segunda-feira, maio 10, 2021

Intelligo quia credo (Compreendo porque creio) | Variações sobre a fé cristã…

 Inicio, com esta reflexão, uma rubrica dedicada ao estabelecimento de pontes entre a fé cristã e a racionalidade contemporânea. Decidi intitulá-la ‘intelligo quia credo’, integrando a longuíssima tradição teológica que se dispõe a compreender para melhor (e mais solidamente) acreditar (intelligo ut credam – compreendo para acreditar) e crer para, desse modo, melhor poder compreender (credo ut intelligam – creio para que possa compreender). A minha formulação recusa a, erroneamente atribuída a Tertuliano, ideia de que ‘credo quia absurdum’ (creio porque é absurdo). Tertuliano não pretendeu afirmar tal ideia que contradiz o seu enorme esforço intelectual de tornar credível, para os seus tão desafiantes tempos (ele que viveu entre finais do século II e inícios do III), mas a sua convicção de que a ressurreição era credível pelo seu carácter surpreendente (como se fosse algo impossível!), gerou a ideia de que defendia que a fé excluía a razão e era tanto mais ‘credível’ quanto mais absurda. Longe disso!

O pressuposto que seguirei, ao longo das minhas reflexões, será, exatamente, o de que fé e razão são, parafraseando João Paulo II em Fides et Ratio, como que duas asas que necessitam uma da outra para que possa assim voar o conhecimento humano.

Afirmo que ‘intelligo quia credo’: compreendo porque acredito. Não afirmo, aqui, um qualquer fideísmo ou uma apologética gratuita, mas antes prenuncio a constatação que venho fazendo de que, sem o horizonte que lhe abre a fé, o ser humano e o que é ser humano ficam em grave crise.

Não apenas uma crise constatável, sociológica e eticamente (talvez a revisão da história pudesse ser suficiente para sustentar a credibilidade dessa convicção), mas uma verificação ainda mais radical e fundamental.

 

O ateu que, por causa da ciência, negou e, depois, reconheceu a existência de Deus

Tomemos, para enunciar a tal crise em que ficamos sem a fé, o que nos mostrou, já em pleno século XXI, o pensamento de Antony Flew, autor que gosto de revisitar.

Fora, durante cerca de cinquenta anos, um dos grandes defensores do que poderíamos designar como ‘ateísmo epistemológico’. Entendo por ‘ateísmo epistemológico’ aquela posição que defende a inexistência de Deus como resultado da verificação de que o saber teológico foi suplantado pelo saber científico, ficando reduzida a cinzas a sua pretensão de verdade.

Essa fora a convicção de Antony Flew, até que, em 2004, a sua honestidade intelectual o levou a reconhecer que errara. Flew constatava, nessa altura, que o simples esforço de fazer ciência supunha, só por si, a possibilidade da existência de Deus. De outro modo, dizia, seria impossível fazer-se ciência. E explicou a sua conclusão.

Quem faz ciência parte de um princípio inabalável (axioma): há inteligibilidade no universo. Se não supuser a existência de inteligibilidade, ninguém fará ciência. Tudo será absurdo e impossível de estudar. Ora, tal pressuposto obriga a perguntar sobre a razão que justificará a existência de inteligibilidade no universo. Flew enuncia duas possibilidades: ou a inteligibilidade é fruto de acasos que se sobrepõem a acasos, numa cadeia quase infinita de casualidades (biliões de biliões de acasos que se concatenam de forma a gerar a inteligibilidade que é a condição para se fazer ciência); ou, então, diz Flew, há que supor que o universo corresponde à inteligibilidade que nele depositou, como condição, uma Origem inteligente e infinita que lhe concedeu, desde o primeiro momento, essa potencialidade de ser inteligível.

Face a estas duas possibilidades, Flew recorda um critério para se optar pela melhor. O critério recolhe-o da própria ciência que define, à luz do princípio designado como ‘navalha d’Ockam’, que a explicação mais simples para um fenómeno é a mais válida. Ora, com este critério, Flew pergunta qual a possibilidade mais simples e mais credível e conclui que supor a existência de uma Origem Inteligente como condição para compreender a inteligibilidade do universo é a hipótese mais plausível.

Com a mesma ciência com que rejeitara a possibilidade da existência de Deus, Flew concluiria, a partir de 2004 (em português, pode ler-se com muito interesse, o seu Deus não existe, editado pela Alêtheia), que essa existência é, afinal, a própria condição de possibilidade da mesma ciência. (Talvez a abrangência do mar o torne tão ‘opaco’ e improvável para o peixe, poderíamos nós concluir…)

 

Também a história do pensamento evidencia a crise do Humano sem Deus

No mesmo sentido que nos leva a concluir o raciocínio de A. Flew, também a história recente da filosofia parece demonstrar-nos a intrínseca relação entre a existência de Deus e a condição humana. Repare-se que, em finais do século XIX, Nietzsche afirmara, no seu livro A gaia ciência, que Deus morrera. (E não se referia à morte de Cristo na Cruz, mas à morte de Deus como Absoluto.) Afirmara-o em nome da liberdade humana; em nome do Homem. Mas, curiosamente, não foi preciso esperar muito mais de meio século para que a própria filosofia, pela pena de Michel de Foucault, viesse afirmar que o homem morrera. Deus morre, em Nietzsche; o Homem morre, em Foucault.

Estas constatações não pretendem ser, como atrás afirmávamos, apologia gratuita, mas interpelação.

Se não aponta para um horizonte transcendente a vida que levamos do berço até à tumba, quem é o ser que leva os andrajos com que se faz essa vida? Mas será, então, - dirão, alguns -, a fé apenas o fruto de uma necessidade de dar sentido à vida que ficará absurda sem a fé? Aceitamos o repto a que tentaremos responder em outros momentos. Fiquemos, agora, pela constatação do horizonte que nos aponta a própria epistemologia (reflexão sobre o que é conhecer e sobre o que podemos conhecer): sem Deus, sem a possibilidade, pelo menos, de que Deus exista, nem ciência poderemos fazer, diz-nos Antony Flew, nem humanos seremos, como tristemente constatou Foucault.


(Artigo publicado em Ecos da Ria)

sábado, maio 08, 2021

Direitos humanos – duas faces de uma crise de humanidade

 

Vivemos uma dupla crise de direitos humanos: a que se manifesta na sua violação e a que se expressa na justificação e legitimação dessa violação…

A estratégia em andamento já não se basta em atentar contra os direitos humanos. Tudo faz para o justificar, assegurando-se de se munir dos melhores argumentos com aparência de válidos.

Para nos apercebermos disso, exige-se que façamos um breve percurso de reflexão, indo à raiz do que deve entender-se por ‘direitos humanos’.

 

‘Poder fazer’ não é sinónimo de ‘ser legítimo fazer’

A defesa e proclamação dos direitos humanos nasce de uma tragédia humana.

Quando, em 10 de dezembro de 1948, se adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o mundo ainda mal acordara de um pesadelo em que, progressivamente, se fora enredando até à tragédia final, monstruosamente orquestrada ao longo de uma década (desde 1933) até à ‘solução final’, como defendiam os preconizadores de um regime que ‘banalizou o mal’ (expressão cunhada pela judia Hannah Arendt).

Face ao que se consumara, na II Guerra Mundial, em nome de um poder que se concebia como fim em si mesmo, foi preciso reconhecer, sem margem para dúvidas nem subterfúgios, que a dignidade humana se impõe por si própria, sendo mesmo anterior ao seu reconhecimento. Esta é a base dos direitos humanos: a dignidade humana de que todos participamos é anterior mesmo ao reconhecimento que dela façamos; ela impõe-se-nos. Não é porque eu reconheço alguém que ele passa a ter dignidade humana, mas antes é porque o outro é humano que me cabe reconhecê-lo. E é também por isto que a declaração universal dos direitos humanos estabelece, no seu preâmbulo, que a “dignidade [é] inerente a todos os membros da família humana e [que o reconhecimento] dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.

Ora, este ponto de partida significa que a dignidade humana não é algo oscilante, variável, sujeito a conjunturas. É a condição pela qual somos merecedores de todo o respeito e de todo o cuidado, em particular, quando mais frágeis, quando somos mais dependentes do apoio dos outros.

 

Atentados contra direitos humanos

A esta luz, cabe reconhecer que há atentado contra os direitos inerentes à nossa condição de humanos sempre que essa dignidade não é considerada como portadora de uma mensagem de que não podemos ser instrumentalizáveis, transformáveis em objetos. Como, aliás, souberam reconhecer os homens do século XVIII, a condição humana faz de cada um de nós um fim em si mesmo e nunca um meio. Atenta, por isso, contra a dignidade humana, toda a manipulação, sujeição a poderes que se servem do humano para fins que lhe são alheios, o desrespeito pelas condições que servem essa mesma dignidade (habitação, emprego, educação, etc.), matéria de denúncia tão frequente por parte do Papa Francisco que dedica o mês de abril à reflexão sobre esta matéria.

Estamos, neste contexto, a referir-nos aos atos pelos quais se perpetram os atentados e violações contra os direitos humanos.

Mas, dizíamos acima, há uma dupla crise de direitos humanos. Reparemos na outra face dessa crise.

 

A outra face da crise: a legitimação dos atentados contra os direitos humanos

Assistimos a uma dinâmica que já não se basta em violar os direitos humanos. Ela vem orquestrando um discurso que procura legitimar essa mesma violação. Para percebermos esse discurso, regressemos ao que nos diz o preâmbulo da declaração universal dos direitos humanos. Este afirma que os direitos humanos são ‘iguais e inalienáveis’. Repare-se na força da palavra ‘inalienável’. Ela afirma que eu próprio não posso alienar, deixar de proteger esse bem designado como ‘direito humano’ de que eu participo, pela humanidade que há em mim. É isso que significa ‘inalienáveis’: que não posso alienar, dispensar, entregar a outro. Afirmar que os direitos humanos são inalienáveis é sublinhar que os direitos humanos se constituem para os outros e para nós próprios como ‘deveres’. O raciocínio é simples e claro: não sou eu que me ofereço a humanidade; antes, eu sou participante da humanidade que me é comum e aos demais humanos. É, aliás, nesta lógica, que se compreende que atentar contra uma pessoa, contra um povo, contra uma comunidade religiosa, etc., é atentar contra toda a humanidade que em cada um se faz presente.

 

A dignidade humana é o fundamento da liberdade e não o contrário

Face a isto, percebe-se quão ilegítimo é o discurso dos que pretendem sustentar que respeitar os direitos humanos seja permitir o exercício absoluto e indeterminado das vontades individuais (designando isso como ‘liberdade’, quando, de facto, é arbítrio, mas não liberdade. A liberdade é escolha com respeito pela verdade.). Digo de modo mais simples: pretender legitimar práticas que matam ou ofendem, em nome do direito a uma autonomia sem limites, não só não é sustentável à luz da declaração universal dos direitos humanos como, até, a ofende e está em sua oposição. Veja-se que a declaração afirma que é o reconhecimento dessa dignidade que é fundamento da liberdade. Não o contrário, que é o que pretendem os defensores da legalização de práticas como a da eutanásia ou do aborto, sustentando que estas práticas possam ser legítimas à luz dos direitos humanos, sob pretexto de que ‘cada um terá direito a fazer o que bem entenda’. Não é essa, de modo algum, a conclusão que poderá retirar-se de uma leitura verdadeira dessa mesma declaração. Pelo contrário. Tais práticas ofendem a dignidade humana, por não compreenderem o humano que há em cada um como fim em si mesmo, como merecedor de todo o cuidado e proteção. Não foi por acaso, aliás, que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos deliberou, sem possibilidade de recurso, em 16 de dezembro de 2010, com 11 votos a favor e 6 contra, que o aborto não é um direito humano e, por isso, é legítimo que os Estados o penalizem.

Verifica-se, porém, que o discurso difundido pela dita ‘grande imprensa’ é o de que ‘direito humano’ é fazer o que bem se entende e a nada ser impedido. Mas isso não é reconhecer que o direito humano é inalienável, nem que a dignidade seja o fundamento da liberdade, mas, invertendo isto, é pretender que seja a liberdade o fundamento da dignidade. Esse é o contorcionismo a que temos vindo a assistir e que tem levado para uma vertigem de morte as nossas sociedades de conforto e bem-estar. Convém lembrar que a II Guerra Mundial e o regime nazi não nasceram do dia para a noite. Foram preparados por toda uma vertigem legitimadora bem anterior a 1933, de teor eugenístico. Muito antes de os nazis fazerem a hedionda seleção dos que podiam e não podiam continuar vivos, já o mundo aceitara leis eugenísticas que legitimavam a escolha dos que podiam ou não podiam casar, dos que podiam ou não podiam ter filhos. Como tenho recordado em diversos textos sobre estas matérias, e recuperando o que refere “Matt Ridley, no seu livro ‘Genoma’, entre 1910 e 1935, mais de 30 Estados norte-americanos tinham leis que impunham a esterilização de pessoas (chegando a fazê-lo em ‘mais de 100000 pessoas por serem débeis mentais’ – p. 300). O mesmo Ridley recorda que assim aconteceu na Suécia, Canadá, Noruega, Finlândia, Grã-Bretanha, etc. Um retrato perturbador que pode confirmar-se no livro de André Pichot, no seu livro ‘Eugenismo’. Recorda este investigador do CNRC, Estrasburgo, que ‘na década de 30, eram esterilizadas, nos Estados Unidos, mais de 100 pessoas por mês’, tendo a Dinamarca esterilizado mais de 3000 pessoas e a Suécia mais de 15 mil, entre 1935 e 1945 (p. 51).”

Ainda vamos a tempo de travar a vertigem que parece ir tomando os nossos tempos. Respeitar os direitos humanos não é deixarmo-nos entregues à vontade puramente arbitrária sem respeito por si nem pelo outro: isso é, antes, um bom princípio para a indignidade. Respeitar os direitos humanos é assegurar que todos (qualquer que seja a sua idade, condição, força ou circunstância) são fins em si mesmos e portadores de uma dignidade que os torna merecedores de cuidado e proteção.

 

Luís Manuel Pereira da Silva

Professor – teólogo e bioeticista

Sócio-fundador da ADAV-Aveiro

Membro da Direção Nacional da Federação Portuguesa pela Vida


(Artigo publicado em https://www.paroquiadefafe.com/vozes-plurais)

terça-feira, abril 27, 2021

O perdão redime a ‘trágica’ existência humana

 

(Amigo/a leitor/a, convido-o/a a olhar, com atenção, a imagem que ilustra este texto 

[Pode encontrá-la aqui: https://angelusnews.com/wp-content/uploads/2019/09/3dhgsq1dr_Pope_Feature_1_.jpg]. 

Observe-a, com cuidado, e procure interpretá-la. Sugiro que, só depois de o fazer, inicie a leitura…)


O mundo tem grande dívida para com o cristianismo. Dívida que vai muito para além de todo o impacto visível em obras arquitetónicas, literárias, pictóricas ou outras igualmente observáveis e mensuráveis. Há dívidas que não se podem pesar, calcular e medir. Escapam e são de uma enorme densidade e profundidade. Mas, entretanto, demorará até que reconheça quanto lhe deve, de facto.

Antes de me adentrar no que pretendo aqui analisar, deixo uma sugestão de leitura. ‘O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica’, de Thomas E. Woods, Jr (Ed. Alêtheia), é um livro de justiça. Não é um livro de direito. Nem por sombras. É um livro de justiça, isto é, trata-se de uma obra que faz justiça. Costumo sugerir, com ironia, que deveria ser colocado, nas livrarias, na secção de finanças, dado que contribui para se perceber como saldar parte da dívida (enorme!) que o mundo tem para com o Cristianismo.

Feita esta sugestão, regressemos à linha que vínhamos seguindo.

 

‘Pessoa’: uma das dimensões da dívida

Há, de facto, nessa dívida, dimensões que escapam à mensurabilidade. Entre elas, está, por exemplo, o conceito de pessoa. ‘Pessoa’ é um conceito que nasce no contexto das discussões sobre a natureza trinitária de Deus. Não servindo a ideia de ‘indivíduo’, a teologia trinitária forjou o conceito que permitisse evidenciar, por um lado, a dimensão ‘individualizante’, mas sem que tal significasse que Deus era, então, três ‘indivíduos’. Era preciso um conceito que salvaguardasse a identidade sem a isolar e sem a conceber fechada em si. O conceito de ‘Pessoa’ foi o que, resultando de prolongada reflexão, permitiu dizer que Deus é diverso, em si, sem que tal signifique que cada ‘parte’ da diversidade possa pensar-se sem ser em relação com a unidade e a relação. Pessoa diz, precisamente, a identidade que se define na relação e no encontro diante do outro. Deus é Pai no preciso ‘momento’ em que gera o Filho e, no preciso ‘momento’, também, em que a ‘geração, no amor, se possibilita. Desta forma muito plástica descrevemos a densidade que nos possibilita o conceito de ‘Pessoa’.

 

Da visão trágica à confiança no perdão

Mas ainda não chegámos ao núcleo do que pretendemos, nesta reflexão.

Há, sem dúvida, a dívida da arte, da cultura, dos conceitos, mas, antes, durante e depois de todas estas, há a dívida sobre o modo de olhar a existência.

Para percebermos esta dimensão da ‘divida’, importa recordar como era ‘trágica’ a visão que antecedeu a emergência da visão cristã.

Recordemos que a expressão pública e reconhecida do cristianismo só começa a operar-se, de forma definitiva, a partir do ano de 313, ano do édito de Milão que, pela ação do Imperador Constantino, possibilita que o império romano tolere esta nova religião.

Até aí, a visão vigente era a que conformara o ocidente, por influência da visão grega, chegada pela mão dos romanos.

 

A visão trágica dos gregos

E o que nos evidenciava essa visão?

A vida era, na visão grega, tragédia, fundamentalmente, tragédia. Tragédia que se tornava visível na convicção de que, acima dos próprios deuses estava a ‘moira’, o destino (o ‘fatum’ que deu, em português, a ideia de ‘fado’ – destino; ideia presente na palavra ‘fatalidade’). Os próprios deuses estavam submetidos à força de um destino impessoal, cruel, sem piedade…

Tal conceção é particularmente expressiva e densa nas célebres tragédias dos grandes autores clássicos. Entre elas, podíamos recordar a história do Rei Édipo, mas pretendemos incidir o nosso olhar na história de Antígona, uma história que bem conhecem os alunos de Educação Moral e Religiosa Católica, a quem ela é apresentada, na unidade de ‘Política, ética e religião’: um serviço inestimável que a Igreja Católica presta à educação, em Portugal.

O que nos diz a história de Antígona?

O rei Creonte proíbe esta filha do incestuoso casamento de Édipo com Jocasta de enterrar um dos dois irmãos (Etéocles e Polinices) que se tinham combatido um ao outro até à morte. A Etéocles, o rei Creonte oferece honras fúnebres majestosas, mas decide que Polinices seja deixa insepulto. Antígona opõe-se a esta decisão de Creonte, que era seu tio, e enterra, obedecendo ao que lhe impunha a sua consciência e o seu dever religioso. Após fazê-lo, suicida-se, sendo que nos diz a trama trágica que, entretanto, Creonte tinha desistido da decisão e mandara um mensageiro comunicar-lho. Tarde demais…

Assim é, em tantas das tragédias gregas. O destino fora mais forte do que a compaixão.

Esta não é a visão cristã sobre a existência.

 

O perdão e a graça é que redimem

No centro da visão cristã, está o perdão que encontro plasticamente representado numa obra que convido o leitor a observar com atenção.

Refiro-me a um capitel de uma coluna da Basílica de Santa Madalena, em Vezelay, uma igreja do início do século XII.

Um olhar atento deste capitel permite-nos ver, do lado esquerdo, um enforcado. (Aparentemente, de novo, a dimensão trágica da existência…) Porém, o capitel reserva-nos uma surpresa, do lado direito.

Na verdade, facilmente reconhecemos, no enforcado, o traidor Judas, aquele que entregou Jesus Cristo.

Mas o lado direito evidencia-nos a dimensão redentora com que o Cristianismo olha a existência. Ali, o enforcado é levado aos ombros… de Jesus Cristo. No levar aos ombros aquele que o entregou à morte, mostra a densidade do amor de Jesus Cristo. Recordo-me de, na década de noventa, ouvir da boca do sr. D. Manuel de Almeida Trindade, meu bispo e padre conciliar, o espanto ao constatar que, ao longo da história, nunca a Igreja ter ousado dizer que alguém, em concreto, estava em Inferno ou tinha sido abandonado por Deus. Dizia-me o sr D. Manuel: ‘Repara, Luís, que a Igreja sempre nos apontou o exemplo de Santos, mas nunca nos disse que este ou aquele em concreto não podia participar da felicidade eterna de Deus.’

O perdão é, com efeito, a resposta à dimensão aparentemente trágica da existência, pois, a Fonte donde tudo provém é Amor. Não apenas ‘tem’ amor; É amor. E se é amor, então, o limite, a fragilidade, a vulnerabilidade, são assumidos e redimidos, para sempre, dando-nos a certeza de que a Vida é mais forte do que a Morte. Como pode concluir-se da leitura de uma recente obra sobre ‘o sofrimento de Deus’, da autoria do Pe. Rui Mendes de Sousa, a resposta ao sofrimento do mundo está na certeza de que a ‘Paixão de Cristo é efetiva compaixão de Deus’.

E como poderiam recusar perdoar os que sabem que o mundo nasce do amor que perdoa?

(Artigo publicado na revista 'Mundo Rural)


sexta-feira, fevereiro 19, 2021

Carta ao Pe Arménio Pires Dias | Ao homem e padre que fez da fidelidade o seu lema

Escrevo-lhe, Pe. Arménio, neste dia em que saiu da nossa presença. Escrevo-lhe porque o sei na eternidade, junto de Deus, porque esse é o lugar dos homens que moldaram a sua vida à luz de Deus-Santo.

5 de junho de 1980 | 1ª comunhão
O Pe. Arménio e eu, a ler.

A sua e a minha história começam nos meus já longínquos tempos de infância, em Pessegueiro, tempos em que, inspirado na sua imagem de homem de Deus, fiel e leal, se acendeu em mim a luz de que poderia vir a ser, eu próprio, padre como via em si.

O meu caminho foi longo e levou-me a perceber que Deus me chamava a ser cristão no mundo, como leigo, mas de si nunca abandonei (e muitas vezes revisitei) a memória da rocha firme, nestes tempos tão movediços e instáveis. A sua vida foi a de um profeta para o nosso tempo, apelando à austeridade diante da ilusão de podermos viver sem Deus, mas, como os de outrora, tantas vezes incompreendido pela sobranceria com que parecemos olhar para quem nos diz o que não queremos ouvir.

Como me custou ouvir, há cerca de dois anos, a triste notícia de que a voracidade do nosso mundo o atropelara, deixando-o numa condição física que se foi agravando até ao abandono final que hoje ocorreu.

Na sua vida, havia ‘sempres’ e ‘nuncas’, porque o amor, para si, era fiel como o é Deus.

Sei que muito do que pensava, Pe. Arménio, estará reservado em escritos que, um dia, há uns cinco ou seis anos, me mostrou. Esses escritos talvez possam, algum dia, merecer ser partilhados por quem neles reveja a importância da solidez de uma inteligência fina e densa. Uma inteligência que se preocupava ao ver que o mundo se afastava, airosa e despreocupadamente, da certeza de nada ser sem Deus. Mas essa preocupação nunca o demoveu de confiar, nem lhe retirou a serenidade e a paz de quem sabe onde está a sua fonte, onde está a nascente da vida.

Pe. Arménio, recordo com saudade a sua sempre insatisfeita atitude de quem procura ouvir o que dizem os que em algum momento estiveram longe da fé. Quantas vezes lhe ouvi falar do que dizem aqueles que, um dia, se afastaram, mas que, honestamente, vieram a reconhecer que o Deus que tinham abandonado os continuava a buscar, sem cessar. Quantas vezes o ouvi referir os ateus que se tinham deixado olhar por Deus, reconhecendo a sobranceria da outrora posição descrente! As suas palavras eram as de quem sabe que o caminho do homem é um permanente superar da tentação de Adão que se quer fazer sem Deus.

A sua partida deixa-nos uma enorme missão: a de continuarmos acordados quando tudo nos quer adormecer. Adormecer à sombra da satisfação e orgulho de quem parece prescindir de Deus para se engrandecer. Quantas vezes a sua foi uma voz que clamava no deserto! A voz dos que ousam dizer que o Dia está próximo e que é ilusão viver-se sem Deus.

Pe. Arménio, a sua partida deixa-me com o coração apertado, pois em si vi um Pai, porque o é quem de nós foi ‘pároco’ em tempos tão decisivos como os da infância e juventude… Mas este é o aperto de coração de quem se sente investido de nobre tarefa: a de garantir a todos que um dia, na terra, alguém foi rocha sólida e firme quando as areias se moviam, sedutoras, sob os nossos pés.

Obrigado, Pe. Arménio. A sua partida deixa-nos um legado: o de anunciarmos, com palavras e vida, que o caminho fiel e leal continua a ser o sinal que nos pede o mundo, mesmo quando o rejeita. Pois, quanto maior for a noite, maior a importância do farol. Mesmo que, de dia, muitos o dispensem como desnecessário.

Esta é, também, hora de agradecer aos que, com amor, lhe deram o conforto e o afeto, nestes últimos tempos após o seu acidente. Na APCDI e pela mão de um dos seus sucessores na paróquia de Pessegueiro, o Pe. António, a sua vida pôde voltar, até aos últimos dias, a ser fecunda e dedicada, celebrando e rezando por todos, pelo mundo, pelos Homens que sempre amou porque neles viu a Criação de Deus que Ama.

Obrigado, Pe. Arménio. Vele por todos nós, junto de Deus a quem foi fiel toda a sua vida.

 

Com afeto,

Luís

Dignidade humana é… ser-se um fim em si mesmo, nunca meio!

 

O parlamento português está tomado por uma vertigem. E, como em todas as vertigens, parece adormecido, atónito, sem capacidade para refletir, com racionalidade e presença de espírito. O Parlamento está embevecido pela sedução do poder sem limites que lhe gera a vertigem de que falamos…

As decisões de fratura sucedem-se em catadupa, unindo-as um ponto comum: o ceticismo em relação ao que seja a dignidade humana.

Mas não duvidemos… A dignidade da pessoa humana constitui cada um de nós como um fim em si mesmo, insuscetível de ser reduzido à condição de meio. Tomar alguém como meio para um fim posterior é atentar contra a dignidade inerente a todos nós, dignidade que nos faz participantes de um ‘algo’ anterior, concomitante e posterior a nós mesmos. Ser-se humano faz-nos pertencentes a um ‘sólido’ (de que deriva a ideia de ‘solidariedade’) em que o que fazemos a um afeta todos, na medida em que afeta a natureza humana presente nesse um.

Vem isto a propósito das mais recentes decisões do Parlamento em relação a matérias que concernem ao início da vida: ‘inseminação post mortem’ e ‘maternidade de substituição’ (vulgarmente designada como ‘barrigas de aluguer’).

Ambas as decisões foram alvo de pareceres éticos negativos, mas, ainda assim, o Parlamento, [que é quem detém o poder e, por isso, se considera autorizado para decidir o que entender (!)], decidiu avançar para a sua legalização, invocando tratar-se de um avanço imparável.

Tenho-o dito muitas vezes: nada há de mais progressista do que a ética. É à ética que cabe alertar para os riscos de uma atitude conservadora e simplista que nos faz ‘fazer’ tudo o que podemos fazer. A ética diz-nos que não será sensato não subjugarmos o ‘poder’ ao que ‘é lícito fazer’, ao que ‘devemos’ fazer. Quando o ‘poder’ e o ‘dever’ se pretendem coincidentes, emergem as condições para a arbitrariedade que é má conselheira.

E é disto que se trata, nas duas situações que acima invocávamos.

Em ambos os casos estamos perante um desejo de corresponder a um pedido (em si próprio, lícito e gerador de compaixão: o de possibilitar gerar vida nova, gerar filhos), mas em que a solução se revela atentatória da indisponibilidade da dignidade de cada um. Na verdade, um olhar atento e distanciado rapidamente concluirá que, em ambas as situações, o bom fim (beneficiar da paternidade e maternidade) se faz por um mau meio, um meio que se revela instrumentalizador. O centro está, não no filho, mas no desejo de se ter filhos. O filho não é um alguém que se acolhe, é um bem que se pretende.

Bento XVI alertava, na encíclica ‘Caritas in Veritate’ (CV 3), para os perigos do amor compassivo que não respeita a verdade da natureza humana. Assim acontece, neste caso.

O filho gerado por inseminação post mortem é um filho gerado na orfandade. É um órfão no próprio momento em que é concebido. E, se a orfandade nos compadece, porque haveremos de legitimar gerar filhos já órfãos no próprio momento da sua conceção? Há algo de contraditório nisto. Uma contradição que nasce de não se respeitar que o filho não é um direito. Um filho é anterior aos nossos próprios direitos: é alguém. É uma pessoa que nos cabe acolher, amar pelo que é e não por corresponder ao desejo.

Do mesmo modo, no caso da maternidade de substituição, o filho é gerado num contexto que artificializa a relação entre mãe e filho. Sabendo-se quão relevante é o tempo de gestação na criação de vínculos, privar alguém, à partida, desses vínculos, por um motivo que se prende com o desejo dos adultos a terem um filho, desvirtua a natureza das coisas e é uma violência a que não podemos fechar os olhos. O nosso silêncio seria o de uma cumplicidade indigna por abafar o motivo de indignação. Já evidenciava Aristóteles que a virtude se opõe ao vício. O que não é virtuoso é vicioso. Se esta é uma decisão que desvirtua a natureza das coisas, não poderá pretender reconhecimento de virtude… E disso deu conta, precisamente, o Tribunal Constitucional que já se pronunciou sobre esta matéria, considerando-a inconstitucional.

Mas o Parlamento não quer saber dos que se lhe opõem. É ele que tem o poder. E quanto pode contra isso a dignidade humana?

sexta-feira, janeiro 08, 2021

Carta aberta aos deputados do Círculo de Aveiro | De um cidadão atento e preocupado com a possibilidade da legalização da eutanásia…

 


Ex.ma Senhora Deputada | Ex.mo Senhor Deputado

do Círculo de Aveiro

 

 

Sou Luís Silva, tenho 47 anos, e sou eleitor do círculo de Aveiro, residindo em Estarreja.

Tenho acompanhado, com muita preocupação, as notícias que nos falam da muito séria possibilidade de o Parlamento aprovar legislação que pretende legalizar a eutanásia.

Sei que cada deputado da nação assume as suas posições sustentado na convicção de estar a escolher o melhor para o seu país e para os cidadãos que neles depositam a sua confiança. Continuo a ter essa certeza, em relação à matéria que me leva a escrever-lhe. Sei que os que se propõem legalizar a eutanásia acreditam estar a escolher o que é melhor.

É com essa convicção (a da boa intenção de cada deputado) que, mesmo sabendo que muitos argumentos já terá ouvido, ouso propor-lhe que olhe este problema no prisma da reversibilidade e irreversibilidade das decisões.

Todos os argumentos que pretendem legitimar a legalização da eutanásia se sustentam em motivos que, se bem olhados, são reversíveis (o sofrimento, a dor, o abandono, a perda do sentido da vida, etc...). São, todos eles, argumentos muito fortes e válidos, mas, se olhados com honestidade, sempre reversíveis.

Só a morte é irreversível.

É com esta constatação que lhe peço e que, em nome da história que somos e que, em 1867, em nome desta mesma constatação, por considerar irreversível a morte, aceitou deixar de punir com a morte atos criminosos (por muito válidas que fossem as razões), lhe deixo o convite a que aceite escolher não permitir a legalização da eutanásia, confiando ao Estado a sempre nobilíssima missão de tudo fazer para reverter as razões que nos levam a pedir a irreversível morte.

Com verdadeira boa-fé e a intenção de contribuir para o maior bem de todos os portugueses,

 

 

 

 

Luís Manuel Pereira da Silva

 

quarta-feira, dezembro 23, 2020

Natal: ‘Amor’ ou ‘necessidade’?


O mundo, a realidade existente, nasce de uma longa, longa história de amor… do Amor.

Não considerar esta convicção como fundamento de tudo entrega toda a realidade à determinação de anónimas forças que tornam inexplicável o surgimento da consciência de si e da capacidade de decidir livremente. Do nada nada vem, sendo que o que existe só pode nascer no quadro da possibilidade de vir a ser, sem ter de o ser.

E só o amor possibilita a liberdade. Só o amor possibilita que o que é possa realizar-se ou, de todo, possa decidir-se a não existir. Mas é nesse mesmo lugar que do nada o Amor faz nascer nova vida e vida nova.

Quando, em 1970, o bioquímico francês Jacques Monod pretendeu resumir na disjunção ‘acaso ou necessidade’ o que estava em causa, quando nos dispomos a interpretar o mundo, o seu olhar fez-nos tomar como insofismável esta conclusão. Mas a redução não está na disjuntiva que ele nos ofereceu. Esta disjuntiva ainda não atingiu o cerne do olhar alternativo sobre a realidade.

No Natal, no mistério do Natal, percebemos que a alternativa não está entre os anónimos, e «a-subjetivos», ‘acaso’ ou ‘necessidade’, forças impessoais e sem vontade ou ‘rosto’. Como poderia possibilitar-se o surgimento da liberdade se a natureza do que é não passasse de um dos dois fundamentos aqui apresentados em alternativa?

Mas essa não é, de facto, a raiz do que existe. A alternativa não está aí.

O mal e o bem só se podem iluminar se o Amor for o fundamento do que é. De outro modo, nem o bem existe [tudo não passa de um ‘ter de ser casual ou predeterminado] nem o mal, como possibilidade de não realização pode ser chamado assim. Não passará de um outro rosto do acontecer impessoal e anónimo.

A tentação de, por antecipação e anacronicamente, ‘regressar’ à disjuntiva de Monod é profunda e emergiu, com frequência, na própria tradição cristã. A linha que colocou no centro da Encarnação de Deus a função de reparar o mal que a criatura provocara (designada como Hamartiocentrismo), linha que encontrou em S. Anselmo (ca. 1033-1109) o seu apogeu, padeceu deste mal. A encarnação (o Natal) parecia ter acontecido por ‘necessidade’ (exigência!) de reparação, como se o centro fosse cedido ao mal, ao pecado. Tentação somada à primeira tentação.

Outro modo nos interpela o Natal que adotemos. Toda a realidade, nascida do Amor e por isso com a têmpera do próprio amor (livre, aberta ao outro, em dinamismo de autorrealização frangível e em estreita dependência do outro…), é, desde o seu primeiro momento, sinal e marcada pela anterioridade do amor. Deus salva ao criar; Deus cria ao salvar. No criar e no salvar, a anterioridade está no Amor, não no acaso, nem na necessidade. Total anterioridade ao amor. Do que falava, aliás, Paulo ao dizer que ‘onde abundou o pecado superabundou a graça’ (Rom 5,20)? Graça é, aqui, o outro nome para um Amor que se define como pura gratuidade.

Não será o acaso o rosto, a máscara, o disfarce do Amor gratuito que surpreende e tem a imprevisibilidade própria da liberdade?

No Menino do Presépio resume-se toda a história do mundo: na sua fragilidade está descrita a natureza ‘agápica’ (de ‘Amor’) da realidade.

domingo, outubro 25, 2020

Quando a compaixão não é mais do que um pretexto

Quando era adolescente, eram frequentes os filmes de cowboys e índios. E recordo-me de, nestes filmes, com alguma frequência, após longas perseguições, preenchidas de tiros e balas que pareciam cravar-se nas paredes da minha sala, assistir a cenas em que, algumas personagens, após serem cravejadas de balas e a esvaírem-se em sangue, quando apanhadas, pediam que lhes fosse dado o ‘golpe de misericórdia’. Eu gostava dos filmes de índios e cowboys, mas sempre me gerou perplexidade que o agressor pudesse ver o seu derradeiro ato de crueldade limpo por uma designação que lhe conferia o estatuto de ‘misericordioso’. Sempre achei isto injusto…

Veio-me à memória este acumular de cenas de índios e cowboys, nestes tempos em que se pretende reconhecer ao Estado o estatuto de misericordioso quando, após ‘cravejar’ de balas de solidão, abandono e tristeza os mais frágeis de entre nós (e nós mesmos, quando mais frágeis!), restar à vítima da cavalgada do impiedoso pedir-lhe que lhe dê o ‘golpe de misericórdia’.

É disso que se está a falar quando se pretende legalizar a eutanásia. Poder dar o golpe de misericórdia e pretender-se ficar com a consciência de se ter feito um ato nobre quando se foi, afinal, responsável por tudo o que a isso conduziu.

Evoco, ainda, uma outra cena que também recolho do cinema. Neste caso, uma cena com sinal de sentido contrário.

Passa-se no filme ‘favores em cadeia’, um filme belíssimo, onde, contrariando os diretórios do cinema americano, o protagonista morre, numa cena que confere um caráter quase redentor a esta morte.

A cena que pretendo trazer para aqui ocorre com uma das personagens a quem Trevor (o protagonista do filme) fizera um favor, obrigando-o, por isso, a fazer um favor a mais três pessoas, gerando, assim, uma cadeia de favores em que a gratidão por se ser favorecido passa por realizar a outros uma tríada de favores.

A referida personagem favorecida por Trevor é um toxicodependente que encontra uma mulher que está prestes a atirar-se de uma ponte. O toxicodependente aborda-a, tenta mostrar-lhe que estará enganada quanto aos motivos para se suicidar e acaba por pedir-lhe que desista, fazendo-lhe, assim, um favor a ele próprio. Salvar a vida daquela mulher era um favor que fazia a si mesmo…

A cena é de uma densidade incrível e contraria todo o individualismo tipicamente americano: a salvação daquela mulher é o maior favor que ela pode fazer… aos outros.

A eutanásia está nos antípodas disto. A eutanásia abandona cada um na solidão da sua vida e convence-o de que a sua morte só a si diz respeito, contrariando tudo o que somos e toda a lógica de se viver em sociedade e num Estado de direito. Apetece dizer que, felizmente, os defensores da legalização da eutanásia não são suficientemente coerentes e lógicos para levar o seu raciocínio até ao fim: perante tamanho individualismo, nada sobreviveria. Se podemos dispor da vida, então, porque não haveremos de dispor de todo o dinheiro que recebemos com o suor do nosso trabalho recusando pagar impostos? Porque não haveremos de fazer acordos uns com os outros sem nos importarmos com o que abstratos legisladores possam pensar sobre o que fazemos? Etc., etc….

Recuperemos a afirmação de que ‘se podemos dispor da vida, então…’ De facto, não podemos dispor da vida. Nem da nossa!

Não o dizemos com motivações religiosas (podemos tê-las e temo-las, de facto, mas não precisamos de as invocar para se perceber esta indisponibilidade da vida); basta-nos constatar o que afirma a declaração universal dos direitos humanos que afirma: ‘Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.’

Repare-se que a Declaração faz depender a liberdade, a justiça e a paz do reconhecimento de que os direitos são «inalienáveis» e não o contrário. Não é a liberdade, a justiça e a paz que os tornam inalienáveis. E, mais! Por serem inalienáveis, os direitos humanos constituem-se como um dever para os que deles beneficiam. Eu tenho o dever de cuidar do direito à vida de que sou detentor. Sou detentor desse, não porque o estabeleço, mas sim enquanto participante da comum dignidade humana. Quando atento contra a dignidade da vida humana que há em mim, atento contra toda a dignidade. Como bem recorda o Papa Francisco, na encíclica ‘Fratelli Tutti’, «qualquer um que mate uma pessoa é como se tivesse matado toda a humanidade’ (FT 285)

A reflexão que desenvolvemos, até este passo, permite-nos constatar que a compaixão deve ser concretizada num respeito estrito pela vida. Não contra ela. Uma compaixão que abandona a verdade da vida torna-se um sentimentalismo, como referia Bento XVI, na encíclica ‘Caritas in Veritate’ (3). Esta afirmação não é uma mera proposição abstrata e teórica.

É pelo perigo do sentimentalismo que, por exemplo, se deve proibir a criação de condições para o nepotismo. Este é, de facto, um belo exemplo de sentimentalismo: em nome da compaixão de alguém pelos seus, pela sua família, desrespeita o dever de cuidar do bem comum e exerce as suas funções em benefício dos seus.

Com estes pressupostos, tenhamos em conta decisão do Parlamento, tomada no dia 23 de outubro de 2020. Este não autorizou a realização de um referendo, contrariando a vontade expressa por mais de 95 mil subscritores que, em cerca de um mês, reuniram as suas assinaturas, solicitando à casa da democracia que consultasse o povo numa matéria que, dada a sua importância, deveria ser decidida após a sua auscultação. Os argumentos têm sido repetidamente referidos, pelo que nos bastará aqui recordar que, dos 193 países reconhecidos pela ONU, apenas 6 (apenas 6: Holanda, Luxemburgo, Bélgica, Austrália [Só o Estado de Vitória], Colômbia e Uruguai) legalizaram a eutanásia e outros quatro países autorizam (ou têm Estados federados que o permitem: para além dos atrás enunciados, também a Suíça, Suécia, Alemanha e 5 Estados dos EUA) a prática do suicídio assistido, perfazendo 10 países que dão alguma cobertura legal a estas práticas. Acrescente-se, ainda, que a Holanda, a Bélgica e a Colômbia legalizaram a prática da eutanásia sobre crianças. Estes números deveriam fazer-nos pensar. Algo de grave deve estar em causa para apenas 10 países terem legalizado tais práticas.

A compaixão tem sido um dos argumentos mais vezes invocado para a sua legalização.

Repare-se, porém, no que, verdadeiramente, está em causa…

Recuperemos o que referíamos, no início desta reflexão.

O Estado assume um papel de compassivo, não se assegurando de que tenha esgotado todas as possibilidades para que se evite o pedido de morte.

Mais, ainda…

O compassivo legislador compadece-se de dores ainda não havidas para cidadãos ainda não situados nas dores que o legislador supõe, e já legitima que, em todo este abstrato circunstancialismo de dor, possa ser lícito eliminar quem pede a morte. Não há uma compaixão real: há um enquadramento de uma compaixão específica, excluindo-se desta compaixão todos os que nela não se enquadrarem. Mas, não deveria ser a compaixão universal? Se é um ato compassivo, deveria sê-lo sempre. Ou deveremos tomar esta inicial definição de circunstâncias muito excecionais como um mero pretexto? Um pretexto para deslocar o ónus de proteção, transferindo-o do dever insofismável de proteger a vida humana (motivo objetivo) para um outro âmbito (de ordem subjetiva), o que, a acontecer, permitirá posteriores alargamentos? A resposta parece supor-se na pergunta.

Tenhamos em conta, porém, que há, aqui, uma contradição intrínseca (a compaixão não é real; é, apenas, pretexto. Se fosse real, seria compaixão para com a pessoa que sofre, nunca desistindo dela!) que faz com que, na nossa perspetiva, a rampa deslizante seja um facto e uma condição intrínseca a esta mudança, estando em curso antes mesmo de a lei começar a ser praticada. Efetivamente, há em toda esta argumentação uma contradição insanável: é que não se é compassivo dando a morte. É-se compassivo diminuindo o sofrimento de quem sofre, estando e permanecendo com o sofredor, ‘sofrendo com ele’ (cum+passio) e vencendo, assim e com ele, a morte. De outro modo, a compaixão é o pretexto nobre para apagar da nossa vista, com o sofrimento, o próprio sofredor. E, sim, a compaixão não será, então, mais do que um pretexto, emoldurado sob a capa de nobreza, para nos desfazermos da imagem da nossa dor e do nosso limite, que, a todo custo, queremos afastar de nós. Com a morte vem o sossego do incómodo da vida que é, sempre, surpreendente.

As duas cenas evocadas, no início deste artigo, evidenciam o que está em causa: perante o sofrimento, damos o «golpe de misericórdia» ou reconhecemos, pelo contrário, que o ato de salvar da morte alguém que pede para morrer é um favor que fazemos à nossa comum condição humana?

Toda a vida em sociedade está alicerçada na convicção profunda da solidariedade na dignidade: a eutanásia abala essa convicção e desvirtua a compaixão e a misericórdia.

terça-feira, setembro 22, 2020

Cidadania e desenvolvimento | Conseguir discutir sem falar do assunto!

A discussão sobre Cidadania e desenvolvimento tem vindo a revelar, por um lado, pouca cidadania e, por outro, pouco desenvolvimento do espírito crítico.

Senão, vejamos…

Perante a dificuldade (ou o desejo de não o fazer) em analisar, com lógica e respeito, o que se discutia, no manifesto pelas ‘liberdades de educação’, o que se tem visto fazer é investir contra o mensageiro.

Para tal, não têm faltado rótulos que denunciam que estamos perante um enorme desassossego que revela pouca paz e pouca disponibilidade para discutir o que está, de facto, em causa.

Recuperemos o que está, realmente, em questão.

O que o manifesto solicita é, apenas, o seguinte: ‘respeitem a objeção de consciência das mães e pais quanto à frequência da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento’.

E, para perceber se este pedido é legítimo, basta observar que este direito é protegido, quer pela Constituição da República Portuguesa (artigos 6º, 41º e 43º), quer pela lei de bases do sistemas educativo (uma lei de valor reforçado) que, no seu artigo 7º, alínea n) afirma, de forma muito clara que um dos objetivos do ensino básico é ‘n) Proporcionar, em liberdade de consciência, a aquisição de noções de educação cívica e moral’ (O itálico é nosso).

Onde está a dúvida?

A discussão saiu deste âmbito restrito e tem sido contaminada (é a palavra certa!) com preconceitos (Extremistas! Radicais!, etc.) esquecendo-se que o que se está a afirmar decorre da lei fundamental, da Constituição da República Portuguesa.

Outros, mais recentemente, vêm investir contra os subscritores católicos, argumentando ausência de fundamentos teológicos para tal posição.

Como assim?

A Doutrina Social da Igreja é a responsável pela identificação de um princípio que, hoje, foi assumido quer pela nossa Constituição da República, quer na própria organização das estruturas Europeias. O dito princípio dá pelo nome de ‘princípio da subsidiariedade’ e teve a sua primeira grande formulação no pensamento de PIO XI, na encíclica Quadragesimo Anno. O referido princípio diz, de forma simples, que, se um problema pode ser, justamente, resolvido por uma instância mais próxima das pessoas, não deve ser uma instância superior a fazê-lo. Resumimos o que é dito do seguinte modo: ‘assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los.’ (Pio XI, Quadragesimo Anno (1931), capítulo V.)

Este princípio acautela, precisamente, o dever de o Estado respeitar os corpos sociais intermédios, destacando-se o dever de respeitar a família nas suas missões específicas e, entre elas, a de educar. À luz deste princípio, não é o Estado que faz um favor ao reconhecer às famílias o seu direito e dever de educarem os seus filhos. Antes, é a sociedade e, nela, a família que solicita ao Estado ajuda para suprir aquilo em que ela se sente menos capaz. É por isso que se vale do saber que o Estado possui, através dos seus agentes, para formar cientificamente os seus filhos, pois, de outro modo, não o conseguiria. Mas, em matéria de educação cívica e moral, essa é uma reserva sua.

Mas, poderiam alguns dizer, porquê tanto alarido em torno de uma disciplina que é tão boa como ‘cidadania e desenvolvimento’, segundo dizem?

Importa, aqui, seguir duas linhas de análise.

Em primeiro lugar, atendendo à questão de princípio.

Seja boa ou não o seja, o dever de respeito pela liberdade de consciência dos pais na escolha do seu modelo educativo, em matéria de educação cívica e moral, tem de ser salvaguardado e respeitado. Assim em relação a Cidadania e Desenvolvimento, assim em relação a qualquer outra formação moral. (Assim acontece, por exemplo, o que, em nosso entendimento, faz jurisprudência para a análise deste caso, no que se refere a Educação Moral e Religiosa que é disciplina que, sendo de oferta obrigatória é de frequência facultativa, precisamente em respeito para com este mesmo princípio. Basta ver o que se afirma no acórdão 423/87 do Tribunal Constitucional).

Em segundo lugar, observando a materialidade da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento.

É no âmbito desta segunda linha que se observa que a discussão está deslocada do ‘assunto’.

Cidadania e desenvolvimento não é só uma bondosa disciplina em que se desenvolvem projetos solidários, atividades de promoção da dignidade da pessoa humana, de respeito pelo outro.

A disciplina tem muitos vetores altamente problemáticos, seja em matéria de educação da sexualidade (sabemos o que se vem defendendo a pretexto da saúde reprodutiva; a este pretexto, diga-se que é o tribunal europeu dos direitos humanos a afirmar que não pode considerar-se o aborto um direito humano! Veja-se acórdão de 16 de dezembro de 2010), da igualdade dos géneros (veremos de seguida), de educação ambiental (que matriz se defende: uma ecologia em que as espécies têm todas a mesma dignidade?), etc.. Como não há educação neutra, e não é explicitada a matriz ‘ideológica’ que as suporta, cidadania e desenvolvimento ou é um mero areópago de discussões (bastava criar um programa de televisão!) ou é um lugar de inculcação positivista de leis escritas (faz isto; evita aquilo, pois é o que está escrito na lei. Será pouca cidadania ativa, mas simples criação de autómatos.) ou, então, é espaço de transmissão de uma matriz de valores cujos fundamentos deveriam ser explicitados. Não o sendo, fica vulnerável à manipulação e ao trabalho ideológico.

Soma-se a este pressuposto que uma das áreas temáticas (domínios) de caráter obrigatório em todos os anos e ciclos aparece sob a capa de igualdade de género (a luta abnegada pela igualdade de oportunidades para homens e mulheres) sendo, porém, um alçapão para que se desenvolva uma nova antropologia de matriz platónica. Veremos isso já a seguir.

Muitos dirão. Mas eu sou platónico…

Muito bem. Subscreva a disciplina, mas permita que quem não o for se demarque dela.

Já em 2018 (no artigo ‘O adeus à racionalidade na Educação?) alertávamos para esta marca ideológica da disciplina. Veja-se, a título de exemplo, o que é referido nos guiões de educação género e cidadania, para o pré-escolar: «O termo sexo é usado para distinguir os indivíduos com base na sua pertença a uma das categorias biológicas: sexo feminino e sexo masculino. O termo género é usado para descrever inferências e significações atribuídas aos indivíduos a partir do conhecimento da sua categoria sexual de pertença. Trata-se, neste caso, da construção de categorias sociais decorrentes das diferenças anatómicas e fisiológicas.» (Guiões de Educação Género e Cidadania – pré-escolar – in http://www.dge.mec.pt) [O destaque é nosso.]

O que se irá, por isso, problematizar, na disciplina, não é a questão da indiscutível igualdade entre homem e mulher, mas sim que o género é uma mera construção mental, devendo considerar-se que todos os géneros são equiparáveis e fruto de uma mera construção individual. E mais. Pretende-se, sob a capa do respeito pela diversidade sexual, equiparar o que não é equiparável. Recordemos, a título ilustrativo, que não somos nós que consideramos discutível que se equiparem uniões heterossexuais a outras uniões. O Tribunal europeu dos direitos humanos produziu acórdão, em 9 de setembro de 2016 (pode ver-se aqui: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-163436), onde se afirma que a união homossexual não tem de ser equiparável, em termos de direitos, à união heterossexual, pelo que continua a ser legítimo que os Estados não os equiparem e não considerem ‘casamento’ a união homossexual. Tal demonstra quão discutível continua a ser a matéria. O respeito que é devido a toda a pessoa e à sua fragilidade não tem de implicar validar todo o comportamento e enquadrar as escolhas no mesmo registo e no mesmo enquadramento. Se cidadania e desenvolvimento afirmasse o dever de se respeitar toda a pessoa, estaríamos no âmbito dos direitos humanos e isso seria indiscutível. A pretensão de validação de toda a escolha e comportamento sem margem para a sua problematização e leitura ético-jurídica é algo bem distinto. E essa distinção não é feita, antes branqueada.

Dirão alguns que se identificam com este registo e com o que aqui denunciámos como discutível.

Sendo altamente problematizável e merecedor de análise detida, a sua posição deverá ser compaginável com a possibilidade de outros não se reverem nela, dado que não estamos diante de matérias de foro científico, mas do foro da ‘educação cívica e moral’ e, mais ainda, do âmbito das conceções ideológicas, pelo que tal papel educativo está vedado ao Estado, à luz do que é referido no artigo 43º da Constituição: «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas».

É isto que está em causa.

Nada há de radicalismo, de extremismo, neste pedido de que a disciplina, dada a sua natureza, seja de frequência facultativa… Há um pedido, que se espera que seja atendido, de respeito pela liberdade de escolha na educação. De outro modo, as leis e a Constituição não passarão de letra morta, em que os cidadãos não poderão confiar.

É por isto, talvez, que nos devemos preocupar com os extremismos: os dos que nos querem sonegar a liberdade, em nome de uma hipotética, bondosa e neutra educação cívica.

Quem poderia rejeitar uma educação cívica que fosse a mera afirmação do dever de respeito pelo outro, ainda que analisando, criticamente, os seus comportamentos (Sim, é um dever acolher a pessoa, ainda que possamos analisar, criticamente, os comportamentos. Tudo é suscetível de leitura moral. Importa que sejamos honestos e digamos porquê. Tudo é igualmente válido? Todos os comportamentos são igualmente aceitáveis? Aceitar e respeitar a pessoa não significa que todos os comportamentos devam ser apresentados, em contexto educativo, como igualmente válidos. De outro modo, o que será ‘educar’? Legitimar tudo o que se quer?) não impondo uma certa matriz, uma certa antropologia, uma certa visão sobre a sexualidade e os géneros?

Por este andar, ainda assistiremos ao momento em que será a Igreja a salvar o sexo. …Quando os géneros forem tantos (já são reconhecidos mais de 90!) que já nada sobre da sexualidade humana.

Nessa hora, quem ainda será livre para dizer o que pensa?

sábado, agosto 22, 2020

Manual de fraturação da sociedade | Novos cenários, o mesmo guião…

A emergência dos movimentos populistas (os que deixam de seguir valores superiores para se ‘submeterem’ à vontade do povo) deve deixar-nos a todos em estado de alerta. Não pela sua novidade, mas porque sempre estiveram entre nós.

Na verdade, uma análise mais fina do que está a acontecer poderá mostrar-nos a verdade da afirmação anterior. Para tal análise, socorramo-nos de um recurso que nos faculta a filosofia. Esta não se basta em observar o que se diz (análise material); procura saber como se chegou ao que se diz e que vias se percorrem para dizer o que se diz (análise formal).

À luz desta metodologia, podemos achar que o que nos dizem é novo, mas a análise formal permitirá levar-nos a concluir que já outros fizeram o mesmo que se está a fazer.

De que falamos?

Os ‘novos’ movimentos populistas alimentam-se da mesma estratégia seguida pelos que se dizem no lado oposto do espectro político e ideológico.

O método é o de sempre: insensibilizar para ‘naturalizar’ (tornar natural), ridicularizando os que assumem o que deveria, de facto, ser ‘natural’ e válido, insistindo, até à exaustão, na necessidade de mudar, como se houvesse um problema a urgir resposta.

Tomarmos consciência disto deve aguçar-nos o olhar e levar-nos a dizer que esse é um caminho que não queremos continuar a percorrer.

Também ‘outrora’ nos asseguraram que jamais Portugal haveria de aceitar que fosse legítimo uma mãe rejeitar o seu filho. (Mas Portugal veio a legalizar o aborto e, hoje, os números deveriam envergonhar-nos.) Também outrora nos parecia ser impossível que, nas decisões respeitantes à criança, não se tivesse como prioritário o seu ‘superior interesse’ e que, à luz dessa certeza, jamais a privaríamos do seu legítimo direito a ter pai e mãe, como referência prioritária nas decisões. (Mas Portugal e o mundo deixaram que a criança se tornasse um ‘bem’ de que dispõem os que a pretendem, mesmo sem lhe assegurar ter pai e mãe, como se o amor fosse, apenas, um vago afeto.) Também outrora se nos afigurou impossível que se entendesse ser legítimo gerar uma criança para a orfandade, aceitando, por exemplo, inseminar uma mulher com sémen do seu companheiro morto (como está a discutir-se, neste momento, em França). Também outrora se considerou impossível que se legitimasse que o filho matasse o seu pai ou a sua mãe, a pretexto de estar doente ou já sem rumo e que, por isso, jamais Portugal haveria de aceitar a eutanásia ou qualquer outra prática semelhante.

Também outrora reconhecíamos que a importância da família a tornava merecedora de toda a proteção, dada a sua relevância como estrutura-célula de todas as demais relações, e não privada de tal relevância pela via do alargamento do conceito a modelos e ‘organizações’ que pouco têm da referência familiar, conduzindo ao esvaziamento do significado da consideração de que a família seja a base da sociedade.

Em todas estas ‘impossibilidades’ passadas há um ponto em comum. Alguém se encarregou de insensibilizar a sociedade, conduzindo-a à aceitação da ‘naturalidade’ das opções que a todos se afiguravam ilegítimas. E essa insensibilização utiliza a estratégia de sempre: massacra com a repetição do assunto; cria casos e insiste na matéria; ridiculariza os que assumem a legitimidade do modelo que a sociedade sempre seguira (veja-se como, em França, neste momento, se está em vias de aceitar o aborto até ao final da gravidez; os que pretendem fazer passar a medida, consideram os seus opositores ‘ultraconservadores’. Deveria apetecer-lhes somar mais ‘atributos’ a esta qualificação, designando-os, eventualmente, como ‘ultra-super-extra-conservadores’. O exagero ridicularizaria a opção. Basta ‘ultraconservador’ que a mensagem já passa. Ninguém quer ficar desse lado!) e multiplicam-se as notícias de que a mudança em curso é uma inevitabilidade.

A mesma estratégia está, agora, em curso.

Aos imigrantes são atribuídas as culpas do que ocorre. Criam-se ‘casos’ e mais ‘casos’. Ridiculariza-se como ‘radical’ de esquerda quem assume que, também nós fomos emigrantes e, por isso, temos um dever acrescido de acolher. E, por fim, insiste-se na ideia de que também outros estão a seguir por este caminho de exclusão como se fosse uma inevitabilidade.

A memória do que já nos fizeram, manipulando-nos, deveria acordar-nos para o que estão a fazer-nos, agora.

São, afinal, novos cenários e novos protagonistas com o mesmo guião.

Já o vimos e não gostámos… Não queremos ir por aí!

A história demonstra-nos que o combate contra todos os populismos só se faz com a firmeza nos valores estruturantes. Nunca daí deveríamos ter saído. Nós próprios o fomos dizendo: a desvinculação em relação a valores fundamentais, em relação à realidade natural e à condição própria do ser humano, enquanto portador de dignidade que o estatui como inviolável, torna a política e o direito terreno para a decisão meramente arbitrária. E essa é a melhor massa de que se fazem os ditadores.

Ouçamos a lição da história. E não a apaguemos da memória.

quinta-feira, agosto 13, 2020

Inacreditável! A França prepara-se para aprovar o aborto até aos nove meses de gestação…


A Assembleia Nacional francesa aprovou, em segunda votação, um conjunto de decisões que reveem a ‘lei da bioética’ o que, para além de estar envolvido num processo merecedor de particular estranheza (segundo jornal ‘Gazeta do povo’, de 577 deputados franceses, só 101 votaram esta lei, sendo que 60 foram a favor, 37 votaram contra e 4 abstiveram-se), se for aprovado pelo Senado francês, permitirá a realização do abortamento voluntário, a pretexto de serem casos de ‘sofrimento psicossocial da gestante’, até aos nove meses de gravidez. A estas medidas acrescentam-se, ainda, a possibilidade de reprodução assistida para mulheres solteiras ou uniões homossexuais femininas, a flexibilização da doação de gâmetas, etc.

A simples descrição desta possibilidade deveria suscitar em quem a lê um imediato repúdio, mas a insensibilidade coletiva agudiza a necessidade de se descrever o que está, verdadeiramente, em causa.

Antes de mais, a mera abertura desta possibilidade (que já não o é, apenas; está na iminência de vir a ser lei!) demonstra a pouca honestidade que tem acompanhado a discussão destas matérias, desde o seu início. Estas propostas são sempre, inicialmente, (veja-se o que tem sido dito para aprovar, em Portugal, a eutanásia) descritas como sendo para exceções. A bitola vai-se alargando, porém, e a exceção acaba por ser, ao fim de algum tempo, a proteção inicialmente desblindada. Esta mera enunciação de possibilidade (já não o é, como vimos!) demonstra que o que está em causa não é, afinal, uma qualquer compaixão, mas a efetiva afirmação de um direito que, pela dificuldade em demonstrá-lo, juridicamente, se faz valer pela via da prática. O tribunal europeu dos direitos humanos deliberou, contudo, sem possibilidade de recurso, em 16 de dezembro de 2010, com 11 votos a favor e 6 contra, que o aborto não é um direito humano sendo, por isso, legítimo que os Estados o penalizem. Mas a matéria, não só não é revertida no sentido do reconhecimento de que somos incoerentes ao desproteger os filhos humanos, como, a confirmar-se esta decisão francesa, se continua a alargar o quadro de ‘direitos’.

É bom sublinhar que, a aprovar-se, esta matéria mostra como está doente a democracia. Como bem recordava, em 1991, o grande filósofo francês, Paul Ricoeur, a democracia que não respeita valores ético-morais corre o risco de ‘não ter outro critério a apresentar além dos seus próprios procedimentos’ (Revista Esprit, janeiro de 1991), ficando vulnerável a todo o tipo de manipulação. Se o único valor é o que decidir a maioria, sobrará o espaço para a ditadura dos que gritarem mais alto e melhor manipularem as hordas (caminho para o populismo?).

Onde está a dúvida sobre a qualidade 'humana' de uma vida 'humana' (!) em gestação? Onde está a dúvida sobre o que significa a afirmação registada, por exemplo, na constituição da República Portuguesa, de que ‘a vida humana é inviolável’? Se o argumento é o de que caberá a cada um decidir sobre o que lhe diz respeito (como se a vida de um filho só à mãe dissesse respeito!), porquê parar, então, aqui? Porque não aplicar o princípio a tantas outras coisas: porquê obrigar alguém a ter escolaridade obrigatória? Porquê obrigar alguém a pagar impostos? Porquê obrigar alguém a adotar comportamentos que não quer (uso de máscaras, por exemplo, neste contexto de pandemia, uso de cinto de segurança, etc.)?

Eu sei por que razão é legítimo continuar a fazer isto que nos é imposto. Tenho dúvidas sobre a coerência de quem defende o aborto até ao fim dos nove meses na resposta a estas perguntas. Ficará, no limite, com a resposta de que se deve fazer porque alguém assim determinou…

É muito pouco para uma vida em sociedade.

Há valores que são anteriores à decisão da maioria e o da existência de alguém (sim, um filho em gestação é alguém!) deve ser um desses indubitavelmente merecedor de proteção perante o exercício da livre decisão. Não existimos porque somos livres; antes, sim, somos livres porque existimos.

A inversão desta constatação é mais do que isso: perverte a vida em sociedade, na medida em que isola cada um sobre e em si mesmo. Não temos, deste modo, uma sociedade, mas uma mera soma de indivíduos sobre um território comum.

Sociedade que legitima a violência dos pais (da mãe, neste caso) sobre os filhos não pode esperar que a resposta seja a paz e o respeito não violento.

Haja um Senado que nos valha, já que de Deus andam bem longe estas decisões!

Sabes, leitor... | 21 | Marca de água do livro de Teresa de Melo Ribeiro, José Ribeiro e Castro e Isilda Pegado (coordenação), 'My body, my life: no debate sobre o aborto'

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