domingo, dezembro 02, 2012

Jesus, presente de Deus



Se é verdade - como diz Pessoa, o poeta que tão genialmente soube fazer da alteridade a condição para se dizer a si mesmo - que a língua portuguesa é nossa pátria, valha-nos, nesta hora de tantas crises, a riqueza do idioma para compensar outras pobrezas. Na realidade, em nenhuma outra língua das que se nos disponibilizam se conseguiria exprimir com tal força a densidade que pretendemos reunir no título que serve de pretexto a este texto. Se o quiséssemos dizer em francês, em inglês, em espanhol ou uma outra das que se nos acercam, não saberíamos se dizer «présent», «presente», «present» (para exprimir a dimensão temporal) ou se cadeau, regalo ou gift (para repercutir a dimensão de «dom» e «oferta»). Mas, na nossa pátria, é impossível fazer-se a oferta sem se lhe associar a nossa presença, que é tempo e lugar de acontecimento.
Tal densidade linguística parece conferir à nossa língua o estatuto de idioma teológico, por tão resolutamente reunir a densidade do acontecer salvífico.
O acontecer, na história, da doação de Deus enquanto oferta não devida, mas de vida, expressa o desejo de Deus de pretender tornar-se contemporâneo do homem, não apenas rebaixando-se, mas, mais ainda, elevando o homem. É na glorificação do homem que se manifesta a divindade e não pela sua aniquilação. Apesar de tantas vezes negada pela prática de muitos cristãos, que se convenceram de que a afirmação de Deus teria de operar-se pela negação do humano (incorrendo num adopcionismo latente), esta é uma verdade que faz parte do núcleo cristão que, desde a primeira hora, reconheceu no homem Jesus a presença e manifestação do Cristo divino. Assim, o acontecer da encarnação não expressa a anulação do que há de humano para o substituir a fim de que aconteça o divino, mas antes a afirmação em cinzel de que a «glória de Deus é o homem vivo» (Santo Ireneu).
O acontecer da encarnação se é, por isso, uma autêntica manifestação de quem é Deus, enquanto ser que se relaciona (que é marcado pela pessoalidade, que se define como ser de relação, como amor, como trindade), é ainda mais acontecimento que revela a enorme dignidade do humano, repto para tempos que pretendem fundir no indiferente e na mera individualidade não relacional.
Assim o expressa, de forma inigualável Andrés Torres Queiruga, num seu texto sobre a ressurreição, recolhido no livro ‘Quem é/quem foi Jesus Cristo?’, recentemente publicado: «Entre as categorias de que dispõe o pensamento humano, só as pessoais podem ajudar a compreender – ainda que de bem longe – esse mistério pelo qual a máxima comunhão com Deus não conduz à dissolução do indivíduo, mas à sua máxima afirmação. Trata-se dessa única e maravilhosa dialéctica do amor que tão bem exprimiu Hegel, ao afirmar que consiste numa relação estranha, na qual «ser no outro» constitui a verdadeira forma de estar consigo mesmo; que diferencia e afirma na mesma medida em que une; que faz com que quanto mais se dá mais se tem. E o mesmo tinha dito, com mais intensidade, se possível São João da Cruz, falando ousadamente de uma reciprocidade tão absoluta entre Deus e a criatura que, assim como a pessoa humana se recebe de Deus, também Deus se recebe dela.»
O presente temporal de Deus dá pelo nome de bem-aventurança eterna, sendo «graça» o nome com que se reconhece o presente oferecido por Deus. Termos que desmontam toda a tentação de sustentar este encontro no dever ou na obrigação. A sua matriz é, antes, o amor, que só o é se for graça – tão gratuito como pleno de humor, pois tal nos permite descortinar a nossa pátria Língua! O humor da felicidade definitiva!

Luís Manuel Pereira da Silva

quarta-feira, novembro 21, 2012

Perguntas de antropologia teológica 1



O homem tem corpo e alma?

A pergunta é feita por muitos e ganha pertinência, nestes tempos que parecem oscilar num balancé que nos leva do extremo da fusão na matéria à fusão no espírito. Mas a resposta não é tão óbvia como um olhar distraído possa fazer crer.
Para responder, comecemos por dar conta de que se se «tem» alguma coisa é porque existe um sujeito bem definido que exerce essa propriedade. Logo, esse algo que se tem é exterior ao mesmo sujeito.
Com este pressuposto, é fácil concluir que se o homem possuir «corpo» ou possuir «alma», ao falar do Homem estaremos a falar de algo diverso desse alguém que possui. O que nos obriga a fazer uma escolha de entre duas opções: ou manter a linguagem e então andaremos em busca do referido alguém que possui esse corpo e essa alma ou, então, corrigir a linguagem.
E a opção da antropologia cristã vai, sem margem para dúvidas, para a segunda opção. O homem não «tem» corpo e não «tem» alma, mas sim «é» corpo e «é» alma.
Na verdade, num processo que se foi consolidando lentamente ao longo da história, a visão cristã sobre o que seja o homem sempre se opôs a dois tipos de conceções opostas: a monista e a dualista. A conceção monista fundia o homem no corpo (reduzindo-o a pura manifestação da matéria, fora da qual nada há) ou no espírito, (transformando o homem numa espécie de anjo caído). A conceção dualista afirmava que corpo e alma eram, em si mesmos, duas substâncias independentes, que se uniam para a vida na terra e se separavam na morte. Esta segunda conceção considerava que a alma, enquanto substância em si, era a origem do bem, enquanto o corpo, como substância distinta, era causa do mal.
Tais conceções foram reiteradamente recusadas pela teologia cristã, ainda que a tentação de lhes ceder seja frequente.
No equilíbrio entre estas duas conceções opostas, o cristianismo sempre sustentou que corpo e alma não são substâncias distintas, mas princípios de ser que não se podem conceber distintos e separados um do outro. O homem é corpo – é relação com os outros, com o mundo, definido na sua identidade, contra todas as conceções que pretendem fundir o homem com uma espécie de energia cósmica. É a corporeidade que suporta a identidade relacional; o homem é alma, enquanto interioridade e abertura ao transcendente.
Neste quadro, o corpo sai revalorizado, contra todas as tentações de lhe atribuir a origem do mal. Já a própria antropologia paulina reconhece que não é o corpo a origem do mal, mas o coração do homem, isto é, o homem todo, nas suas escolhas e decisões.
E também a alma sai reforçada enquanto dimensão do homem que o torna distinto dos demais seres, em particular num tempo que pretende fundir a dignidade humana com a natureza animal, nada mais vendo do que uma pequena diferença na quantidade de genes que o tornam um entre iguais.

quarta-feira, outubro 24, 2012

Ano da fé – tempo oportuno ou adiado? (A fé cristã está sob suspeita?)

A suspeita que os célebres mestres, Nietzsche, Freud e Marx, lançaram sobre a fé já se desvaneceu? E porque foi tão profunda que, mesmo decorrido mais de um século sobre a sua descida, qual neblina silenciosa, ainda não resplandece o céu azul sobre a fé cristã? Ou, até, em muitos momentos, parece, mesmo, que se projectou sobre a neblina uma qualquer imagem holográfica que ilude estar-se perante um céu verdadeiro? Porque continua a temer-se o encontro com os que perguntam pelas razões da nossa fé? Porque continua a sentir-se a impressão de que há medo de perguntar pelos desafios efectivos que o encontro com a cultura contemporânea coloca à fé cristã?
Não é esta a atitude que preconiza Bento XVI e que lhe assistirá, seguramente, à convocação para um ano da fé. Provam-no os seus escritos, ao longo de mais de cinquenta anos de reflexão (é, no mínimo surpreendente, por exemplo, o alcance do seu pensamento, na sua recuperada «Introdução ao Cristianismo», onde não se teme, por exemplo, integrar as implicações de uma adequada compreensão evolucionista na própria reflexão sobre o homem e o seu encaminhamento para Deus).
Julgando, por isso, fazer justiça a este desiderato profundo de renovar, em cada momento, sem medo, - tão frequente é o «não temais» nos evangelhos! – as razões para a fé, é, seguramente, oportuno ouvir, de novo, as mais acutilantes críticas que a suspeita (a Paul Ricoeur se deve o cognome de «mestres da suspeita») tem lançado sobre a fé e que urge saber ouvir e perceber o alcance nela escondido. Não para colocar a fé em atitude de apologia, regressando a um tipo de discurso que favoreceu a emergência da suspeita, por se fechar num círculo auto-justificativo, mas sim para distinguir o que é essencial e acidental nessa crítica. Em muitos casos, a crítica enuncia-se sobre aspectos periféricos, que contribuem para ridicularizar o «depósito da fé», seja adequada, seja inadequadamente. A distinção entre o essencial e o acessório, critério tão claramente definido na Unitatis Redintegratio como condição para a realização do ecumenismo, continua a ser assumido de forma titubeante.
Mas regressemos ao ponto em que nos propúnhamos recolher as mais acutilantes críticas formuladas à fé cristã.
O século XIX, envolvido no seu optimismo antropológico e científico, que confiava num progresso ilimitado e, mesmo, infinito, olhou para a fé como o resultado de uma projecção do desejo humano. No dizer de Feuerbach, a teologia deveria ser reduzida a antropologia, pois o que se dizia de Deus mais não era do que a expressão do que se desejava que o homem fosse. Este ponto de partida foi assumindo diversas configurações e matizes. Formulou-se como afirmação de que a fé contribuía para a alienação do homem – o homem transferia para Deus a sua própria natureza – ou a fé religiosa mais não era do que o ópio do povo, contribuindo para o distrair dos reais problemas que uma sociedade intrinsecamente mal estruturada favorecia.
A pertinência desta crítica continua hoje a merecer atenção. Deve continuar-se, ainda hoje, a perguntar se a fé é um mero sossego dos espíritos, o que, a sê-lo, trairá a própria natureza da fé, que deve contribuir para a inquietação perante a perdição humana. Só perante o Santo, que é Deus, é possível ver quanto ainda o homem deve progredir. Mais do que um olhar para trás, a fé só pode responder a esta crítica afirmando-se como um olhar para diante, não para fugir do presente, mas para o fermentar. O erro esteve em perder-se esta tensão: em esgotar o homem, ou no futuro, ou no passado. Hoje, esgota-se o ser humano no presente. E a fé pode impedir, curiosamente, que o homem sofra uma nova «vaga» de alienação, abrindo-o à memória e à esperança.
Uma segunda crítica é a que qualifica a fé como obscurantista. Curiosamente, na nossa sociedade portuguesa esta é uma crítica que vem, muitas vezes, dos que pertencem a sociedades secretas, pouco propensas à exposição e clareza de procedimentos. Convenhamos, porém, que a fé cristã deu, muitas vezes, o flanco, ao não ter sabido afirmar que a sua crítica a certos modos de fazer ciência não era uma revolta contra a ciência, mas contra a construção da ciência feita negando o homem (ciência sem ética) ou contra a ciência absolutizada (que esquece que a ciência é competente a conhecer os seus objectos de investigação e segundo os seus métodos, mas incapaz de se estruturar como uma explicação última para o sentido do mundo, do homem, da história…). A história, apesar de casos mal contados como o de Galileu, demonstrará, a quem estiver disposto a estudá-la sem preconceito, que é impossível fazer uma história da ciência sem contar com o contributo da fé cristã. Leia-se, a título de sugestão, a obra «o que a civilização ocidental deve à Igreja Católica», de Thomas Woods, Jr.
Uma terceira crítica, decorrente da anterior, atribui à fé a causa do fundamentalismo e do fanatismo.
Mais uma vez, a primeira responsável pela pertinência da crítica estará na própria forma de vivência da fé que parece enclausurar-se em circuitos explicativos redundantes, receosos da crítica. Contudo, esta não será, de todo justa se esquecer que não lhe é específico o comportamento fanático ou fundamentalista. Ele emerge sempre que alguém se sente inseguro e incapaz de explicar aos demais os motivos das suas escolhas. Assim acontece na política, no futebol, nas manifestações nacionalistas, etc. A religião e a fé não são, de facto, a origem do fanatismo, antes um seu instrumento por parte dos menos esclarecidos. Não é a religião que é fanática, mas sim alguns fanáticos que se apropriam da religião para fortalecer as suas opções de poder. Assim, importa tomar consciência de que, em vez de ser a origem do fundamentalismo e do fanatismo, pelo contrário, a fé religiosa pode ser o seu maior antídoto. Na verdade, só pode combater-se o fundamentalismo e o fanatismo revelando que tudo na vida terrena é relativo perante o único absoluto que é Deus e que nunca é conquistado pelo homem de forma definitiva. Esta consciência só é possível com a fé. De outro modo, a história torna-se absoluta e perverte-se.
Uma quarta crítica teve em Nietzsche o seu grande patrono. Filho de pastor pietista, o poeta alemão julgou ver na fé cristã a causa de uma moral de fracos que, não conseguindo vencer aos vencedores de outro modo, lhes impõem a moral como forma de os controlarem. Esta moral configurava-se, para o autor da «Gaia ciência», como uma negação da vitalidade do corpo, da pujança da vida, tornando o homem amorfo, como se fosse necessário dispensar o corpo para crer. Ora, uma tal crítica ainda hoje pode ser oportuna e desafiadora. Quantos modelos de santidade mais parecem negação do que afirmação de humanidade! A própria arte popular deu um contributo para a validade desta crítica ao representar santos como se não possuíssem vontade própria. Importa, por isso, compreender que a antropologia cristã recuperou o corpo para a salvação. É o homem todo, não uma parte de si, que se salva. Mas a crítica deve continuar no horizonte, para que a moral social e pessoal não se estruturem sobre uma ideia de fuga do mundo, mas antes de assunção do que este tem de processo de caminho para Deus.
Ainda que possivelmente datadas pela época de optimismo que definiu o século XIX, estas críticas continuam a servir de suporte a outras que mais não são do que manifestações destas mais profundas. Tal continuará a exigir a coragem de perguntar se as nossas escolhas e as nossas razões dadas da fé continuam a permitir responder afirmativamente à pergunta: «quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?» (Lc 18, 8)

Luís Silva

quarta-feira, setembro 12, 2012

Manifesto por uma humanocracia cristã



A história está convencida de que chegou ao seu termo. Dizem! Aliás, os próprios que o disseram já não estão tão certos disso, mas a ideia continua a fazer escola. Na verdade, depois de Fukuyama, autor de um célebre livro que recebeu como título «o fim da história», muitos são os que defendem que atingimos o modelo último de organização da sociedade política e da economia. Esta ideia resulta de convicção de que, após a queda das ideologias e dos regimes totalitários, já não restará senão a democracia e o capitalismo.
Não estou certo disto. A história fez-se e define-se pela efemeridade dos sistemas que, ou se desenvolvem ou são substituídos por outros sistemas. E este não tem razão para ser diferente. Sucumbirá como os demais e verá surgirem dos seus escombros novas respostas e modelos de organização Resta saber se será fazendo dos escombros peças a contemplar ou poeira a ocultar.
Ora, sente-se no ar a emergência de novos modelos, pois os sinais vertiginosos de que o modelo vigente possa começar a sucumbir podem passar despercebidos, mas deixam o seu perfume espalhar-se. Na verdade, não são de hoje as palavras de João Paulo II que alertava, na sua encíclica de 1991, «Centesimus Annus», para os riscos da absolutização do modelo capitalista, sendo que sucumbira, com a queda do Muro de Berlim, aquele que se pensava ser o único modelo rival.
Muitos são os indícios que parecem dar razão a este alerta do Papa polaco e que nos fazem sentir a impressão de um certo retorno às tentações vigentes por altura dos primeiros documentos eclesiais sobre matérias sociais. Na realidade, em finais do século XIX, a concentração da riqueza nas mãos de poucos, a desvalorização da pessoa no contexto da economia, o silenciamento das histórias pessoais propiciaram a emergência de respostas que configuraram modelos alternativos.
Neste contexto, o cristianismo procurou envolver-se e não ficar alheio aos desafios que se afiguravam diante de si.
Ontem, como hoje, o Cristianismo é chamado a encontrar respostas e a não bastar-se com modelos sempre efémeros, erroneamente tomados como certos e definitivos.
Em verdade, se não o souber fazer, será mesmo ultrapassado pela história. Importa, porém, sublinhar que nenhum modelo será, também ele, capaz de configurar, de forma definitiva, o que seja o pensamento do cristianismo sobre as sociedades. A sua leitura escapa sempre às tentativas de aprisionamento. Aliás, o pressuposto de todo o modelo que se pretenda devedor das intuições cristãs não poderá senão ter este dado como premissa paradoxalmente absoluta: a sua efemeridade, pois a história não é a eternidade.
Neste quadro, exige-se, antes de mais, uma resposta que saiba ultrapassar as soluções para um suposto dilema entre Estado e Indivíduo, como se não restasse outra hipótese. Na verdade, o pressuposto deste dilema esquece o ponto de partida de toda a resposta cristã: o fim de toda a actividade política e económica não pode ser senão a pessoa e o fim da pessoa é a eternidade. Este terá de ser o lema da «humanocracia cristã» do qual decorrem consequências enormes. A maior delas é a certeza de que Estado, instituições, bens, etc., são sempre meios e, por isso, nunca fins em si mesmos. Tal postura coloca uma política de matriz crista numa lógica de «humanocracia». Não é o povo, anónimo e desconhecido, reduzido à condição de eleitor ou mero cidadão, quem (parece que) governa, mas sim a pessoa humana, definida pela sua identidade e pela sua história. Ela é memória e projecto. O registo deverá ser sempre o da protecção da pessoa, em todas as suas dimensões, sabendo sempre que as instituições da sociedade (empresas, organizações não governamentais, partidos, etc.) e o Estado não são fins em si. O seu papel é o serviço da pessoa humana. Não uma entidade abstracta, sem raízes, nem história. Este dado, aparentemente teórico, neutro e inócuo, exige uma posição de compreensão de que o que a pessoa é, nas suas buscas mais autênticas e verdadeiras, deve ser respeitado. Também aqui se redefine o modo de fazer a política que tenha em conta as vivências públicas e pessoais, colectivas e individuais, inaugurando uma justa laicidade, que não é esquecimento das religiões, mas são convivência e aliança para um contributo comum. Que tenha, também, em linha de respeito, a construção lenta, demorada do modelo de família, de reconhecimento da dignidade da vida humana, seja na fragilidade do seu início, seja na debilidade do seu fim, e que não force abruptamente a transformação dos modelos, em nome de ideologias da razão abstracta, incapaz de integrar o que lhe diz a razão histórica que é sempre situada e protectora da vida. A razão abstracta, que idealiza o homem no vazio, convenceu muitos, por exemplo, de que «ser mãe» é o mesmo que um homem «fazer de mãe». À razão histórica não é preciso muito para concluir quão imenso é o abismo entre o «ser» e o «parecer que é». A mesma razão abstracta idealizou um homem sem dimensão religiosa e espiritual, dimensão que a razão histórica conclui ser impossível dissociar da construção colectiva do humano.
Porque nem todos têm a mesma capacidade de crescer e progredir, de alcançar o sucesso e de o conservar, a opção deverá sempre recair sobre os mais desfavorecidos, seja económica, seja socialmente, não em nome do Estado e contra quem quer que seja, mas em favor de todos, pois o pressuposto da matriz cristã não é o conflito, pressupondo uma liberdade que acaba onde começa a do outro, mas sim uma liberdade que aumenta com o aumento da liberdade do outro. O alicerce principial que deverá sempre estruturar esta relação é o da subsidiariedade: o que pode fazer uma estrutura ou entidade mais próxima das pessoas não deverá ser assumido pelas entidades superiores. Tal pressuposto combaterá todos os monopólios, sejam de Estado sejam empresariais, e acentuará, contra todo o anonimato, a organização de políticas de proximidade.
Uma tal matriz não pode sustentar-se sobre a injustiça, sobre a mentira, sobre a afirmação que tem a duração da expectativa de atingir o poder. Seja nas relações internas a uma nação, seja na relação entre nações. A mentira, a falta de verdade mina a estrutura política, as sociedades, as relações interpessoais e conduz, progressivamente, a sistemas de poder que têm de perpetuar-se pela violência e pela lei da força. Para consubstanciar tal pressuposto, a «humanocracia cristã» deverá sustentar-se no pressuposto de que o poder tende a corromper, pelo que deverá existir a disponibilidade permanente para abandonar o seu exercício se tal for a resposta mais justa e mais verdadeira.
Deverão tais linhas de configuração de um outro modo de agir político e económico originar movimentos concretos e estruturados, paralelos aos existentes? A tentação de responder afirmativamente não é pequena. Na verdade, ao configurarem-se em partidos, as matrizes dos sistemas enunciados deixam sempre de fora algo de importante. Bem certo que a política é a arte dos possíveis. Mas, serão os possíveis tão pouco? Não é verdade que, ou temos partidos que são capazes de assegurar o respeito pela autoridade, pelo rigor, pela exigência, mas que tendem a proteger os mais fortes, esquecendo a opção pelos mais pobres, ou, então, temos partidos que, pretendendo-se protectores dos mais frágeis, idolatram o Estado como se ele fosse um fim em si mesmo e que sempre se pretendem numa dinâmica de revolução que afoga os modelos historicamente conquistados? Não é verdade que ou temos partidos que falam de um desenvolvimento económico a longo prazo, e que esquecem a justiça imediata para com os mais débeis, ou, então, temos partidos que esgotam no imediato o crédito de que dispõem, impondo, num segundo momento, ditaduras que tentem perpetuar-se por fracasso do modelo?
Se a história demonstrar que tais linhas cumprem a sua função enquanto horizontes de ideal, configurá-las em movimentos é traí-las; mas se o grito dos mais débeis o exigir, os braços não podem abandonar o arado.

quarta-feira, setembro 05, 2012

Uma leitura imprescindível

Acabo de ler «Jerusalém - a biografia», em boa hora editado pela sempre oportuna «Alêtheia». Tenho de confessar que preciso de resistir muito para não comprar as novidades desta editora. E em bom momento não resisti à compra desta obra. Simon Sebag Montefiore revela-se um génio da escrita e um narrador que, de tão omnipresente aos relatos que faz da história desta cidade, nos quer tornar também a nós omnipresentes.
Os muitos méritos desta obra - excelente documentação, precisão de pormenores, carácter inédito de muitos dos documentos referidos - saem reforçados pela fluência da escrita e a minúcia dos detalhes.
E muitas curiosidades sobre esta cidade, palco de tantas paixões como conflitos. Impossível perceber o mundo de hoje sem compreender a história de Jerusalém. E Montefiore é o cicerone perfeito.
Sabia que os Nusseibehs e os Judehs, famílias que têm a responsabilidade de abrir as portas do Santo Sepulcro, ainda hoje, têm essa incumbência desde 1192, tempo do célebre Saladino?
Sabia que Churchill tinha proposto a Estaline que a Conferência que veio a ocorrer em Ialta se realizasse em Jerusalém?
Sabia que, no século XII, período em que Jerusalém esteve sob o controlo dos cruzados, os «peregrinos compravam alimentos e gelados na rua da Culinária de Má qualidade (Malcuisinat)? Ou que Suleimão, sultão otomano que tomou Jerusalém em 20 de Março de 1517, mandou construir umas muralhas em torno da cidade, as quais deixaram de fora o túmulo de David. Irritado, terá mandado matar os arquitectos? Ou, ainda, que, como era prática entre os povos do Livro, os documentos que deixavam de ser usados eram armazenados em guenizas (armazéns)? Na gueniza do Cairo, que não foi esvaziada durante cerca de 900 anos, foram encontrados, em 1864, mais de 100.000 documentos, fundamentais para a compreensão da vida e cultura dos judeus do Egipto.
Sabe o que aconteceu entre o ano 70 d. C., em que o imperador Tito destruiu a cidade, e 1948, em que se criou o Estado de Israel? A leitura desta obra completará o vazio que a história parece ter escondido.
Como compreender o conflito hoje existente no Médio Oriente, sem saber os efeitos do mandato britânico que controlou a cidade entre 1920 e 1936? Como compreender as amizades e inimizades de cada uma das potências mundiais de hoje desconhecendo o que ocorreu entre as duas guerras mundiais no que respeita à relação com esta cidade?
Um manancial de descobertas.
Uma obra que poderia merecer o título de «o Livro humano» que melhor fala da cidade do Livro.

segunda-feira, agosto 27, 2012

Testamento vital: a morte como herança?


Com a lei 25/2012, de 16 de Julho, que entrou em vigor a 16 de Agosto, passou a existir, em Portugal, a possibilidade de expressar, antecipadamente, a vontade sobre os tratamentos que se «deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente.»
A importância da matéria merecia maior abordagem, mas foi notória a quase indiferença perante iniciativas que procuraram proporcionar oportunidades de discussão. Na nossa diocese, contaram-se iniciativas da Associação de Médicos Católicos, do ISCRA e de outras entidades, cuja adesão patenteou que a matéria escapava ao interesse da maioria.
Contudo, valerá a pena não nos deixarmos afogar por esta onda de indiferentismo. A relevância e a intenção que assistem à formulação desta lei exigem que se discuta o que nela se preconiza.
Importa, logo à partida, tomar consciência de que, ao falar-se de «testamento vital», que poderá prestar-se a ambiguidades, está a dar-se nome a uma manifestação antecipada de vontade sobre o que se espera que seja o modo de tratamento, em momento em que, pelas circunstâncias de doença, essa vontade não possa manifestar-se. Sem qualquer conotação, constata-se que este procedimento se integra em todo um movimento que pretende sublinhar a relevância da autonomia individual na prestação dos cuidados de saúde.
Sendo movido por uma intenção positiva inicial, pois quem poderá negar a importância de se respeitar a vontade de alguém, é bom ter-se a consciência dos riscos associados a este procedimento que agora se regulamenta.
Na verdade, sou, desde longa data, céptico e crítico em relação à relevância, justeza e eficácia destes «testamentos vitais», pois, ou são minuciosos, deixando muito claros os cuidados pretendidos e preteridos, o que torna o documento um problema para quem presta cuidados de saúde e pode abrir a caixa de Pandora para a prática de eutanásia dissimulada; ou, então, são tão vagos que são redundantes e repetitivos em relação ao que deve ser a boa prática médica.
É curioso que, sendo esta a minha posição de partida, a vejo reforçada com a leitura do diploma legal.
Na realidade, considero que pode estar a criar-se, com este documento, ou uma inutilidade (por repetir o que já se deve fazer), ou uma abertura para a eutanásia (impedindo-se de se fazer o que deve ser feito).
Sem entrar, ainda, nos detalhes da lei, proponho-me refutar a crítica dos que contestam a observação de que possa ser uma porta de abertura para a eutanásia. Na verdade, para estou convicto de que, após a aplicação desta lei, que causará muitos problemas jurídicos e judiciais [Que limites há, por exemplo, para o exercício da função de procurador de cuidados de saúde, prevista no artigo 11º? Como pode avaliar-se a boa intenção de um procurador e estar certo de que não pretende ver-se «livre» de alguém que se tornou um peso? Em que condição fica o médico que tentou salvar alguém, presumindo a sua intenção de ser recuperado, quando a directiva antecipada de vontade caducara, por exemplo, no mês anterior?], a sociedade, saturada de ouvir os que querem a todo o custo legalizar a eutanásia e vendo as complicações que resultaram da aplicação desta lei, acabará por se render e admitir o que, por convicção, não pretende. Para além disto, registo que este diploma inverte uma lógica que subjaz à prática dos cuidados de saúde: toda a legislação que regula a prestação dos cuidados de saúde presume a intenção de se ser curado e cuidado, quando se lhes recorre. Isto é tão claro que, inclusive perante a entrada, nos serviços de urgência, de alguém que fez tentativa de suicídio, os cuidadores têm o dever grave de prestar auxílio. Este dever é extensível aos demais cidadãos, que devem tudo fazer para impedir a morte de alguém, mesmo do que se pretende suicidar. Ora, o pressuposto deste diploma legal é o inverso. Como se deverá, a partir de 16 de Agosto de 2012, proceder em relação a quem, como um «pré-suicida», manifesta tão vivamente que pretende morrer? Ser-lhe indiferente? De que se necessita mais para vislumbrar que está em causa uma sociedade que se pretende humanizada e humanizadora?
Mas dizíamos, acima, que a lei vem confirmar a nossa convicção de que o «testamento vital» ou é redundante ou a preparação para a aceitação da eutanásia.
Na verdade, no ponto 2 do artigo 2º, em que se definem as disposições que podem constituir o conteúdo das directivas antecipadas da vontade, enunciam-se as cinco seguintes:
- «não ser submetido a tratamento de suporte artificial das funções vitais» – esta disposição redundará num tremendo problema jurídico para as unidades de cuidados intensivos que se deparem com a premência de tomar decisões perante alguém que entra politraumatizado. Ou o que deverão fazer os técnicos do INEM no contexto de um acidente grave? O que deve prevalecer? A vontade individual ou o dever de prestar assistência?
- «não ser submetido a tratamento fútil, inútil ou desproporcionado»… - confesso que, ao ler esta disposição fico perplexo, pois ela apenas repete o que deve ser a boa prática médica, pelo que se torna redundante e repetitiva, sendo, por isso, inútil. Causa, igualmente, perplexidade o que se diz, no final desta alínea: «não ser submetido … às medidas de suporte básico de vida e às medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte». Ora, o que se afirma, aqui, é a possibilidade de suspender a alimentação e hidratação, que são deveres básicos de qualquer ser humano em relação a outro. Não são sequer cuidados de saúde. Admiti-lo é, no nosso entender, no mínimo, causa de estranheza.
- «receber os cuidados paliativos adequados» – esta é mais uma disposição redundante, pois a possibilidade de beneficiar desses cuidados deverá tender para a universalização e não ficar circunscrita aos que manifestarem tal desejo.
- «não ser submetido a tratamentos que se encontrem em fase experimental» e «autorizar ou recusar a participação em programas de investigação científica ou ensaios clínicos» - tal como algumas das anteriores disposições, estas são redundantes, pois ninguém pode ser submetido a tratamentos em fase experimental ou participar em programas de investigação científica sem a devida autorização, circunstância que devemos aos episódios de experimentação médica ocorridos durante a segunda guerra mundial, que vieram a ser proibidos com o código de Nuremberga.
A reflexão bioética sempre teve claro que, na discussão sobre como devem agir os cuidadores de saúde, perante a morte, as suas escolhas devem situar-se num equilíbrio entre a distanásia (o retardamento indevido da morte) e a eutanásia (a sua antecipação indevida), designado como «ortotanásia», registo em que devem estar assentes as boas práticas médicas.
Neste contexto, parece-nos que, resultando de uma intenção inicial positiva, a de salvaguardar que o paciente não pode ser considerado como um objecto ou um instrumento nas mãos dos cuidadores de saúde, mas que é alguém com vontade própria que deve ser respeitada, mesmo quando não é manifesta, este documento legal pode originar mais problemas e dificuldades do que constituir fonte de soluções.
O futuro o dirá. Assim permitam que haja futuro.

Luís Silva

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal

  ‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Parceria com a revista 'Mundo Rural' Luís Manuel Pereira da Silva*   Cerca de duas décadas ...