe’, junta, reúne’ é, Ele mesmo o ‘Reunido’.
No mistério do Natal, afirma-se, enfim, que a realidade é toda ela - face às forças que pretendem cindir, separar, dividir - intrinsecamente simbólica, isto é, agregadora, unitiva. O Natal supera, por isso, a tentação de Adão: queria ser, unidimensionalmente – só ele, fechado em si, autossuficiente, uma só dimensão. O Natal é a explicitação de que a realidade se define, essencialmente, como unidade da alteridade, como encontro, como ‘lançar juntamente’ e não como separação.
É por isso (e precisamente por isso!) que a religião que nasceu deste mistério fundamental foi a criadora da ideia de pessoa. Não somos indivíduos fechados, autossuficientes, mas ‘pessoas’, seres intrinsecamente definíveis a partir do encontro, do ver-se e compreender-se a partir do tu.
Tudo isto está em causa, nestes tempos em que o Natal voltou a densificar-se como escândalo.
Verdadeiramente, é preciso voltar a anunciar que um Salvador nos nasceu, de uma vez por todas, para nos salvar do risco e da tentação da divisão, da dissolução da unidade incindível que define o ser humano, feito de ‘húmus’, de terra, de pés no chão real… Somos o que Deus quis ao criar-nos como Adão: imagem e semelhança no facto de sermos relação, encontro, real e feito do pó e da terra onde nos realizamos. Somos um fazer-se… Não um pensamento e alma imutável e definitivamente realizada e implantada num corpo.
O Natal restaura a humanidade como humana, contra a sedução dos ímanes judaico e grego.