A discussão sobre Cidadania e desenvolvimento tem
vindo a revelar, por um lado, pouca cidadania e, por outro, pouco
desenvolvimento do espírito crítico.
Senão, vejamos…
Perante a dificuldade (ou o desejo de não o fazer) em analisar, com
lógica e respeito, o que se discutia, no manifesto pelas ‘liberdades de
educação’, o que se tem visto fazer é investir contra o mensageiro.
Para tal, não têm faltado rótulos que denunciam que
estamos perante um enorme desassossego que revela pouca paz e pouca
disponibilidade para discutir o que está, de facto, em causa.
Recuperemos o que está, realmente, em questão.
O que o manifesto solicita é, apenas, o seguinte: ‘respeitem
a objeção de consciência das mães e pais quanto à frequência da disciplina de
Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento’.
E, para perceber se este pedido é legítimo, basta
observar que este direito é protegido, quer pela Constituição da República
Portuguesa (artigos 6º, 41º e 43º), quer pela lei de bases do sistemas
educativo (uma lei de valor reforçado) que, no seu artigo 7º, alínea n) afirma,
de forma muito clara que um dos objetivos do ensino básico é ‘n) Proporcionar, em liberdade de consciência, a aquisição
de noções de educação cívica e moral’ (O itálico é nosso).
Onde está a dúvida?
A discussão saiu deste âmbito restrito e tem sido
contaminada (é a palavra certa!) com preconceitos (Extremistas! Radicais!,
etc.) esquecendo-se que o que se está a afirmar decorre da lei fundamental, da
Constituição da República Portuguesa.
Outros, mais recentemente, vêm investir contra os
subscritores católicos, argumentando ausência de fundamentos teológicos para
tal posição.
Como assim?
A Doutrina Social da Igreja é a responsável pela identificação
de um princípio que, hoje, foi assumido quer pela nossa Constituição da
República, quer na própria organização das estruturas Europeias. O dito
princípio dá pelo nome de ‘princípio da subsidiariedade’ e teve a sua primeira
grande formulação no pensamento de PIO XI, na encíclica Quadragesimo Anno. O referido princípio diz, de forma simples, que,
se um problema pode ser, justamente, resolvido por uma instância mais próxima
das pessoas, não deve ser uma instância superior a fazê-lo. Resumimos o que é
dito do seguinte modo: ‘assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles
podem efetuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à coletividade,
do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades
menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e
perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é
coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los.’ (Pio XI, Quadragesimo Anno (1931), capítulo V.)
Este princípio acautela, precisamente, o dever de o
Estado respeitar os corpos sociais intermédios, destacando-se o dever de
respeitar a família nas suas missões específicas e, entre elas, a de educar. À
luz deste princípio, não é o Estado que faz um favor ao reconhecer às famílias
o seu direito e dever de educarem os seus filhos. Antes, é a sociedade e, nela,
a família que solicita ao Estado ajuda para suprir aquilo em que ela se sente
menos capaz. É por isso que se vale do saber que o Estado possui, através dos
seus agentes, para formar cientificamente os seus filhos, pois, de outro modo,
não o conseguiria. Mas, em matéria de educação cívica e moral, essa é uma
reserva sua.
Mas, poderiam alguns dizer, porquê tanto alarido em
torno de uma disciplina que é tão boa como ‘cidadania e desenvolvimento’,
segundo dizem?
Importa, aqui, seguir duas linhas de análise.
Em primeiro lugar, atendendo à questão de
princípio.
Seja boa ou não o seja, o dever de respeito pela
liberdade de consciência dos pais na escolha do seu modelo educativo, em
matéria de educação cívica e moral, tem de ser salvaguardado e respeitado.
Assim em relação a Cidadania e Desenvolvimento, assim em relação a qualquer
outra formação moral. (Assim acontece, por exemplo, o que, em nosso
entendimento, faz jurisprudência para a análise deste caso, no que se refere a
Educação Moral e Religiosa que é disciplina que, sendo de oferta obrigatória é
de frequência facultativa, precisamente em respeito para com este mesmo
princípio. Basta ver o que se afirma no acórdão 423/87 do Tribunal
Constitucional).
Em segundo lugar, observando a materialidade da
disciplina de Cidadania e Desenvolvimento.
É no âmbito desta segunda linha que se observa que
a discussão está deslocada do ‘assunto’.
Cidadania e desenvolvimento não é só uma bondosa
disciplina em que se desenvolvem projetos solidários, atividades de promoção da
dignidade da pessoa humana, de respeito pelo outro.
A disciplina tem muitos vetores altamente
problemáticos, seja em matéria de educação da sexualidade (sabemos o que se vem
defendendo a pretexto da saúde reprodutiva; a este pretexto, diga-se que é o
tribunal europeu dos direitos humanos a afirmar que não pode considerar-se o
aborto um direito humano! Veja-se acórdão de 16 de dezembro de 2010), da
igualdade dos géneros (veremos de seguida), de educação ambiental (que matriz
se defende: uma ecologia em que as espécies têm todas a mesma dignidade?), etc..
Como não há educação neutra, e não é explicitada a matriz ‘ideológica’ que as
suporta, cidadania e desenvolvimento ou é um mero areópago de discussões
(bastava criar um programa de televisão!) ou é um lugar de inculcação
positivista de leis escritas (faz isto; evita aquilo, pois é o que está escrito
na lei. Será pouca cidadania ativa, mas simples criação de autómatos.) ou,
então, é espaço de transmissão de uma matriz de valores cujos fundamentos deveriam
ser explicitados. Não o sendo, fica vulnerável à manipulação e ao trabalho
ideológico.
Soma-se a este pressuposto que uma das áreas
temáticas (domínios) de caráter obrigatório em todos os anos e ciclos aparece
sob a capa de igualdade de género (a luta abnegada pela igualdade de
oportunidades para homens e mulheres) sendo, porém, um alçapão para que se
desenvolva uma nova antropologia de matriz platónica. Veremos isso já a seguir.
Muitos dirão. Mas eu sou platónico…
Muito bem. Subscreva a disciplina, mas permita que
quem não o for se demarque dela.
Já
em 2018 (no artigo ‘O adeus à
racionalidade na Educação?’) alertávamos para esta marca
ideológica da disciplina. Veja-se, a título de exemplo, o que é referido nos
guiões de educação género e cidadania, para o pré-escolar: «O termo sexo é
usado para distinguir os indivíduos com base na sua pertença a uma das
categorias biológicas: sexo feminino e sexo masculino. O termo género é usado
para descrever inferências e significações atribuídas aos indivíduos a partir
do conhecimento da sua categoria sexual de pertença. Trata-se, neste caso, da
construção de categorias sociais decorrentes das diferenças anatómicas e
fisiológicas.» (Guiões de Educação Género e Cidadania – pré-escolar – in http://www.dge.mec.pt)
[O destaque é nosso.]
O que se irá, por isso, problematizar, na
disciplina, não é a questão da indiscutível igualdade entre homem e mulher, mas
sim que o género é uma mera construção mental, devendo considerar-se que todos
os géneros são equiparáveis e fruto de uma mera construção individual. E mais.
Pretende-se, sob a capa do respeito pela diversidade sexual, equiparar o que
não é equiparável. Recordemos, a título ilustrativo, que não somos nós que
consideramos discutível que se equiparem uniões heterossexuais a outras uniões.
O Tribunal europeu dos direitos humanos produziu acórdão, em 9 de setembro de
2016 (pode ver-se aqui: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-163436),
onde se afirma que a união homossexual não tem de ser equiparável, em termos de
direitos, à união heterossexual, pelo que continua a ser legítimo que os
Estados não os equiparem e não considerem ‘casamento’ a união homossexual. Tal
demonstra quão discutível continua a ser a matéria. O respeito que é devido a
toda a pessoa e à sua fragilidade não tem de implicar validar todo o
comportamento e enquadrar as escolhas no mesmo registo e no mesmo
enquadramento. Se cidadania e desenvolvimento afirmasse o dever de se respeitar
toda a pessoa, estaríamos no âmbito dos direitos humanos e isso seria
indiscutível. A pretensão de validação de toda a escolha e comportamento sem
margem para a sua problematização e leitura ético-jurídica é algo bem distinto.
E essa distinção não é feita, antes branqueada.
Dirão alguns que se identificam com este registo e
com o que aqui denunciámos como discutível.
Sendo altamente problematizável e merecedor de
análise detida, a sua posição deverá ser compaginável com a possibilidade de
outros não se reverem nela, dado que não estamos diante de matérias de foro
científico, mas do foro da ‘educação cívica e moral’ e, mais ainda, do âmbito
das conceções ideológicas, pelo que tal papel educativo está vedado ao Estado,
à luz do que é referido no artigo 43º da Constituição: «O Estado não pode programar
a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas,
políticas, ideológicas ou religiosas».
É isto que está em causa.
Nada há de radicalismo, de extremismo, neste pedido
de que a disciplina, dada a sua natureza, seja de frequência facultativa… Há um
pedido, que se espera que seja atendido, de respeito pela liberdade de escolha
na educação. De outro modo, as leis e a Constituição não passarão de letra
morta, em que os cidadãos não poderão confiar.
É por isto, talvez, que nos devemos preocupar com
os extremismos: os dos que nos querem sonegar a liberdade, em nome de uma
hipotética, bondosa e neutra educação cívica.
Quem poderia rejeitar uma educação cívica que fosse
a mera afirmação do dever de respeito pelo outro, ainda que analisando,
criticamente, os seus comportamentos (Sim, é um dever acolher a pessoa, ainda
que possamos analisar, criticamente, os comportamentos. Tudo é suscetível de
leitura moral. Importa que sejamos honestos e digamos porquê. Tudo é igualmente
válido? Todos os comportamentos são igualmente aceitáveis? Aceitar e respeitar
a pessoa não significa que todos os comportamentos devam ser apresentados, em
contexto educativo, como igualmente válidos. De outro modo, o que será
‘educar’? Legitimar tudo o que se quer?) não impondo uma certa matriz, uma
certa antropologia, uma certa visão sobre a sexualidade e os géneros?
Por este andar, ainda assistiremos ao momento em
que será a Igreja a salvar o sexo. …Quando os géneros forem tantos (já são
reconhecidos mais de 90!) que já nada sobre da sexualidade humana.
Nessa hora, quem ainda será livre para dizer o que
pensa?