sábado, janeiro 08, 2022

‘Nenhuma mãe cria um filho para ele ser um homicida…’


Capitel da Igreja de Santa Maria Madalena (Vezelay)
Jesus transporta Judas aos ombros: a imagem da misericórdia!
imagem recolhida de https://portugues.clonline.org/not%C3%ADcias/igreja/2016/07/11/sujar-as-m%C3%A3os-como-jesus

(Este texto só poderia ser escrito por um cristão [ouso pensar que só mesmo por um católico devedores que somos do que K. Barth designava como o ‘maldito «e» católico’. O «e» que me faz olhar para a justiça «e» para a misericórdia. Estou disto profundamente convencido…])

 

Li, num destes dias, que se tinha suicidado a mulher responsável por um crime horrendo cometido no Algarve. A notícia do crime chocara Portugal: o assassínio de um rapaz, seguido de desmembramento e ocultação do cadáver cujos órgãos foram dispersos por diversos pontos da região algarvia.

A notícia do suicídio da principal agressora significava uma espécie de justiça final por tão hediondo crime. Como ocorria após os autos-de-fé ou a execução da pena capital, os assistentes saem a menear a cabeça, certos de que, por fim, se fez justiça…

Confesso que, quando ouvi a segunda notícia, o meu sentimento foi outro: compadeci-me!

Compadeci-me de todo o drama humano em que esta história estava enlameada.

Lembrei-me de uma frase que ouvi, há uns anos, ao saudoso Pe. João Gonçalves, coordenador nacional da Pastoral Penitenciária, que ele mesmo ouvira a um seu homólogo brasileiro: ‘nenhuma mãe cria um filho para ele ser homicida…’

Esta frase fora proferida pela mãe de uma vítima que perdoara ao homicida do seu filho, encontrando-se com a mãe daquele. No dia do encontro, a mãe da vítima confiara a sua certeza de que sabia que aqueloutra mãe, com quem agora se encontrava, não educara o seu filho para que ele viesse a ser o assassino do seu.

Estas mães eram cristãs. Ambas sabiam que só o amor pode redimir-nos.

Bem certo que o Estado deve fazer justiça. Bem certo que deve (tem, mesmo, essa obrigação particular…) de investigar e levar à barra do tribunal quem comete crimes.

Mas, há todo um outro caminho que não pode deixar de ser percorrido.

Um caminho que supera o da justiça.

A dignidade humana não se perde, por maior que seja o crime, por mais graves e hediondos que sejam os nossos atos. É, aliás, isso que define a dignidade humana: ela permanece, mesmo quando os atos são indignos. Nem poderia ser de outro modo: se não se soubesse o que é dignidade, como poderia saber-se o que é indigno?

Os atos podem ser ‘indignos’; o sujeito humano é sempre ‘digno’.

Mas tal continua a ser, porém, insuficiente.

Recordo-me de, há uns anos, ter lido, numa entrevista feita a Bono Vox (vocalista dos U2, numa entrevista a Mischka Assayas) que, por fascinante que seja a ideia de um ‘karma’ em que somos punidos pelo mal que fazemos, o que salva o mundo é, de facto, a ideia de ‘Graça’, que só ao cristianismo poderemos ir buscar.

E é desta convicção que se faz esta reflexão.

Fez-se justiça?

Certamente!

Mas há algo mais a olhar.

Em primeiro, a pessoa da vítima.

Porque a ‘desumanizaram’ (reduziram da sua condição humana) os que ousaram tirar-lhe a vida e esquartejá-lo? Como pode o ser humano ofuscar o seu olhar perante o rosto que clama por clemência? Como pode aceitar preferir a sedução do imediato perante a eternidade da humanidade que nos habita?

As vítimas da história clamam por justiça… Clamam por amor eterno. Clamam e encontrarão, certamente, no regaço de Deus, o aconchego que alguns humanos lhes retiraram…

 

E a pessoa do agressor?

Continua ‘pessoa’, apesar da crueldade dos seus atos.

Recordo, a este propósito, a força da narrativa de ‘A última caminhada’, uma história real (vertida para o cinema, com a excelente representação de Susan Sarandon e Sean Penn) contada pela Irmã Helen Prejean que recorda, no corredor da morte, ao agressor (violador e homicida), Matthew Poncelet, que ele continua a ser Filho de Deus, apesar do hediondo crime que ele deve reconhecer como tal, mas que não lhe retira a sua condição de ‘Filho de Deus’.

«- Já me tinham chamado ‘Filho de muita coisa’, mas nunca de ‘Deus’… »- responde-lhe Matthew.

Só depois de reconhecer a gravidade do seu erro, e a sua condição de pecador, é que Matthew começa o percurso de recuperação da perceção de que não deixou de ser digno e que a sua vida continua a merecer o amor, apesar da maldade que se manifestou nos seus atos.

Compadeci-me…

Compadeci-me, ao vir-me à memória tudo isto, da mulher que matara aquele jovem rapaz. Compadeci-me ao saber que se suicidara porque, nesse ato, percebi o desespero que é a total ausência de esperança.

Como pôde morrer, definitivamente, a esperança?

Porque, certamente, se apagou a consciência de se ser digno, de se ser amado.

Mas Deus é amor

E, por isso, o último encontro entre o agressor e Deus será um encontro de amor.

Mas de que se fará esse encontro?

Recupero uma imagem que devo a uma aluna do Cefam (Centro de formação D. António Marcelino) que, em aula de escatologia, em que eu falava deste último e definitivo encontro entre nós e Deus, o formulava como um encontro de rostos. O nosso será um rosto limpo e levantado, se a nossa vida foi uma vida de amor.

Mas será um rosto que baixará os olhos quando se encontrar, definitivamente, com Aquele que é amor, se a sua vida não tiver estado centrada no amor.

E imagino este encontro entre esta mulher e Deus como um encontro em que se baixarão os olhos. Deus quererá levantar-lhos… Mas deixará ela que eles se ergam?

Regressemos a este tempo que antecede esse definitivo encontro.

Porque deixámos que se apagassem todas as esperanças?

Toda esta história (desde o hediondo crime ao suicídio da sua principal executante) deveria ser matéria para profunda reflexão:

… sobre quão sedutor é possuir! E a quanto estamos disponíveis para fazer em nome dessa posse!

… sobre quão fácil é deixarmo-nos convencer de que o mal é bem!

… sobre como somos manipuláveis e, por isso, quão atentos devíamos estar às estratégias de manipulação!

… sobre como é fácil deixarmo-nos seduzir pelo imediato e apagar o humano que se espelha no rosto do outro!

… sobre como a justiça é só uma parte da análise sobre os crimes e como é muito grande o iceberg de drama humano que se esconde em cada um desses atos que matam e estropiam ou destroem!

… sobre como ser preso devia ser parte de uma história de cumprir uma pena (bem certo!), de uma reabilitação (certamente, também!), mas principalmente, de um refazer-se como humano (principalmente!).

… sobre cada pessoa envolvida num crime (desde as vítimas, aos manipuladores, aos que se deixaram manipular e aos que se enredaram na prática de crimes…) e os dramas em que se enredaram as suas vidas, entre decisões erradas e medos que se acumulam!

E como será importante, por isso, que, no lugar em está cada preso, esteja alguém que lhe diga: ‘tu continuas a ser amado, ainda que não mereça amor o que fizeste!’

Pois Jesus dir-nos-á, naquele encontro definitivo: ‘estive preso e foste visitar-me!’

Ele também morreu na morte que se deu a si aquela mulher…

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