Se é verdade - como diz Pessoa, o
poeta que tão genialmente soube fazer da alteridade a condição para se dizer a
si mesmo - que a língua portuguesa é nossa pátria, valha-nos, nesta hora de
tantas crises, a riqueza do idioma para compensar outras pobrezas. Na
realidade, em nenhuma outra língua das que se nos disponibilizam se conseguiria
exprimir com tal força a densidade que pretendemos reunir no título que serve
de pretexto a este texto. Se o quiséssemos dizer em francês, em inglês, em
espanhol ou uma outra das que se nos acercam, não saberíamos se dizer
«présent», «presente», «present» (para exprimir a dimensão temporal) ou se
cadeau, regalo ou gift (para repercutir a dimensão de «dom» e «oferta»). Mas,
na nossa pátria, é impossível fazer-se a oferta sem se lhe associar a nossa
presença, que é tempo e lugar de acontecimento.
Tal densidade linguística parece
conferir à nossa língua o estatuto de idioma teológico, por tão resolutamente
reunir a densidade do acontecer salvífico.
O acontecer, na história, da
doação de Deus enquanto oferta não devida, mas de vida, expressa o desejo de Deus de pretender tornar-se
contemporâneo do homem, não apenas rebaixando-se, mas, mais ainda, elevando o
homem. É na glorificação do homem que se manifesta a divindade e não pela sua
aniquilação. Apesar de tantas vezes negada pela prática de muitos cristãos, que
se convenceram de que a afirmação de Deus teria de operar-se pela negação do
humano (incorrendo num adopcionismo latente), esta é uma verdade que faz parte
do núcleo cristão que, desde a primeira hora, reconheceu no homem Jesus a
presença e manifestação do Cristo divino. Assim, o acontecer da encarnação não
expressa a anulação do que há de humano para o substituir a fim de que aconteça
o divino, mas antes a afirmação em cinzel de que a «glória de Deus é o homem
vivo» (Santo Ireneu).
O acontecer da encarnação se é,
por isso, uma autêntica manifestação de quem é Deus, enquanto ser que se
relaciona (que é marcado pela pessoalidade, que se define como ser de relação,
como amor, como trindade), é ainda mais acontecimento que revela a enorme
dignidade do humano, repto para tempos que pretendem fundir no indiferente e na
mera individualidade não relacional.
Assim o expressa, de forma inigualável
Andrés Torres Queiruga, num seu texto sobre a ressurreição, recolhido no livro
‘Quem é/quem foi Jesus Cristo?’, recentemente publicado: «Entre as categorias
de que dispõe o pensamento humano, só as pessoais podem ajudar a compreender –
ainda que de bem longe – esse mistério pelo qual a máxima comunhão com Deus não
conduz à dissolução do indivíduo, mas à sua máxima afirmação. Trata-se dessa
única e maravilhosa dialéctica do amor que tão bem exprimiu Hegel, ao afirmar que
consiste numa relação estranha, na qual «ser no outro» constitui a verdadeira
forma de estar consigo mesmo; que diferencia e afirma na mesma medida em que
une; que faz com que quanto mais se dá mais se tem. E o mesmo tinha dito, com
mais intensidade, se possível São João da Cruz, falando ousadamente de uma
reciprocidade tão absoluta entre Deus e a criatura que, assim como a pessoa
humana se recebe de Deus, também Deus se recebe dela.»
O presente temporal de Deus dá
pelo nome de bem-aventurança eterna, sendo «graça» o nome com que se reconhece
o presente oferecido por Deus. Termos que desmontam toda a tentação de
sustentar este encontro no dever ou na obrigação. A sua matriz é, antes, o
amor, que só o é se for graça – tão gratuito
como pleno de humor, pois tal nos
permite descortinar a nossa pátria Língua! O humor da felicidade definitiva!
Luís Manuel Pereira da Silva