É
frequente ouvir-se a afirmação de que o Estado Português é laico. A afirmação,
de tão frequente, conduz, seguramente, à convicção de que a Constituição o
defina, explicitamente, assim. Mas tal não corresponde à verdade. Em nenhum
momento a Constituição adota tal terminologia para se referir à relação entre o
Estado e as religiões. A este propósito, terá de se percorrer o texto da
Constituição até ao seu artigo 41º para encontrar os traços com que este
documento fundamental define a relação entre o Estado e as Igrejas. E é
interessante perceber o que ali está vertido.
Antes,
porém, de nos acercarmos desse conteúdo, importa assumir a consciência de que,
ainda que o texto constitucional definisse o Estado como laico, seria sempre
necessário esclarecer do que estaríamos a falar, pois uma tal designação
inclui, desde uma visão positiva da laicidade, que a entende à maneira
Americana (como bem recordava, no século XIX, Alexis de Tocqueville), em que a
diversidade religiosa é respeitada e bem acolhida, sempre que a sua ação se
repercute em bem comum, até à visão mais negativa, de índole jacobina, que a
entende como o silenciamento do religioso, nas suas manifestações públicas,
entendendo que o Estado deve fazer de conta que as religiões não existem.
Tal
precisão seria, porém, necessária se os constituintes tivessem entendido que o
texto optasse por uma definição lapidar. Contudo, não foi assim. E é interessante
o que se decidiu que o texto constitucional refletisse.
Vejamos
o que se diz no artigo 41º, que reproduzimos, aqui, integralmente, a partir da
versão oficial presente no site da Assembleia da República.
«Artigo
41.º
Liberdade
de consciência, de religião e de culto
1.
A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável.
2.
Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou
deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa.
3.
Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções
ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não
individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.
4.
As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são
livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.
5.
É garantida a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da
respetiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social próprios
para o prosseguimento das suas atividades.
6.
É garantido o direito à objeção de consciência, nos termos da lei.»
Destaquemos
o que é afirmado no ponto 4 do artigo: «As igrejas e outras comunidades
religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no
exercício das suas funções e do culto.»
É
curioso que o registo seja colocado no prisma da liberdade das Igrejas e não,
primeiramente, no prisma da independência do Estado em relação a elas, o que,
em nosso entender, revela que os constituintes souberam aprender com a história
europeia (hoje, a laicidade é vivida de forma equilibrada, em grande parte dos
países da Europa, sendo marginal a leitura laicista que, porém, com frequência,
procura reemergir. Não é, porém, despiciendo recordar que alguns dos países
mais frequentemente apontados como defensores da liberdade não se eximam a ter
com as igrejas uma prática de relação aberta e visível. Como não recordar a
realidade britânica ou nórdica em que existe, inclusive, uma religião oficial?)
e com a história portuguesa. Na realidade, pode-se, de forma geral e abstrata,
considerar que Portugal passou por três modelos de vivência da laicidade, no
contexto da República. Na primeira República, viveu-se uma laicidade entendida
no prisma acima descrito como «jacobino»: a religião era um elemento a
eliminar, como pretendia Afonso Costa (que, em 23 de março de 1911, segundo Gomes Araújo, ou 21 de março do mesmo ano, segundo Monsenhor João Gonçalves Gaspar, afirmou, no Grémio Lusitano da Maçonaria, que
acabaria com o Catolicismo em duas gerações, apesar de, segundo consta, ter educado os seus
filhos num colégio de jesuítas, na Suíça);
muito se perdeu de força viva da sociedade portuguesa, com essa opção e a 1ª
República muito deve a esta opção a sua curta duração e tão marcante
instabilidade. Na 2ª República, viveu-se uma laicidade que era mais formal do
que real, havendo uma mútua cumplicidade que se revelou penalizadora, quer para
o Estado, quer para a Igreja; muitas lições se retiraram desse período. Por
fim, na 3ª República, a laicidade é entendida no prisma do respeito pela
liberdade e diversidade religiosas, sem que tal signifique o silenciamento do
papel público da religião e o esquecimento do profícuo contributo recíproco.
Este tem sido o entendimento e a vivência. A esta luz encontraram-se diversas
soluções (são exemplos a concordata, celebrada em 2004, entre o Estado e a
Igreja Católica, e acordos entre o Estado Português e o Estado de Israel para a
reabilitação das judiarias), merecendo particular destaque o que ocorre no
âmbito da educação, em que as religiões podem dar o seu contributo positivo e
construtivo, que é sobejamente reconhecido, no âmbito de uma disciplina (educação
moral e religiosa), em que, por respeito para com a liberdade religiosa, a
frequência é facultativa. Respeitando, aliás, um acórdão do tribunal
constitucional de 1987, a presença da disciplina no sistema educativo expressa
o que é afirmado no artigo 41º anteriormente recordado, na medida em que é por
uma escolha expressa dos pais e encarregados de educação que a disciplina é
proporcionada aos alunos. A liberdade religiosa é assegurada (a ninguém se
impõe) e a separação em relação ao Estado também está salvaguardada, na medida
em que, se é certo que ao Ministério da Educação cabe homologar os programas
das disciplinas apresentados, contudo, é reconhecida às respetivas autoridades religiosas
a competência para a sua elaboração. Do mesmo modo, em respeito para com o
princípio da subsidiariedade, o Estado socorre-se do serviço das comunidades
religiosas, numa parceria respeitadora das respetivas identidades, para prestar
um serviço que é público. É importante, aliás, que se entenda que o serviço é
prestado às famílias. Não é um serviço às religiões, contrariamente ao que
alguma discussão pretende afirmar. Aliás, o conhecimento do programa desta
disciplina, na sua configuração católica, permitirá constatar que, de facto, em
nada se confunde com formação catequética ou com qualquer tipo de proselitismo.
É um serviço no âmbito da formação ética, moral e de cultura religiosa, no
quadro de uma matriz com que os pais e encarregados de educação se reconhecem.
Pretender
ver nesta parceria uma qualquer quebra da adequada separação entre Estado e
Igrejas seria o mesmo que, por se ver um qualquer partido presente numa
manifestação de um sindicato, se achasse que estaria a ser infringido o artigo
55º da constituição que afirma que «as associações sindicais são independentes
do patronato, do Estado, das confissões religiosas, dos partidos e outras
associações políticas, devendo a lei estabelecer as garantias adequadas dessa
independência, fundamento da unidade das classes trabalhadoras.»
Valeria
a pena, aliás, quando tantas interrogações se pretende colocar sobre a suposta
quebra de separação entre Estado e Igrejas ao assegurar-se uma disciplina que é
clara, transparente, e em que todas as condições de lecionação são mais do que
escrutinadas, manter essa finura de análise para tentar perceber se, pelo país
fora, sob a capa da neutralidade e da autonomia do pensamento não se estará muitas
vezes a veicular ideologias que os pais não subscrevem e não pretendem, ao
arrepio, aliás, do que se define no artigo 43º, que afirma que «o Estado não
pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas,
estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.»
Sublinhe-se
que, na medida em que o acórdão de 1987 do Tribunal Constitucional definiu as
condições para a disponibilização da disciplina de Educação Moral e Religiosa,
ficou, em definitivo, afastada qualquer possibilidade de recair sobre esta
disciplina a suspeita de que pudesse estar a infringir este mesmo artigo 43º,
na medida em que a sua frequência é assegurada apenas para os que a escolhem de forma explícita.
Hoje,
aliás, a presença de uma disciplina que se designa como Educação Moral e
Religiosa, podendo ser (de acordo com a escolha dos pais e encarregados de
educação) de matriz Católica (em respeito para com o celebrado no acordo entre Estados que é a Concordata), Evangélica, Judaica, etc., é garante de que, não
só estamos num contexto de separação (assegurada pela escolha explícita), mas
também de diversidade, o que não pode senão enriquecer a realidade cultural e
educativa portuguesa. Os preconizadores de que a sua existência possa infringir
o princípio de laicidade (que nunca é mencionado, de forma explícita, na
Constituição) não estão a ver a questão no seu ângulo correto e pretendem um
regresso a erros de onde já vimos e para onde não queremos voltar. A existência
de uma disciplina como Educação Moral e Religiosa é uma oportunidade. E as
oportunidades não se rejeitam: aproveitam-se!
(PS: Já depois de redigido este artigo, encontrei, no livro «Um erro de Afonso Costa», da autoria de Amadeu Gomes de Araújo, uma declaração de Mário Soares, que é oportuno reproduzir: «A I República, em parte, caiu pelo conflito entre a República e a Igreja Católica. Depois do 25 de Abril, quando regressei do meu exílio em França, trazia uma ideia na cabeça: não repetir a luta entre o Estado Laico e a Igreja Católica. E assim actuei sempre como a Igreja Portuguesa sabe bem - e o Vaticano - desde que tive responsabilidades no Portugal de Abril, apesar de não ser religioso, como se sabe.»
Importa que esta sensatez não seja esquecida, sob pena de dar lugar à insensatez de repetir erros cometidos!)