quarta-feira, dezembro 23, 2020

Natal: ‘Amor’ ou ‘necessidade’?


O mundo, a realidade existente, nasce de uma longa, longa história de amor… do Amor.

Não considerar esta convicção como fundamento de tudo entrega toda a realidade à determinação de anónimas forças que tornam inexplicável o surgimento da consciência de si e da capacidade de decidir livremente. Do nada nada vem, sendo que o que existe só pode nascer no quadro da possibilidade de vir a ser, sem ter de o ser.

E só o amor possibilita a liberdade. Só o amor possibilita que o que é possa realizar-se ou, de todo, possa decidir-se a não existir. Mas é nesse mesmo lugar que do nada o Amor faz nascer nova vida e vida nova.

Quando, em 1970, o bioquímico francês Jacques Monod pretendeu resumir na disjunção ‘acaso ou necessidade’ o que estava em causa, quando nos dispomos a interpretar o mundo, o seu olhar fez-nos tomar como insofismável esta conclusão. Mas a redução não está na disjuntiva que ele nos ofereceu. Esta disjuntiva ainda não atingiu o cerne do olhar alternativo sobre a realidade.

No Natal, no mistério do Natal, percebemos que a alternativa não está entre os anónimos, e «a-subjetivos», ‘acaso’ ou ‘necessidade’, forças impessoais e sem vontade ou ‘rosto’. Como poderia possibilitar-se o surgimento da liberdade se a natureza do que é não passasse de um dos dois fundamentos aqui apresentados em alternativa?

Mas essa não é, de facto, a raiz do que existe. A alternativa não está aí.

O mal e o bem só se podem iluminar se o Amor for o fundamento do que é. De outro modo, nem o bem existe [tudo não passa de um ‘ter de ser casual ou predeterminado] nem o mal, como possibilidade de não realização pode ser chamado assim. Não passará de um outro rosto do acontecer impessoal e anónimo.

A tentação de, por antecipação e anacronicamente, ‘regressar’ à disjuntiva de Monod é profunda e emergiu, com frequência, na própria tradição cristã. A linha que colocou no centro da Encarnação de Deus a função de reparar o mal que a criatura provocara (designada como Hamartiocentrismo), linha que encontrou em S. Anselmo (ca. 1033-1109) o seu apogeu, padeceu deste mal. A encarnação (o Natal) parecia ter acontecido por ‘necessidade’ (exigência!) de reparação, como se o centro fosse cedido ao mal, ao pecado. Tentação somada à primeira tentação.

Outro modo nos interpela o Natal que adotemos. Toda a realidade, nascida do Amor e por isso com a têmpera do próprio amor (livre, aberta ao outro, em dinamismo de autorrealização frangível e em estreita dependência do outro…), é, desde o seu primeiro momento, sinal e marcada pela anterioridade do amor. Deus salva ao criar; Deus cria ao salvar. No criar e no salvar, a anterioridade está no Amor, não no acaso, nem na necessidade. Total anterioridade ao amor. Do que falava, aliás, Paulo ao dizer que ‘onde abundou o pecado superabundou a graça’ (Rom 5,20)? Graça é, aqui, o outro nome para um Amor que se define como pura gratuidade.

Não será o acaso o rosto, a máscara, o disfarce do Amor gratuito que surpreende e tem a imprevisibilidade própria da liberdade?

No Menino do Presépio resume-se toda a história do mundo: na sua fragilidade está descrita a natureza ‘agápica’ (de ‘Amor’) da realidade.

domingo, outubro 25, 2020

Quando a compaixão não é mais do que um pretexto

Quando era adolescente, eram frequentes os filmes de cowboys e índios. E recordo-me de, nestes filmes, com alguma frequência, após longas perseguições, preenchidas de tiros e balas que pareciam cravar-se nas paredes da minha sala, assistir a cenas em que, algumas personagens, após serem cravejadas de balas e a esvaírem-se em sangue, quando apanhadas, pediam que lhes fosse dado o ‘golpe de misericórdia’. Eu gostava dos filmes de índios e cowboys, mas sempre me gerou perplexidade que o agressor pudesse ver o seu derradeiro ato de crueldade limpo por uma designação que lhe conferia o estatuto de ‘misericordioso’. Sempre achei isto injusto…

Veio-me à memória este acumular de cenas de índios e cowboys, nestes tempos em que se pretende reconhecer ao Estado o estatuto de misericordioso quando, após ‘cravejar’ de balas de solidão, abandono e tristeza os mais frágeis de entre nós (e nós mesmos, quando mais frágeis!), restar à vítima da cavalgada do impiedoso pedir-lhe que lhe dê o ‘golpe de misericórdia’.

É disso que se está a falar quando se pretende legalizar a eutanásia. Poder dar o golpe de misericórdia e pretender-se ficar com a consciência de se ter feito um ato nobre quando se foi, afinal, responsável por tudo o que a isso conduziu.

Evoco, ainda, uma outra cena que também recolho do cinema. Neste caso, uma cena com sinal de sentido contrário.

Passa-se no filme ‘favores em cadeia’, um filme belíssimo, onde, contrariando os diretórios do cinema americano, o protagonista morre, numa cena que confere um caráter quase redentor a esta morte.

A cena que pretendo trazer para aqui ocorre com uma das personagens a quem Trevor (o protagonista do filme) fizera um favor, obrigando-o, por isso, a fazer um favor a mais três pessoas, gerando, assim, uma cadeia de favores em que a gratidão por se ser favorecido passa por realizar a outros uma tríada de favores.

A referida personagem favorecida por Trevor é um toxicodependente que encontra uma mulher que está prestes a atirar-se de uma ponte. O toxicodependente aborda-a, tenta mostrar-lhe que estará enganada quanto aos motivos para se suicidar e acaba por pedir-lhe que desista, fazendo-lhe, assim, um favor a ele próprio. Salvar a vida daquela mulher era um favor que fazia a si mesmo…

A cena é de uma densidade incrível e contraria todo o individualismo tipicamente americano: a salvação daquela mulher é o maior favor que ela pode fazer… aos outros.

A eutanásia está nos antípodas disto. A eutanásia abandona cada um na solidão da sua vida e convence-o de que a sua morte só a si diz respeito, contrariando tudo o que somos e toda a lógica de se viver em sociedade e num Estado de direito. Apetece dizer que, felizmente, os defensores da legalização da eutanásia não são suficientemente coerentes e lógicos para levar o seu raciocínio até ao fim: perante tamanho individualismo, nada sobreviveria. Se podemos dispor da vida, então, porque não haveremos de dispor de todo o dinheiro que recebemos com o suor do nosso trabalho recusando pagar impostos? Porque não haveremos de fazer acordos uns com os outros sem nos importarmos com o que abstratos legisladores possam pensar sobre o que fazemos? Etc., etc….

Recuperemos a afirmação de que ‘se podemos dispor da vida, então…’ De facto, não podemos dispor da vida. Nem da nossa!

Não o dizemos com motivações religiosas (podemos tê-las e temo-las, de facto, mas não precisamos de as invocar para se perceber esta indisponibilidade da vida); basta-nos constatar o que afirma a declaração universal dos direitos humanos que afirma: ‘Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.’

Repare-se que a Declaração faz depender a liberdade, a justiça e a paz do reconhecimento de que os direitos são «inalienáveis» e não o contrário. Não é a liberdade, a justiça e a paz que os tornam inalienáveis. E, mais! Por serem inalienáveis, os direitos humanos constituem-se como um dever para os que deles beneficiam. Eu tenho o dever de cuidar do direito à vida de que sou detentor. Sou detentor desse, não porque o estabeleço, mas sim enquanto participante da comum dignidade humana. Quando atento contra a dignidade da vida humana que há em mim, atento contra toda a dignidade. Como bem recorda o Papa Francisco, na encíclica ‘Fratelli Tutti’, «qualquer um que mate uma pessoa é como se tivesse matado toda a humanidade’ (FT 285)

A reflexão que desenvolvemos, até este passo, permite-nos constatar que a compaixão deve ser concretizada num respeito estrito pela vida. Não contra ela. Uma compaixão que abandona a verdade da vida torna-se um sentimentalismo, como referia Bento XVI, na encíclica ‘Caritas in Veritate’ (3). Esta afirmação não é uma mera proposição abstrata e teórica.

É pelo perigo do sentimentalismo que, por exemplo, se deve proibir a criação de condições para o nepotismo. Este é, de facto, um belo exemplo de sentimentalismo: em nome da compaixão de alguém pelos seus, pela sua família, desrespeita o dever de cuidar do bem comum e exerce as suas funções em benefício dos seus.

Com estes pressupostos, tenhamos em conta decisão do Parlamento, tomada no dia 23 de outubro de 2020. Este não autorizou a realização de um referendo, contrariando a vontade expressa por mais de 95 mil subscritores que, em cerca de um mês, reuniram as suas assinaturas, solicitando à casa da democracia que consultasse o povo numa matéria que, dada a sua importância, deveria ser decidida após a sua auscultação. Os argumentos têm sido repetidamente referidos, pelo que nos bastará aqui recordar que, dos 193 países reconhecidos pela ONU, apenas 6 (apenas 6: Holanda, Luxemburgo, Bélgica, Austrália [Só o Estado de Vitória], Colômbia e Uruguai) legalizaram a eutanásia e outros quatro países autorizam (ou têm Estados federados que o permitem: para além dos atrás enunciados, também a Suíça, Suécia, Alemanha e 5 Estados dos EUA) a prática do suicídio assistido, perfazendo 10 países que dão alguma cobertura legal a estas práticas. Acrescente-se, ainda, que a Holanda, a Bélgica e a Colômbia legalizaram a prática da eutanásia sobre crianças. Estes números deveriam fazer-nos pensar. Algo de grave deve estar em causa para apenas 10 países terem legalizado tais práticas.

A compaixão tem sido um dos argumentos mais vezes invocado para a sua legalização.

Repare-se, porém, no que, verdadeiramente, está em causa…

Recuperemos o que referíamos, no início desta reflexão.

O Estado assume um papel de compassivo, não se assegurando de que tenha esgotado todas as possibilidades para que se evite o pedido de morte.

Mais, ainda…

O compassivo legislador compadece-se de dores ainda não havidas para cidadãos ainda não situados nas dores que o legislador supõe, e já legitima que, em todo este abstrato circunstancialismo de dor, possa ser lícito eliminar quem pede a morte. Não há uma compaixão real: há um enquadramento de uma compaixão específica, excluindo-se desta compaixão todos os que nela não se enquadrarem. Mas, não deveria ser a compaixão universal? Se é um ato compassivo, deveria sê-lo sempre. Ou deveremos tomar esta inicial definição de circunstâncias muito excecionais como um mero pretexto? Um pretexto para deslocar o ónus de proteção, transferindo-o do dever insofismável de proteger a vida humana (motivo objetivo) para um outro âmbito (de ordem subjetiva), o que, a acontecer, permitirá posteriores alargamentos? A resposta parece supor-se na pergunta.

Tenhamos em conta, porém, que há, aqui, uma contradição intrínseca (a compaixão não é real; é, apenas, pretexto. Se fosse real, seria compaixão para com a pessoa que sofre, nunca desistindo dela!) que faz com que, na nossa perspetiva, a rampa deslizante seja um facto e uma condição intrínseca a esta mudança, estando em curso antes mesmo de a lei começar a ser praticada. Efetivamente, há em toda esta argumentação uma contradição insanável: é que não se é compassivo dando a morte. É-se compassivo diminuindo o sofrimento de quem sofre, estando e permanecendo com o sofredor, ‘sofrendo com ele’ (cum+passio) e vencendo, assim e com ele, a morte. De outro modo, a compaixão é o pretexto nobre para apagar da nossa vista, com o sofrimento, o próprio sofredor. E, sim, a compaixão não será, então, mais do que um pretexto, emoldurado sob a capa de nobreza, para nos desfazermos da imagem da nossa dor e do nosso limite, que, a todo custo, queremos afastar de nós. Com a morte vem o sossego do incómodo da vida que é, sempre, surpreendente.

As duas cenas evocadas, no início deste artigo, evidenciam o que está em causa: perante o sofrimento, damos o «golpe de misericórdia» ou reconhecemos, pelo contrário, que o ato de salvar da morte alguém que pede para morrer é um favor que fazemos à nossa comum condição humana?

Toda a vida em sociedade está alicerçada na convicção profunda da solidariedade na dignidade: a eutanásia abala essa convicção e desvirtua a compaixão e a misericórdia.

terça-feira, setembro 22, 2020

Cidadania e desenvolvimento | Conseguir discutir sem falar do assunto!

A discussão sobre Cidadania e desenvolvimento tem vindo a revelar, por um lado, pouca cidadania e, por outro, pouco desenvolvimento do espírito crítico.

Senão, vejamos…

Perante a dificuldade (ou o desejo de não o fazer) em analisar, com lógica e respeito, o que se discutia, no manifesto pelas ‘liberdades de educação’, o que se tem visto fazer é investir contra o mensageiro.

Para tal, não têm faltado rótulos que denunciam que estamos perante um enorme desassossego que revela pouca paz e pouca disponibilidade para discutir o que está, de facto, em causa.

Recuperemos o que está, realmente, em questão.

O que o manifesto solicita é, apenas, o seguinte: ‘respeitem a objeção de consciência das mães e pais quanto à frequência da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento’.

E, para perceber se este pedido é legítimo, basta observar que este direito é protegido, quer pela Constituição da República Portuguesa (artigos 6º, 41º e 43º), quer pela lei de bases do sistemas educativo (uma lei de valor reforçado) que, no seu artigo 7º, alínea n) afirma, de forma muito clara que um dos objetivos do ensino básico é ‘n) Proporcionar, em liberdade de consciência, a aquisição de noções de educação cívica e moral’ (O itálico é nosso).

Onde está a dúvida?

A discussão saiu deste âmbito restrito e tem sido contaminada (é a palavra certa!) com preconceitos (Extremistas! Radicais!, etc.) esquecendo-se que o que se está a afirmar decorre da lei fundamental, da Constituição da República Portuguesa.

Outros, mais recentemente, vêm investir contra os subscritores católicos, argumentando ausência de fundamentos teológicos para tal posição.

Como assim?

A Doutrina Social da Igreja é a responsável pela identificação de um princípio que, hoje, foi assumido quer pela nossa Constituição da República, quer na própria organização das estruturas Europeias. O dito princípio dá pelo nome de ‘princípio da subsidiariedade’ e teve a sua primeira grande formulação no pensamento de PIO XI, na encíclica Quadragesimo Anno. O referido princípio diz, de forma simples, que, se um problema pode ser, justamente, resolvido por uma instância mais próxima das pessoas, não deve ser uma instância superior a fazê-lo. Resumimos o que é dito do seguinte modo: ‘assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los.’ (Pio XI, Quadragesimo Anno (1931), capítulo V.)

Este princípio acautela, precisamente, o dever de o Estado respeitar os corpos sociais intermédios, destacando-se o dever de respeitar a família nas suas missões específicas e, entre elas, a de educar. À luz deste princípio, não é o Estado que faz um favor ao reconhecer às famílias o seu direito e dever de educarem os seus filhos. Antes, é a sociedade e, nela, a família que solicita ao Estado ajuda para suprir aquilo em que ela se sente menos capaz. É por isso que se vale do saber que o Estado possui, através dos seus agentes, para formar cientificamente os seus filhos, pois, de outro modo, não o conseguiria. Mas, em matéria de educação cívica e moral, essa é uma reserva sua.

Mas, poderiam alguns dizer, porquê tanto alarido em torno de uma disciplina que é tão boa como ‘cidadania e desenvolvimento’, segundo dizem?

Importa, aqui, seguir duas linhas de análise.

Em primeiro lugar, atendendo à questão de princípio.

Seja boa ou não o seja, o dever de respeito pela liberdade de consciência dos pais na escolha do seu modelo educativo, em matéria de educação cívica e moral, tem de ser salvaguardado e respeitado. Assim em relação a Cidadania e Desenvolvimento, assim em relação a qualquer outra formação moral. (Assim acontece, por exemplo, o que, em nosso entendimento, faz jurisprudência para a análise deste caso, no que se refere a Educação Moral e Religiosa que é disciplina que, sendo de oferta obrigatória é de frequência facultativa, precisamente em respeito para com este mesmo princípio. Basta ver o que se afirma no acórdão 423/87 do Tribunal Constitucional).

Em segundo lugar, observando a materialidade da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento.

É no âmbito desta segunda linha que se observa que a discussão está deslocada do ‘assunto’.

Cidadania e desenvolvimento não é só uma bondosa disciplina em que se desenvolvem projetos solidários, atividades de promoção da dignidade da pessoa humana, de respeito pelo outro.

A disciplina tem muitos vetores altamente problemáticos, seja em matéria de educação da sexualidade (sabemos o que se vem defendendo a pretexto da saúde reprodutiva; a este pretexto, diga-se que é o tribunal europeu dos direitos humanos a afirmar que não pode considerar-se o aborto um direito humano! Veja-se acórdão de 16 de dezembro de 2010), da igualdade dos géneros (veremos de seguida), de educação ambiental (que matriz se defende: uma ecologia em que as espécies têm todas a mesma dignidade?), etc.. Como não há educação neutra, e não é explicitada a matriz ‘ideológica’ que as suporta, cidadania e desenvolvimento ou é um mero areópago de discussões (bastava criar um programa de televisão!) ou é um lugar de inculcação positivista de leis escritas (faz isto; evita aquilo, pois é o que está escrito na lei. Será pouca cidadania ativa, mas simples criação de autómatos.) ou, então, é espaço de transmissão de uma matriz de valores cujos fundamentos deveriam ser explicitados. Não o sendo, fica vulnerável à manipulação e ao trabalho ideológico.

Soma-se a este pressuposto que uma das áreas temáticas (domínios) de caráter obrigatório em todos os anos e ciclos aparece sob a capa de igualdade de género (a luta abnegada pela igualdade de oportunidades para homens e mulheres) sendo, porém, um alçapão para que se desenvolva uma nova antropologia de matriz platónica. Veremos isso já a seguir.

Muitos dirão. Mas eu sou platónico…

Muito bem. Subscreva a disciplina, mas permita que quem não o for se demarque dela.

Já em 2018 (no artigo ‘O adeus à racionalidade na Educação?) alertávamos para esta marca ideológica da disciplina. Veja-se, a título de exemplo, o que é referido nos guiões de educação género e cidadania, para o pré-escolar: «O termo sexo é usado para distinguir os indivíduos com base na sua pertença a uma das categorias biológicas: sexo feminino e sexo masculino. O termo género é usado para descrever inferências e significações atribuídas aos indivíduos a partir do conhecimento da sua categoria sexual de pertença. Trata-se, neste caso, da construção de categorias sociais decorrentes das diferenças anatómicas e fisiológicas.» (Guiões de Educação Género e Cidadania – pré-escolar – in http://www.dge.mec.pt) [O destaque é nosso.]

O que se irá, por isso, problematizar, na disciplina, não é a questão da indiscutível igualdade entre homem e mulher, mas sim que o género é uma mera construção mental, devendo considerar-se que todos os géneros são equiparáveis e fruto de uma mera construção individual. E mais. Pretende-se, sob a capa do respeito pela diversidade sexual, equiparar o que não é equiparável. Recordemos, a título ilustrativo, que não somos nós que consideramos discutível que se equiparem uniões heterossexuais a outras uniões. O Tribunal europeu dos direitos humanos produziu acórdão, em 9 de setembro de 2016 (pode ver-se aqui: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-163436), onde se afirma que a união homossexual não tem de ser equiparável, em termos de direitos, à união heterossexual, pelo que continua a ser legítimo que os Estados não os equiparem e não considerem ‘casamento’ a união homossexual. Tal demonstra quão discutível continua a ser a matéria. O respeito que é devido a toda a pessoa e à sua fragilidade não tem de implicar validar todo o comportamento e enquadrar as escolhas no mesmo registo e no mesmo enquadramento. Se cidadania e desenvolvimento afirmasse o dever de se respeitar toda a pessoa, estaríamos no âmbito dos direitos humanos e isso seria indiscutível. A pretensão de validação de toda a escolha e comportamento sem margem para a sua problematização e leitura ético-jurídica é algo bem distinto. E essa distinção não é feita, antes branqueada.

Dirão alguns que se identificam com este registo e com o que aqui denunciámos como discutível.

Sendo altamente problematizável e merecedor de análise detida, a sua posição deverá ser compaginável com a possibilidade de outros não se reverem nela, dado que não estamos diante de matérias de foro científico, mas do foro da ‘educação cívica e moral’ e, mais ainda, do âmbito das conceções ideológicas, pelo que tal papel educativo está vedado ao Estado, à luz do que é referido no artigo 43º da Constituição: «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas».

É isto que está em causa.

Nada há de radicalismo, de extremismo, neste pedido de que a disciplina, dada a sua natureza, seja de frequência facultativa… Há um pedido, que se espera que seja atendido, de respeito pela liberdade de escolha na educação. De outro modo, as leis e a Constituição não passarão de letra morta, em que os cidadãos não poderão confiar.

É por isto, talvez, que nos devemos preocupar com os extremismos: os dos que nos querem sonegar a liberdade, em nome de uma hipotética, bondosa e neutra educação cívica.

Quem poderia rejeitar uma educação cívica que fosse a mera afirmação do dever de respeito pelo outro, ainda que analisando, criticamente, os seus comportamentos (Sim, é um dever acolher a pessoa, ainda que possamos analisar, criticamente, os comportamentos. Tudo é suscetível de leitura moral. Importa que sejamos honestos e digamos porquê. Tudo é igualmente válido? Todos os comportamentos são igualmente aceitáveis? Aceitar e respeitar a pessoa não significa que todos os comportamentos devam ser apresentados, em contexto educativo, como igualmente válidos. De outro modo, o que será ‘educar’? Legitimar tudo o que se quer?) não impondo uma certa matriz, uma certa antropologia, uma certa visão sobre a sexualidade e os géneros?

Por este andar, ainda assistiremos ao momento em que será a Igreja a salvar o sexo. …Quando os géneros forem tantos (já são reconhecidos mais de 90!) que já nada sobre da sexualidade humana.

Nessa hora, quem ainda será livre para dizer o que pensa?

sábado, agosto 22, 2020

Manual de fraturação da sociedade | Novos cenários, o mesmo guião…

A emergência dos movimentos populistas (os que deixam de seguir valores superiores para se ‘submeterem’ à vontade do povo) deve deixar-nos a todos em estado de alerta. Não pela sua novidade, mas porque sempre estiveram entre nós.

Na verdade, uma análise mais fina do que está a acontecer poderá mostrar-nos a verdade da afirmação anterior. Para tal análise, socorramo-nos de um recurso que nos faculta a filosofia. Esta não se basta em observar o que se diz (análise material); procura saber como se chegou ao que se diz e que vias se percorrem para dizer o que se diz (análise formal).

À luz desta metodologia, podemos achar que o que nos dizem é novo, mas a análise formal permitirá levar-nos a concluir que já outros fizeram o mesmo que se está a fazer.

De que falamos?

Os ‘novos’ movimentos populistas alimentam-se da mesma estratégia seguida pelos que se dizem no lado oposto do espectro político e ideológico.

O método é o de sempre: insensibilizar para ‘naturalizar’ (tornar natural), ridicularizando os que assumem o que deveria, de facto, ser ‘natural’ e válido, insistindo, até à exaustão, na necessidade de mudar, como se houvesse um problema a urgir resposta.

Tomarmos consciência disto deve aguçar-nos o olhar e levar-nos a dizer que esse é um caminho que não queremos continuar a percorrer.

Também ‘outrora’ nos asseguraram que jamais Portugal haveria de aceitar que fosse legítimo uma mãe rejeitar o seu filho. (Mas Portugal veio a legalizar o aborto e, hoje, os números deveriam envergonhar-nos.) Também outrora nos parecia ser impossível que, nas decisões respeitantes à criança, não se tivesse como prioritário o seu ‘superior interesse’ e que, à luz dessa certeza, jamais a privaríamos do seu legítimo direito a ter pai e mãe, como referência prioritária nas decisões. (Mas Portugal e o mundo deixaram que a criança se tornasse um ‘bem’ de que dispõem os que a pretendem, mesmo sem lhe assegurar ter pai e mãe, como se o amor fosse, apenas, um vago afeto.) Também outrora se nos afigurou impossível que se entendesse ser legítimo gerar uma criança para a orfandade, aceitando, por exemplo, inseminar uma mulher com sémen do seu companheiro morto (como está a discutir-se, neste momento, em França). Também outrora se considerou impossível que se legitimasse que o filho matasse o seu pai ou a sua mãe, a pretexto de estar doente ou já sem rumo e que, por isso, jamais Portugal haveria de aceitar a eutanásia ou qualquer outra prática semelhante.

Também outrora reconhecíamos que a importância da família a tornava merecedora de toda a proteção, dada a sua relevância como estrutura-célula de todas as demais relações, e não privada de tal relevância pela via do alargamento do conceito a modelos e ‘organizações’ que pouco têm da referência familiar, conduzindo ao esvaziamento do significado da consideração de que a família seja a base da sociedade.

Em todas estas ‘impossibilidades’ passadas há um ponto em comum. Alguém se encarregou de insensibilizar a sociedade, conduzindo-a à aceitação da ‘naturalidade’ das opções que a todos se afiguravam ilegítimas. E essa insensibilização utiliza a estratégia de sempre: massacra com a repetição do assunto; cria casos e insiste na matéria; ridiculariza os que assumem a legitimidade do modelo que a sociedade sempre seguira (veja-se como, em França, neste momento, se está em vias de aceitar o aborto até ao final da gravidez; os que pretendem fazer passar a medida, consideram os seus opositores ‘ultraconservadores’. Deveria apetecer-lhes somar mais ‘atributos’ a esta qualificação, designando-os, eventualmente, como ‘ultra-super-extra-conservadores’. O exagero ridicularizaria a opção. Basta ‘ultraconservador’ que a mensagem já passa. Ninguém quer ficar desse lado!) e multiplicam-se as notícias de que a mudança em curso é uma inevitabilidade.

A mesma estratégia está, agora, em curso.

Aos imigrantes são atribuídas as culpas do que ocorre. Criam-se ‘casos’ e mais ‘casos’. Ridiculariza-se como ‘radical’ de esquerda quem assume que, também nós fomos emigrantes e, por isso, temos um dever acrescido de acolher. E, por fim, insiste-se na ideia de que também outros estão a seguir por este caminho de exclusão como se fosse uma inevitabilidade.

A memória do que já nos fizeram, manipulando-nos, deveria acordar-nos para o que estão a fazer-nos, agora.

São, afinal, novos cenários e novos protagonistas com o mesmo guião.

Já o vimos e não gostámos… Não queremos ir por aí!

A história demonstra-nos que o combate contra todos os populismos só se faz com a firmeza nos valores estruturantes. Nunca daí deveríamos ter saído. Nós próprios o fomos dizendo: a desvinculação em relação a valores fundamentais, em relação à realidade natural e à condição própria do ser humano, enquanto portador de dignidade que o estatui como inviolável, torna a política e o direito terreno para a decisão meramente arbitrária. E essa é a melhor massa de que se fazem os ditadores.

Ouçamos a lição da história. E não a apaguemos da memória.

quinta-feira, agosto 13, 2020

Inacreditável! A França prepara-se para aprovar o aborto até aos nove meses de gestação…


A Assembleia Nacional francesa aprovou, em segunda votação, um conjunto de decisões que reveem a ‘lei da bioética’ o que, para além de estar envolvido num processo merecedor de particular estranheza (segundo jornal ‘Gazeta do povo’, de 577 deputados franceses, só 101 votaram esta lei, sendo que 60 foram a favor, 37 votaram contra e 4 abstiveram-se), se for aprovado pelo Senado francês, permitirá a realização do abortamento voluntário, a pretexto de serem casos de ‘sofrimento psicossocial da gestante’, até aos nove meses de gravidez. A estas medidas acrescentam-se, ainda, a possibilidade de reprodução assistida para mulheres solteiras ou uniões homossexuais femininas, a flexibilização da doação de gâmetas, etc.

A simples descrição desta possibilidade deveria suscitar em quem a lê um imediato repúdio, mas a insensibilidade coletiva agudiza a necessidade de se descrever o que está, verdadeiramente, em causa.

Antes de mais, a mera abertura desta possibilidade (que já não o é, apenas; está na iminência de vir a ser lei!) demonstra a pouca honestidade que tem acompanhado a discussão destas matérias, desde o seu início. Estas propostas são sempre, inicialmente, (veja-se o que tem sido dito para aprovar, em Portugal, a eutanásia) descritas como sendo para exceções. A bitola vai-se alargando, porém, e a exceção acaba por ser, ao fim de algum tempo, a proteção inicialmente desblindada. Esta mera enunciação de possibilidade (já não o é, como vimos!) demonstra que o que está em causa não é, afinal, uma qualquer compaixão, mas a efetiva afirmação de um direito que, pela dificuldade em demonstrá-lo, juridicamente, se faz valer pela via da prática. O tribunal europeu dos direitos humanos deliberou, contudo, sem possibilidade de recurso, em 16 de dezembro de 2010, com 11 votos a favor e 6 contra, que o aborto não é um direito humano sendo, por isso, legítimo que os Estados o penalizem. Mas a matéria, não só não é revertida no sentido do reconhecimento de que somos incoerentes ao desproteger os filhos humanos, como, a confirmar-se esta decisão francesa, se continua a alargar o quadro de ‘direitos’.

É bom sublinhar que, a aprovar-se, esta matéria mostra como está doente a democracia. Como bem recordava, em 1991, o grande filósofo francês, Paul Ricoeur, a democracia que não respeita valores ético-morais corre o risco de ‘não ter outro critério a apresentar além dos seus próprios procedimentos’ (Revista Esprit, janeiro de 1991), ficando vulnerável a todo o tipo de manipulação. Se o único valor é o que decidir a maioria, sobrará o espaço para a ditadura dos que gritarem mais alto e melhor manipularem as hordas (caminho para o populismo?).

Onde está a dúvida sobre a qualidade 'humana' de uma vida 'humana' (!) em gestação? Onde está a dúvida sobre o que significa a afirmação registada, por exemplo, na constituição da República Portuguesa, de que ‘a vida humana é inviolável’? Se o argumento é o de que caberá a cada um decidir sobre o que lhe diz respeito (como se a vida de um filho só à mãe dissesse respeito!), porquê parar, então, aqui? Porque não aplicar o princípio a tantas outras coisas: porquê obrigar alguém a ter escolaridade obrigatória? Porquê obrigar alguém a pagar impostos? Porquê obrigar alguém a adotar comportamentos que não quer (uso de máscaras, por exemplo, neste contexto de pandemia, uso de cinto de segurança, etc.)?

Eu sei por que razão é legítimo continuar a fazer isto que nos é imposto. Tenho dúvidas sobre a coerência de quem defende o aborto até ao fim dos nove meses na resposta a estas perguntas. Ficará, no limite, com a resposta de que se deve fazer porque alguém assim determinou…

É muito pouco para uma vida em sociedade.

Há valores que são anteriores à decisão da maioria e o da existência de alguém (sim, um filho em gestação é alguém!) deve ser um desses indubitavelmente merecedor de proteção perante o exercício da livre decisão. Não existimos porque somos livres; antes, sim, somos livres porque existimos.

A inversão desta constatação é mais do que isso: perverte a vida em sociedade, na medida em que isola cada um sobre e em si mesmo. Não temos, deste modo, uma sociedade, mas uma mera soma de indivíduos sobre um território comum.

Sociedade que legitima a violência dos pais (da mãe, neste caso) sobre os filhos não pode esperar que a resposta seja a paz e o respeito não violento.

Haja um Senado que nos valha, já que de Deus andam bem longe estas decisões!

quarta-feira, junho 17, 2020

A grande mentira


O mundo tem assistido a mudanças vertiginosas, apresentadas como espontâneas, naturais e imparáveis. Pudéssemos ‘regressar’ ao futuro e olhar para trás, com independência, as grandes decisões das últimas décadas (particularmente a partir da conferência do Cairo sobre a população, realizada em 1994) e notaríamos uma tónica comum (nestes tempos atonais, não deixa de ser paradoxal!): diz-se que ‘somos muitos, somos demasiados, pelo que temos de diminuir a população mundial’.
Grande parte das decisões tomadas, desde finais da década de 60, explicita ou mantém implícita a estafada tese malthusiana (Malthus viveu entre 1766 e 1834, mas a sua tese de que ‘o crescimento da população é geométrico, enquanto a alimentação é numérica’ permanece viva, apesar de repetidamente negada pela realidade).
Antes de avançarmos, recuperemos a primeira ideia aqui apresentada – a da espontaneidade das mudanças – para a contestar e deixar muito clara a consciência de que as mudanças têm sido conduzidas por instituições, lóbis e organizações devidamente identificadas que se propõem defender, nos areópagos internacionais, as suas agendas, (vale a pena ler, a este propósito, dois livros muito esclarecedores: Gabriele KubyA revolução sexual global: destruição da liberdade em nome da liberdade (2019) e Marguerite PeetersA globalização da revolução cultural ocidental: conceitos-chave e mecanismos operacionais (2015), ambos editados pela Principia) e pelo que nada têm de natural e imparável as mudanças que, a pretexto da tese que aqui iremos denunciar, se propõem desnaturalizar a ‘natureza humana’.
[Entendo por ‘desnaturalizar’ a natureza humana o esforço de negar a importância da condição natural como condição necessária para entender a dimensão cultural do ser humano. O homem é cultural numa natureza que ele recebe e que lhe é prévia. Ele realiza-se enquanto natureza humana que se torna cultura. A ‘desnaturalização’ da natureza humana tudo reduz a construção cultural. No limite, a própria condição sexuada do ser humano é desvirtuada da sua dimensão natural para ser reduzida a um constructo cultural e social.]

Seremos, mesmo, muitos?
Retomemos a questão malthusiana, explicitando que a nossa tese é a de que, de facto, não somos muitos. Somos, quando muito, ‘malcomportados’, isto é, o risco da nossa existência para o ambiente não decorre do nosso número (tese a analisar), mas dos comportamentos que temos.
Senão, vejamos…
Para evidenciar como não somos, efetivamente, muitos, perguntemo-nos o seguinte (a pergunta devo-a ao jornalista e amigo, António Jorge Ferreira, que, um dia, ma formulou nos termos em que a vou apresentar): imagine-se que procurávamos reunir todos os 7 mil milhões de humanos num só espaço em que a cada humano se atribuiria uma área de um metro quadrado (m2). Que território ocuparia essa mole humana?
Deixo a pergunta ao leitor. Em que território caberia a população mundial, dentro desta condição matemático-geométrica?
Já a formulei a diversos públicos e as respostas foram de ‘continente europeu’ a ‘toda a área de Portugal até Vladivostok’, a ‘toda a Terra’, enfim.
Mas procuremos, então, fazer a análise pela via matemática.
Comecemos por recordar que uma área de 1 m2 é a que corresponde a um quadrado com um metro de lado. Por seu turno, um espaço com um quilómetro quadrado (Km2) é o que corresponde a um quilómetro de lado, o que significa que tem 1 milhão de metros quadrados. Está fácil de concluir, desde já, que, na área de um quilómetro quadrado caberia um milhão de humanos, aplicando o teor da proposta que estamos a analisar. Estendendo a ideia… em 10Km2, caberiam 10 milhões de humanos (todos os portugueses, afinal) e em 100 km2, caberiam 100 milhões de humanos. Saltando para o final do raciocínio, os 7 mil milhões caberiam em 7000 Km2.
Fica a faltar a identificação mental de um território que corresponda ao final do nosso raciocínio: o que tem a área de 7000 Km2?.
Para os que tinham afirmado que precisaríamos de toda a Terra, logo ficariam excluídos da verdade ao verificarem que a Terra tem uma área de 510 milhões de Km2. Muito mais do que a área de que necessitamos.
Os que pensaram no território da Europa e Ásia (de Portugal a Vladivostok) também rapidamente concluirão que 54 milhões de km2 são área a mais para albergar os nossos ‘modelos’.
E na Europa? 10 mil milhões continuam a ser área a mais.
Portugal? Dos seus cerca de 92 mil Km2 também demasiado espaço sobejará.
Teremos de concluir que, afinal, caberíamos num só dos nossos distritos, que não o maior de todos. Caberíamos no distrito de Évora, que tem cerca de 7393 Km2.
E se decidirmos alargar a área a conceder a cada humano para 4 m2 (2 metros de lado), verificaremos que a área do Alentejo e Algarve é suficiente para albergar todos os humanos vivos, atualmente.

Ou seremos, afinal, malcomportados?
Naturalmente, do que acima se trata é de um puro exercício matemático, mas que denuncia que, afinal, não seremos tantos, numericamente falando, como nos querem fazer crer, sendo que, para além disto, há que ter em conta que o crescimento da população não é um mero exercício de geometria, pois fatores como, por exemplo, as pandemias (!) as guerras, as políticas, as adversidades de vária monta interferem nas variações dos números demográficos. E tudo indica que, afinal, a população mundial volte, de novo, a decrescer (Cfr. Robert E Ricklefs, A economia da natureza (2010))
Será fácil concluir, então, que esta mentira muito bem construída terá de ser substituída pelo reconhecimento de que o problema da demografia humana não é quantitativo, mas sim de ordem moral. Temos de converter a nossa forma de estar, não porque tenhamos medo – o medo não é bom fundamento da moral! –, mas porque reconhecemos o mundo como um lugar a respeitar e acolher como recebido e a transmitir. Outra ordem moral se impõe, mas não a dos lóbis fraturantes: antes a que nos assume como um ser criado e devedor de Fonte Maior a quem se deve reconhecer o senhorio do mundo e não considerando-se a si próprio – ‘Humano’, afinal! – como o Senhor absoluto de um mundo a dominar. Enquanto esta conversão não ocorrer (construam-se lóbis para isso, sim!), por poucos que formos, seremos sempre demasiados, tal a sofreguidão.
Até quando nos manterão sob a influência da grande mentira?

(Nota: as informações sobre as áreas territoriais foram recolhidas da wikipédia em 17 de junho de 2020)

quinta-feira, junho 04, 2020

A eutanásia e a falência da Razão


Os tempos estão paradoxais…
Confinámo-nos, certos de que a proteção de todos merecia a nossa autolimitação de movimentos e relacionamentos. E fizemo-lo sabendo que a autonomia não era um valor absoluto; antes, a solidariedade e a proteção dos mais frágeis, em nome da sua comum dignidade humana, poderiam sobrepor-se ao exercício da autonomia. Umas tais circunstâncias evidenciaram que cabe à ‘autonomia’ reconhecer a irrefutabilidade do pressuposto da anterioridade da vida; a não ser assim, a autonomia contradiz-se porque se anula, no preciso momento em que se exerce. Proteger e cuidar sempre da vida é cuidar do incerto e inseguro que esta é perante a certeza do limite e da morte. A vida é que carece, por isso, de toda a proteção. Como em tempos recordámos, impõe-se, perante isto, uma ética das decisões reversíveis. A qualidade de vida, a autonomia, o bem-estar, etc, são qualidades muito importantes, fundamentais em sociedades modernas, mas sempre reversíveis, sempre suscetíveis de melhoria. Já a vida e a morte não são reversíveis nem permutáveis. Uma implica a ausência da outra. E isso estabelece o limite da nossa ação: esta é legítima até ao limite da reversibilidade. Torna-se ilegítima quando pretende considerar-se detentora da possibilidade de se exercer, mesmo sobre as condições irreversíveis.
Já G. Zagrebelsky, presidente do Tribunal Constitucional italiano o recordava, no seu livro ‘a crucifixão e a democracia’, quando falava do limite da decisão democrática. Recordava este especialista em direito, que ‘as democracias, que não queriam derivar em ditaduras baseadas na arbitrariedade de quem decide, devem ter consciência de que há matérias sobre as quais não podem decidir. Já em artigo anterior recordei que este reconhecido jurista «alerta para os perigos das democracias que se consideram legitimadas para legislar sobre tudo, até sobre os valores que estruturam a sociedade que deviam servir. Chama a estas ‘democracias céticas’, para quem o que interessa é conservar o poder, bastando-se com os indicadores das sondagens, ou ‘democracias dogmáticas’, possuidoras da verdade absoluta, sentindo-se, por isso, autorizadas a mandar na própria vida e morte dos cidadãos. Por oposição a estes dois modelos de democracia, Zagrebelsky propõe o que chama «democracias críticas», que poderíamos designar como ‘autocríticas’ que se sabem frágeis e suscetíveis de manipulação, pelo que não legislam de modo a pôr em causa o que une os cidadãos. Não legislam sobre a vida e a morte, mas acolhem os limites próprios decorrentes da natureza humana.’ (Ver artigo nosso A EUTANÁSIA NÃO RESPEITA OS DIREITOS HUMANOS | É TÃO FRIA A MORTE!’)
Quando emergiu, numa melopeia repetitiva, a ideia de que o parlamento se preparasse para legalizar tais práticas, sucederam-se as argumentações, mobilizaram-se as ordens de médicos, de enfermeiros e tantas outras associações e movimentos de sociedade, mobilizaram-se dezenas de milhares de subscritores contra tais decisões, publicaram-se argumentários, reuniram-se dados estatísticos irrefutáveis, congregaram-se as vozes dos que representam o sentir real do povo que se quer ver protegido e cuidado, agregaram-se as religiões (que, é bom que se diga, representam mais de 85% da população portuguesa*) em declarações conjuntas, etc., etc., etc…; dados e factos e entidades que demonstram o erro da legalização da eutanásia.
Mas fica a faltar um dado que toda esta panóplia de razões válidas esquece: o Parlamento tem o poder e quer exercê-lo! Mesmo que seja contra o seu povo!
Não haverá argumentos nem demonstrações, porque a decisão está tomada. Há-de mobilizar-se a imprensa leal aos secretos movimentos para que pareça que o facto está consumado e de modo a parecer que esta é a mais moderna decisão. Serão invocadas supostas razões de liberdade, será afirmada a estrita aplicação em circunstâncias que levarão a crer que, afinal, até quase que não se aplicará. Será afirmada, à saciedade, que é só para os que a quiserem… Como se o direito se fizesse para alguns; como se a lei fosse particularista e não universal; como se não recaísse sobre todos a sombra da pressão para se pedir a eutanásia quando já formos um peso; como se, na fragilidade, não fôssemos tão dignos como no fulgor da vida. 
E um silêncio ‘esclarecedor’ se abaterá sobre esta matéria quando ela, ao serviço do poder despótico de uma certa composição parlamentar, estiver tomada como se pretendia. 
Não passarão! Não podemos deixar que passe uma tal decisão. 
Em nome de todos! Em nome da verdadeira liberdade que é a capacidade de discernir o melhor e não a voluntarista decisão de fazer o que se quer! Em nome da razão e das razões!

(*Conferir https://www.dn.pt/portugal/portugueses-sao-mais-cristaos-e-vao-mais-a-igreja-do-o-resto-da-europa-9396819.html - informação corrigida em 6 de junho de 2020)

domingo, maio 24, 2020

Três notas a pretexto do quinto aniversário da Laudato Si’



Em 24 de maio de 2015, o Papa Francisco ‘deu’ ao mundo a sua segunda encíclica (e até agora, última, somando-se-lhe cinco exortações apostólicas), depois de Lumen Fidei, feita ainda a quatro mãos, dado que se sabe ter tido intervenção do Papa emérito, Bento XVI. A esta segunda encíclica o Papa dá um título – Laudato Si’ (Louvado Sejas!) - recuperado do Santo de que tomou o nome, S. Francisco de Assis, autor do célebre ‘cântico das criaturas’, que começa os seus versos utilizando, precisamente, esta expressão ‘louvado sejas, meu Senhor’. O pretexto que nos dá este aniversário (5 anos decorridos) serve-me de motivo para traçar três notas ou sublinhados.
1. Em primeiro lugar, registo a minha convicção de que o futuro guardará a data ‘5’ de cada década como momento a recordar. Já eram guardados os anos ‘1’, invocando a recordação da primeira encíclica dedicada a matérias de doutrina social da Igreja, a Rerum Novarum, publicada em 1891 pelo Papa Leão XIII. Era recordada a data ‘7’, invocando a publicação da Populorum Progressio, saída da pena de Paulo VI e particularmente famosa pela afirmação de que o progresso ‘deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo’ (n.14). A Laudato si’ dá, certamente, o pretexto para que se recordem os anos ‘5’ de cada década, dado que a temática ‘ecologia’ tinha sido, naturalmente, abordada em diversos documentos, mas nunca com o estatuto que a publicação como tema central de uma encíclica lhe confere.
2. Em segundo lugar, penso merecer registo a constatação da ousadia do Papa em publicar esta encíclica numa época em que proliferam as ecologias. E, face às ditas ecologias radicais, o Papa propõe-se afirmar uma ecologia ‘integral’ que, como recorda no número 11, ‘requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano.’ O Papa, ao propor uma ecologia integral, visa, na minha perspetiva, fundamentalmente, três objetivos: deslocar a problemática do comportamento perante o mundo do mero âmbito técnico-científico, colocando-o no âmbito da ética e da moral; suplantar os riscos das ecologias ditas radicais que somem o humano no natural e pretendem nivelar a dignidade humana perante a suposta ‘igual dignidade’ dos restantes seres criados e, em terceiro lugar, olhar o ser humano não apenas como sujeito da ecologia (enquanto ator e protagonista da ação ecológica), mas também como seu próprio objeto. Não haverá ecologia sem a humanidade, o que, em tempos que tantos se propõem considerar a economia como um adversário da ecologia, se torna um tremendo desafio.
3. Em terceiro lugar, o Papa apresenta uma proposta ecológica que suplanta os limites notórios de grande parte das propostas ecologistas difundidas. O Papa vai à raiz da razão pela qual se deve ser cuidador (do ambiente, dos ambientes, do ser humano…): é que a vida é um dom e, por isso, uma missão que nos é confiada. De um dom eu cuido; não maltrato, não estrago, não destruo. Esta visão contrapõe-se à que é, habitualmente, proposta. A ecologia é, hoje, e, com ela, muita educação ambiental, sustentada no medo: medo das catástrofes, medo da abertura do buraco do ozono, medo das alterações climáticas. Medo, medo, medo! E o medo, é sabido, é adversário da liberdade e da verdadeira autonomia. O medo é uma estratégia da heteronomia. Só faço porque temo; quando o medo desaparecer, deixo de fazer. E essa é a verdadeira fragilidade das ecologias deste tipo: assentam no medo, pelo que precisam de o alimentar, pois sabem que, quando este terminar, regressam os comportamentos destruidores.
O Papa sai deste círculo… A sua proposta parte do reconhecimento da condição criatural do mundo e do ser humano: as criaturas devem a sua vida ao Criador e d’Ele recebem a missão de cuidar do que lhes é confiado. Num tal registo, a motivação para cuidar não nasce do medo: nasce do Amor. Ao longo da encíclica, o Papa fala 56 vezes do amor. E esta é a novidade radical desta encíclica perante as ecologias vigentes. Quem ousaria falar de amor ao formular uma proposta ecológica?
Só alguém chamado Francisco, embrenhado da mesma ‘loucura’ e ousadia do outro Francisco que não se coibiu de tratar a morte por ‘irmã’...

quinta-feira, abril 23, 2020

A covid-19 não nos demonstra, apenas, que somos finitos… mostra que somos e-finitos!



Somos seres finitos, marcados pela finitude. Isso é uma evidência.
Mas convivemos mal com ela… Insistimos em tentar escapar-lhe, fugir dela e fazer de conta que ela não nos atinge.
E porquê? Porque é que insistimos em tentar escapar-lhe, resultando dessa fuga uma tristeza profunda que nos debilita e angustia?
Foi na busca de resposta a esta interrogação que se foi consolidando em mim a convicção profunda de que a nossa real assunção do que somos passa pela forma como reconhecemos o lugar da finitude na nossa própria natureza.
Desta busca de resposta nasceu e tem crescido uma convicção que a circunstância de pandemia em que vivemos me fez recuperar e decidir-me a partilhar.
Essa convicção desloca a visão sobre quem somos do reconhecimento de que, simplesmente, somos finitos para um outro e mais profundo reconhecimento: o de que somos e-finitos.
A convicção de que somos e-finitos acompanha-me desde há muitos anos. Repercuti-a, aliás, aquando da investigação que fiz em bioética e no livro «bem-nascido… mal-nascido… Do ‘filho perfeito” perfeito ao filho humano».
O que a e-finitude diz de nós é que não somos, apenas, seres que vivem na finitude, como se ela fosse um apêndice, um elemento estranho à nossa própria identidade. A e-finitude diz-nos seres que vivem ‘a partir da finitude’.
A palavra que define esta nossa condição – e-finitude – construí-a a partir de um prefixo latino ‘e ou ex’ (preposição que rege um ablativo) e que quer dizer ‘de…, a partir de…, do interior de…’. Sermos e-finitos não é constatar que somos, estamos na finitude. É reconhecer muito mais do que isso. É supor que não nos podemos pensar sem ter em conta que vivemos a partir da finitude.
Este simples prefixo obriga a olhar para tudo o que somos de um outro modo.
Não nos podemos pensar, à maneira dos gnósticos (curiosamente, os primeiros grandes combates do cristianismo, que afirmava a condição ‘encarnada’ de Deus e a condição de ‘espírito encarnado’ que era o homem, foram travados contra as correntes gnósticas!), repito, não nos podemos pensar, como os gnósticos, de uma forma pura, incondicionada, e, depois, constatar que temos a finitude a estorvar. Não! Não nos podemos pensar sem supor a finitude. Tudo o que somos deve pressupor que estamos num contexto próprio, marcados pelo limite, sempre. Como é importante isto, por exemplo, para discutir a liberdade humana! Quantos a pensam como se liberdade não fosse uma condição e um exercício sempre condicionados! E como erram, ao supor uma liberdade humana incondicionada!
Curiosamente, na definição do ser humano como ‘e-finito’ está uma visão sobre a teodiceia que é oportuno partilhar.
Primeiro, importa esclarecer que a teodiceia é um âmbito da reflexão teológica que, particularmente, a partir do século XVII, com Leibniz, discute uma difícil articulação entre a fé em Deus Bom e a existência do mal. Leibniz resolvia este ‘dilema’, afirmando que este é o melhor dos mundos…
As circunstâncias de pandemia em que nos encontramos fizeram reaparecer tentativas de articular os dois lados do problema com soluções que, em termos cristãos, são muito questionáveis.
Há um critério, sobre esta matéria, que o livro de Génesis deixa claro: em caso algum pode ser atribuída a Deus a origem do mal. Haverá que encontrá-la em outro ‘lugar’, pois é contraditório reconhecer a bondade divina e atribuir-lhe essa possibilidade.
Nesta matéria, sou devedor da linha de pensamento de Andres Torres Queiruga, um teólogo espanhol com diversas obras que se debruçam sobre esta tão difícil matéria.
Em síntese, Queiruga sustenta que Deus, ao criar, como que se depara com um dilema em que opta pelo lado da salvação. O ‘dilema de Deus‘ é este: Deus não pode criar seres absolutos, sem limite; isso seria contraditório, pois não há dois absolutos. A criatura, a criação, ‘limitaria’ o outro absoluto, Deus. Então, Deus sabe que criará seres finitos, impossivelmente absolutos.
Perante esta certeza, decorrente da natureza de se ser criatura, Deus tem de decidir: ou criar, sabendo que a criatura será, essencialmente, finita, ou, então, simplesmente, desistir e não criar.
A decisão de Deus é pela salvação: salvar do nada o que, sem a ação criadora, nada seria.
Logo, a finitude é condição sine qua non (sem a qual não se pode ser) da criatura. No desejo de Deus, a criatura é pretendida como infinita, mas tal não pode realizar-se, efetivamente, porque a criatura é, sempre, finita. E por sê-lo, intrinsecamente, - digo eu – tem de pensar-se e agir a partir da finitude, como ‘e-finita’.
Uma leitura fina desta perspetiva compreende, rapidamente, que a aceitação da deficiência, da doença, da fragilidade, não é o reconhecimento de algo que nos é estranho: não! É o reconhecimento da igual condição de todos. Como tenho afirmado, a propósito da reflexão feita no livro ‘bem-nascido… mal-nascido…’, a deficiência é condição de todos nós que, em alguns de entre nós, se torna mais visível; mas é a condição de todos.
Aliás, uma das mais prováveis etimologias para a palavra ‘humano’ (outras podem ser invocadas, seguramente!) fá-la derivar de ‘húmus’, repercutindo, como é notório, o sentido da palavra de Génesis para designar a humanidade, na sua origem, ‘Adão’ – ‘aquele que é tirado da terra’.
A longa reflexão cristã sobre quem é o Homem tem sido firme no reconhecimento de que somos débeis, frágeis e na afirmação de que isso nos define. Teremos de nos pensar a partir daí e não apesar disso. A negação da nossa fragilidade é o principal fator de alienação, de negação da humanidade (agora, compreendida como aquela que é feita do ‘húmus’).
A covid-19 tornou evidente como somos frágeis. Atribuir a Deus essa origem é errar o alvo, cometendo uma dupla injustiça: por atribuir a Quem não é devido e por não atribuir ao que é devido. A Deus não deve atribuir-se a causa do mal, mas a fonte para dele se sair. Essa é a via de resposta do Cristianismo para a problemática do mal. De Deus deve esperar-se a salvação e não procurar n’Ele a origem do mal que, antes, emerge da condição e-finita da criatura.
A pergunta não poderá ser, nunca, ‘que mal fiz eu a Deus?’, mas antes, ‘que salvação posso esperar de Deus para esta situação?’.
A covid-19, sendo evidente que resulta da condição finita em que nos realizamos, interpela a que nos reconheçamos na comum condição para dela nos erguermos juntos, aspirando à libertação que é sempre frágil e condicionada.
Quem dera que, neste período de quarentena forçada, se esteja a gerar, como num silencioso útero, a sabedoria que nos ‘devolva’ o reconhecimento de que todos somos irmãos nesta comum condição e-finita, de modo a emergir daqui um outro modo de nos pensarmos juntos! Porque a e-finitude é, necessariamente, uma condição de humildade (o outro rosto daquele que é feito de ‘húmus’).
Quem sabe?...

quinta-feira, março 19, 2020

O individualismo morreu com a Covid-19


O individualismo é uma ilusão. E como, habitualmente, grandes ilusões redundam em maiores desilusões, não se espere melhor fim para esta. Não sem, antes, porém, muitos estragos ter feito pelo caminho.
Esclareçamos o conceito. Deixemo-nos, para tal, levar pela mão de Roque Cabral, que, na enciclopédia de filosofia, Logos, define ‘individualismo’ como ‘grande variedade de atitudes, doutrinas e teorias […] as quais apresentam a nota comum da sobrevalorização do indivíduo‘ e acrescenta que se trata de ‘uma conceção da vida em sociedade [que] resulta de uma inaceitável e mutiladora conceção do homem como ser associal ou antissocial, anterior à sociedade e concebível sem ela; a qual, por sua vez, é concebida como pura soma de indivíduos, sem outra realidade além destes e por eles criada’. (Cfr. Roque Cabral, ‘Individualismo’ in Logos 2, 1408-1409).
As manifestações desta conceção, desta cosmovisão, são múltiplas, da economia à política, da moral ao lazer, etc… No próprio dizermo-nos se expressa esta leitura da existência. Quem nunca ouviu e reproduziu a afirmação de que ‘a minha liberdade termina onde começa a do outro’, sem, porém, se interrogar sobre o real significado de tal proposição? Quando seríamos mais livres? Quando o outro estivesse diminuído na sua ‘liberdade’ e, no limite, quando ele desaparecesse! Nesta afirmação expressa-se o pensamento do seu criador, Herbert Spencer, um dos preconizadores, durante o século XIX, do liberalismo clássico, defensor de um ‘ideal [que] convergia para uma sociedade onde o indivíduo fosse tudo e o Estado nada’ (Acílio da Silva Estanqueiro Rocha, ‘Herbert Spencer’ in Logos 4, 1279-1288).
Mas, mais do que denunciador de um insuperável antagonismo entre indivíduo e Estado, o individualismo expressa uma visão de que possa conceber-se a existência de cada um de nós sem os demais.
Aliás, um dos muitos pecados da afirmação acima recordada está, precisamente, no entendimento de que as liberdades individuais sejam realidades fechadas sobre si mesmas, concebíveis em antagonismo com os outros. Nada mais errado!
Nenhum de nós pode conceber-se sem os outros (pense-se no fenómeno da própria autoconsciência que é impossível sem o trabalho de a despertar que os outros têm. Nenhuma criança teria, algum dia, consciência de si mesma sem a ação dos outros humanos. Assim, também, no âmbito biológico ou económico ou qualquer outro…). Não nos podemos pensar sem a ação dos outros. O que é, afinal, a cultura senão a partilha do que é cultivado por uns e outros, que recebemos e transmitimos? Não há liberdades fechadas. Não se pode conceber a liberdade sem a interpenetração na liberdade dos outros. Ser livre é realizar-se como humano, é estar em condição de incompletude, escolhendo, sempre, de entre várias possibilidade em aberto, envolvendo, não apenas a vontade (um dos outros erros da conceção de liberdade do individualismo: reduz a liberdade ao voluntarismo, como mera ação da vontade, do querer…), mas também o afeto e, principalmente, a inteligência. A liberdade não é, primeiramente, um ato da vontade: é, antes, ato de um ser racional e intrinsecamente relacional. Não há liberdade onde não houver esta racionalidade e relacionalidade.
E foi isso que a pandemia da Covid-19 veio demonstrar, cabalmente. Não vivemos sós e podemos ter de decidir que, pelo nosso bem e pelo bem dos outros, devamos submeter a nossa vontade ao que lhe impõe a inteligência. E isso é ser livre! Não à maneira individualista, bem certo, mas numa visão humanista e personalista que só pode ser, também, intrinsecamente, comunitarista, que não comunista. Curiosamente, Roque Cabral recorda, na mesma entrada da enciclopédia Logos, que, por influência do anarquismo, o socialismo afirma o papel do Estado, mas também não ficou imune à influência nefasta do individualismo. Poderemos acrescentar que, de forma simétrica, também os movimentos ditos conservadores não souberam imunizar-se contra esta nefanda influência, ao acolherem o liberalismo na economia.
Talvez a universalização de um vírus tão pequeno quanto potente possa despertar deste torpor coletivo que, pela esquerda e pela direita, nos ilude e encaminha para a desilusão.
Nada somos, sozinhos! Um grito no vazio. Mas quem poderá ouvir o nosso clamor?
Que não nos esqueçamos, quando estivermos a decidir, depois de passada a borrasca, que ninguém decide sozinho, que não se vive sozinho, que não se morre sozinho… que somos, sim, um ser relacional, intrinsecamente ‘tus’ diante de outros ‘tus’, em cujo face-a-face se gera o eu que é cada um de nós. Mas é o ‘tu’ que gera a consciência do ‘eu’.
É já cadáver a ilusão de só a nós dizer respeito o que nos ocorre ou de ser 'lá da conta deles' o que acontece com os outros.
Até quando, porém, continuará a sentir-se o seu odor fétido de ente apodrecido?
Como pudemos andar tão solitariamente distraídos?

quarta-feira, fevereiro 12, 2020

Eutanásia | Sim, do catolicismo espera-se muito!


Num momento em que se dava como certo nada haver a fazer perante a reunião de condições contabilísticas parlamentares para legalizar a eutanásia, a Igreja Católica, através da Conferência Episcopal Portuguesa, veio manifestar o seu apoio aos que promovem uma iniciativa popular de referendo, após a coincidente manifestação pontifícia de oposição à legalização da eutanásia, expressa na mensagem para o dia do doente, celebrado neste mesmo dia 11 de fevereiro.
Já anteriormente alguns bispos, entre os quais D. António Moiteiro, Bispo de Aveiro, tinham assumido, no espaço público, posição de defesa inabalável do dever de cuidar sempre da vida humana.
Adivinhando-se este somar de posições católicas promotoras da inviolabilidade da vida, foram-se ouvindo vozes com o estafado (não) argumento da ilegitimidade da Igreja para se pronunciar sobre tal matéria.
Não nos deteremos na contra-argumentação teórica, dado que vamos vendo que os ouvidos, nestas horas, parecem ensurdecidos.
Propomo-nos, antes, evidenciar como esta posição inabalável de defesa da dignidade de toda a vida humana foi fundamental, numa outra fase da história em que se assistiu a semelhante vertigem avassaladora que foi tomando conta dos países ocidentais.
Também nessa hora, a voz católica se distinguiu pela sua segurança e foi garantia de defesa da vida humana perante aquilo que, pouco mais tarde, a história veio a demonstrar ter sido um erro em que se enredaram os países ditos desenvolvidos, em nome do argumento do progresso e do caminho legitimado por uma certa forma de ler a ciência e um humanismo que servia de disfarce a totalitarismos.
Referimo-nos à vertigem eugenística que tomou grande parte dos países do mundo, em particular, no contexto ocidental, período que descrevemos no livro ‘Bem-nascido… Mal-nascido…’.
De finais do século XIX até à II Guerra Mundial, o mundo assistiu ao engrandecer da ‘onda eugenística’. Sob o pretexto de que a ciência nos concedia instrumentos para identificarmos os mais débeis de entre os humanos e de que havia que replicar, no âmbito social, aquilo que a mesma ciência nos evidenciava que acontecia na natureza, isto é, a seleção natural que ‘protegia’ os mais fortes e ‘abandonava’ os mais débeis, era preciso replicar, no âmbito jurídico, o mesmo raciocínio. Importa recordar, a título ilustrativo, que o criador da palavra ‘eugenismo’, Francis Galton, era primo de Darwin, propondo-se transpor para o âmbito social o que este identificara no âmbito natural. Afirmava, no seu livro ‘Inquiries into the human faculty’, que a ‘eugenia era «bom nascimento», entendendo-a como «a ciência para melhorar a espécie humana, dando às raças e estirpes de melhor sangue uma maior probabilidade de dominar rapidamente os menos dotados». (Segundo Leone|Privitera|Cunha - Dicionário de Bioética)
A ideia estava criada. Havia que dar tempo. E o tempo e a ideia avassaladora de que isso era progresso fizeram o seu caminho!
Como recorda Matt Ridley, no seu livro ‘Genoma’, entre 1910 e 1935, mais de 30 Estados norte-americanos tinham leis que impunham a esterilização de pessoas (chegando a fazê-lo em ‘mais de 100000 pessoas por serem débeis mentais’ – p. 300). O mesmo Ridley recorda que assim aconteceu na Suécia, Canadá, Noruega, Finlândia, Grã-Bretanha, etc. Um retrato perturbador que pode confirmar-se no livro de André Pichot, no seu livro ‘Eugenismo’. Recorda este investigador do CNRC, Estrasburgo, que ‘na década de 30, eram esterilizadas, nos Estados Unidos, mais de 100 pessoas por mês’, tendo a Dinamarca esterilizado mais de 3000 pessoas e a Suécia mais de 15 mil, entre 1935 e 1945 (p. 51).
Uma nota curiosa, porém, é a que registam os dois autores citados.
Ambos recordam que, nos países católicos, estas legislações não foram aceites (ver Pichot, p. 47; Ridley, p. 301), chegando Ridley a afirmar, com clareza que, ‘em países onde a influência da Igreja Católica era forte não existiram leis eugénicas’. (p. 301)
A história, a grande História, veio a demonstrar, com a II Guerra Mundial, que o eugenismo tinha sido um erro. Havia que recuperar o princípio da intocabilidade da vida humana.
A Igreja, como bem recorda D. António Moiteiro, na sua nota pastoral sobre a eutanásia, publicada em 2 de fevereiro de 2020, continuará a ser o ‘porto seguro’ para toda a vida humana.
Esta inviolabilidade que, em alguns momentos da sua História, a própria Igreja nem sempre honrou, soube a mesma Igreja aprender a proteger com os seus próprios erros. E porque soube aprender, pede aos demais que aprendam com ela.
Uma humildade que alguns teimam em não querer adotar.
Mas muito se espera da Igreja Católica. Isso se espera, hoje, em Portugal, quando se discute a possibilidade de legalizar a morte a pedido, ao arrepio do respeito pela inalienabilidade do direito à vida.
Como bem é recordado pelos honestos de entre nós, esta não é matéria de natureza religiosa, sendo, porém, que dos crentes se espera que sejam particularmente atentos. Conscientes, ainda assim, do que afirmava Norberto Bobbio, um descrente mas honesto pensador e político, quando se discutia, em Itália, a possibilidade da legalização do aborto: ‘não se pode deixar aos crentes o monopólio da vida humana’. Mas se o quiserem fazer, garantimos que honraremos essa confiança.
Porque muito se espera dos católicos quando se trata de respeito pelos mais frágeis de entre os humanos!

domingo, fevereiro 02, 2020

A EUTANÁSIA NÃO RESPEITA OS DIREITOS HUMANOS | É TÃO FRIA A MORTE!


O Parlamento agendou, para 20 de fevereiro, a discussão sobre a eutanásia.
A vertigem com que a Assembleia da República enredou esta matéria, como se se tratasse de uma questão menor, obriga a que todos nos demos conta do que está em causa.
Em primeiro lugar, é necessário que tomemos consciência de que a eutanásia é um ato deliberado de antecipação da morte, realizado por alguém incumbido de cuidar, a pedido daquele sobre quem recai esse mesmo ato.
Propositadamente, não acrescento o motivo, nesta breve definição. A razão para esta omissão prende-se com a constatação que podemos recolher dos países em que, lamentavelmente, esta prática foi legalizada. O motivo inicialmente invocado era o do sofrimento insuportável, mas, neste momento, a eutanásia já é praticada a pretexto de se estar em depressão crónica, por falta de sentido para a vida ou, inclusive, sob a capa do ‘consentimento presumido’.
É inquietante constatar que a história está a repetir o erro de outras fases. Também no início do século XX, se foi instalando a vertigem eugenística que levou dezenas de Estados à introdução de leis que esterilizaram pessoas em massa, que impediram casamentos a cidadãos de certas proveniências ou considerados ‘inferiores’, o que criou a predisposição para o que, de forma hedionda, veio a ocorrer no contexto da II Guerra Mundial.
Mas a memória é curta. E, a pretexto de que seja uma decisão legítima da autonomia pessoal, alguns legisladores pensam corresponder a um desejo humanamente sustentável.
Mas matar nunca poderá enquadrar-se no registo de um comportamento humanamente aceitável.
Mesmo que a pedido do próprio.
A inviolabilidade da vida humana decorre da própria dignidade. É o que afirma, com muita clareza, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no primeiro parágrafo do preâmbulo, quando proclama que os direitos humanos são ‘inalienáveis’. Literalmente, afirma-se: «Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;» (De acordo com o Diário da República Eletrónico, consultado em 2 de fevereiro de 2020). A inalienabilidade dos direitos humanos torna-os insuscetíveis de abdicação pessoal. Nem por decisão minha posso deixar de beneficiar do seu conteúdo. Ora, se, de acordo com o artigo 3º, ‘Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.’, o facto de se tratar de um direito inalienável constitui-o, no mesmo momento, em dever. Tenho o dever de proteger o meu próprio direito à vida.
A eutanásia, na medida em que nem sequer é um ato perpetrado pelo próprio sobre quem o mesmo recai, atenta contra o direito, seja por quem o executa, seja por quem o solicita, dado que é um pedido ilegítimo. Pedir a morte, sendo uma manifestação de um desejo, não pode ser reconhecido como um direito. Deve, antes, ser tomado como um pedido de ajuda. E era isso que deveria ser facultado por um Estado que se pretende de Direito. E não pode bastar ou sossegar a ideia de que outros Estados o fazem ou o acolheram no seu quadro jurídico. Assim acontece, por exemplo, com a pena de morte, aceite por mais de 90 países. O facto de ser aceite por quase metade dos países reconhecidos pela ONU não legitima a sua prática.

A eutanásia é um ato muito pouco moderno
A legalização da eutanásia vai no sentido contrário àquilo que deveria ser o caminho dos países civilizados e modernos. Pressupõe, aliás, uma visão profundamente individualista da vida, pouco consentânea com a cada vez mais óbvia interdependência humana e nasce de pressupostos totalmente errados.
Entre eles, para além do já denunciado preconceito de que o pedido de morte pudesse corresponder a um direito humano (nega-os, em vez de os assegurar!), parte de uma suposta alternativa já sobejamente denunciada por todos os que estão envolvidos nos cuidados dos que se encontram em fases terminais da vida. A alternativa a que aqui me refiro é a que pressupõe que quem não tem a possibilidade da eutanásia não possa senão morrer com enorme dor e sofrimento. De modo algum! A eutanásia é um ato de efetiva antecipação da morte, sabendo-se que há muitas outras alternativas que passam por cuidar da dor com medicamentos cada vez mais eficazes, sendo sabido que, como frequentemente afirmava o saudoso professor Daniel Serrão, se não se está a conseguir controlar a dor, então, há que procurar outra equipa médica que nos faça encontrar formas para que tal ocorra.

Um Parlamento deve proteger o seu povo
A eutanásia «é um método fácil de desistência», como bem recordava Verónica, uma enfermeira portuguesa que, em 2016, testemunhou, numa emissora de rádio, que participara, em Bruxelas, num ato de eutanásia de uma mulher de 70 anos bem de saúde, mas cansada da vida.
Não podemos deixar que o Parlamento decida sobre tão grave matéria, só porque tem uma maioria de deputados. Estarão, deste modo a representar o sentir de um país que sempre se pautou pela solidariedade? Ou teremos de concluir que a matriz de um povo em que mais de 70 % dos cidadãos se reconhecem cristãos não passa, já, de um mero desiderato sem correspondência com a realidade?
Recordo que, como bem observava um dos presidentes do Tribunal Constitucional de Itália, Gustavo Zagrebelsky, as democracias, que não queriam derivar em ditaduras baseadas na arbitrariedade de quem decide, devem ter consciência de que há matérias sobre as quais não podem decidir. Já em artigo anterior recordei que este reconhecido jurista «alerta para os perigos das democracias que se consideram legitimadas para legislar sobre tudo, até sobre os valores que estruturam a sociedade que deviam servir. Chama a estas ‘democracias céticas’, para quem o que interessa é conservar o poder, bastando-se com os indicadores das sondagens, ou ‘democracias dogmáticas’, possuidoras da verdade absoluta, sentindo-se, por isso, autorizadas a mandar na própria vida e morte dos cidadãos. Por oposição a estes dois modelos de democracia, Zagrebelsky propõe o que chama «democracias críticas», que poderíamos designar como ‘autocríticas’ que se sabem frágeis e suscetíveis de manipulação, pelo que não legislam de modo a pôr em causa o que une os cidadãos. Não legislam sobre a vida e a morte, mas acolhem os limites próprios decorrentes da natureza humana.»
A nossa democracia, com decisões como a que se propõe assumir o Parlamento, em 20 de fevereiro, corre o risco de redundar numa democracia cética, abrindo portas ao aparecimento de líderes que se considerem detentores do poder de tudo decidir.
Terminemos estas notas doridas com uma constatação. Contrariamente ao que defendem os que pretendem a legalização da eutanásia, esta ‘despenalização’ não afetará só os poucos que se diz que a pretendem pedir. Todos os cidadãos passarão a estar sob o peso desta possibilidade. Todo o cidadão que, em algum momento, sinta que a sua vida já está a ser peso para os demais, sentirá sobre os ombros a exigência velada de que peça, o mais brevemente possível, o seu fim, para que deixe de recair sobre os outros o peso de ter de cuidar de si. É disto que falam os que alertam para a desumanização que tal lei trará às relações para com os mais frágeis. E tudo ocorrerá no silêncio de uma cama de hospital, no segredo de um lar de idosos, nos mais recônditos lugares onde se deveria sentir o acompanhamento cuidadoso. Sobrará o pedido da antecipação da morte, de um após outro, sem que uns saibam dos outros. E tudo não será mais do que estatística.
É tão fria a morte!

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