quinta-feira, dezembro 19, 2013

Natal: iniciativa gratuita de Deus


Um dos termos fundamentais de toda a teologia cristã é o de «graça». Graça poderia ser considerada como que a adjetivação de toda a ação divina; definida como gratuita, sem ser devida a qualquer mérito. Apesar desta centralidade da graça, tendemos a ver os núcleos da fé cristã num registo em que a ação divina parece ir a reboque de motivos que parecem colocar a iniciativa divina em segundo plano. Assim aconteceu, ao longo da história, com a interpretação da encarnação de Jesus Cristo. Uma linha teológica, que teve em S. Anselmo o seu máximo expoente, designada como «hamartiocentrismo», colocou no centro de toda a ação divina a reparação do mal feito pelo pecado. A ação de Deus, neste quadro, parecia dever-se, não a iniciativa sua, mas à necessidade de corrigir o que o pecado destruíra. A graça parecia ficar subjugada à força do pecado. O pecado tornava a ação de Deus um dever e não um desígnio de amor. Mais ainda; esta linha de interpretação, que ainda continua muito presente em alguma reflexão cristã, a ação criadora parecia um acontecimento diverso do processo salvífico, como se criar não fosse, já por si, manifestação amorosa de Deus e, por isso, salvação. Na conceção hamartiocêntrica, um era o processo criador, outro o processo salvífico, reduzido à dimensão de redenção. Bem certo que muitos e grandes nomes da teologia se situaram neste registo, porém, a dinâmica bíblica situa-nos noutro quadro. Na verdade, particularmente desde o momento do exílio babilónico, o povo bíblico toma consciência de que o Deus da salvação é, simultaneamente, o Deus criador.

Devemos ao beato e teólogo Duns Scoto, franciscano dos séculos XIII-XIV, reconhecido como «doutor subtil», a pertinência de situar o acento onde sempre deveria ter estado. Não é ao pecado que se deve a ação salvífica de Deus. A encarnação, como expressão máxima da bondade de Deus, não é devida ao pecado, mas ao enorme amor de Deus, que expressa, deste modo ímpar, a gratuitidade da sua ação. Duns Scoto chega a supor que, mesmo que o pecado não tivesse sido originado, desde que o homem é humano, a encarnação continuava a fazer sentido, pois a sua motivação não é, primeiramente, a redenção, mas a manifestação da salvação definitiva que é a participação do amor de Deus.

Esta reflexão pode afigurar-se, para muitos, como uma subtileza teológica, porém, as suas implicações são enormes, se tivermos em conta que a práxis, a ação da Igreja denuncia convicções teológicas. O centro da sua ação deve ser o anúncio do amor de Deus, antes de ser uma proposta moral, mesmo que tal se depreenda. É, aliás, este o registo da perspetiva da moral paulina, designada como moral do indicativo. A moral é um segundo momento, pois o primeiro é o anúncio. Uma tarefa que nem sempre esteve clara, na ação missionária da Igreja, como é bem visível nos relatos da dificuldade com que se depararam os missionários, no século XIX, quando se encontraram perante tribos onde não era clara a noção de «culpa». Porque o centro estava no pecado, o desafio parecia intransponível e o anúncio impossível. Mas, se o centro estivesse no anúncio do amor de Deus, tal dificuldade deixava de fazer sentido.

Este é o centro onde deve colocar-se, em cada Natal, a contemplação do presépio. Ali, não se expressa, primeiramente, um remendo de Deus, mas a iniciativa absoluta do amor que não é exigido por nada. Assim deverá entender-se o adágio paulino de que «onde abundou o pecado, superabundou a graça»., não como quem constata que foi ao pecado que se deveu a força da graça, mas, sim como quem verifica que, antes do pecado, a graça já o era como tal: gratuita. Dizem-no, de modo claro, os místicos: não é por nos sentirmos pecadores que nos aproximamos de Deus, mas antes, perante a grandeza e gratuitidade do amor de Deus que nos sentimos pequenos e frágeis, pecadores.

Se este for o centro, o Natal renovará, em cada um, no hoje da celebração, o reconhecimento de que, como criaturas de Deus-Amor, fomos feitos para o amor. E quando o amor não é o código genético da nossa natureza e ação, então, desumanizámo-nos.

Luís Manuel Silva

quarta-feira, dezembro 04, 2013

Porque falhamos como nação?


Há livros que transformam o nosso olhar sobre o mundo e a nossa leitura dos mesmos factos que nos suscitaram dificuldade de interpretação. Muitas vezes, tal não se deve a grandes teses ou teorias, à complexidade da sua explicação, mas, pelo contrário, precisamente, à sua simplicidade que nos faz reconhecer, humildemente: «como nunca tínhamos pensado nisto?».

Acabo de ler a volumosa obra intitulada «porque falham as nações», editada, em Portugal, pela Temas e Debates. Trata-se de uma obra da autoria de Daron Acemoglu e James Robinson, dois reconhecidos economistas norte-americanos, que, pela sua preciosa documentação e clareza de tese, merece reflexão e reconhecimento dos desafios.

Em virtude da minha formação cristã de matriz católica, sempre intuíra que o falhanço de alguns países, entre os quais se inclui a dificuldade de Portugal em encontrar um rumo, se deveria, não a causa fatalistas, associadas a um qualquer destino pré-traçado, mas a outra ordem de razões que importava descobrir. De facto, a matriz católica sempre recusou uma perspetiva predestinacionista da vida. A vida não está previamente traçada, cabendo-nos apenas como que a função de cumprir o enredo já anteriormente definido. Pelo contrário, a visão católica da vida coloca a existência histórica na confluência entre o chamamento divino e a resposta livre da criatura. A isto se deve a centralidade da ideia de liberdade na conceção católica da história.

Ora, com este pressuposto, faltava-me, porém, compreender porque não eram satisfatórias algumas teorias de matriz determinista, isto é, teorias que atribuem o falhanço nacional a um destino insondável que não vale a pena contrariar. Apesar de muito difundida e vulgarizada entre os portugueses, tal teoria não tinha de ser, de facto, correta. Este é, com efeito, o pressuposto destes dois autores. Logo no início, são denunciadas e recusadas as teorias deterministas, entre as quais, as conceções que atribuem o falhanço das nações a causas geográficas, climatéricas, de cultura ou de teor semelhante. As tão difundidas ideias de que o português é preguiçoso ou de que o subsaariano é desorganizado, por destino e natureza, caem por terra.

Mas importa, então, identificar a causa do insucesso das nações que se pretende que encaixem nestes estereótipos.

A tese destes autores é relativamente simples, socorrendo-se, para a sua validação, da constatação de casos conhecidos em que a simples existência de uma fronteira condiciona, tremendamente, o sucesso de uns e o insucesso de outros. Ora, uma fronteira é um símbolo, uma determinação mental, mas que separa, fisicamente, em duas, comunidades muito próximas. Então, por que razão os de um lado são bem-sucedidos e os do outro não o são? Assim acontece, por exemplo, com o caso de Nogales, uma localidade situada na fronteira entre os Estados Unidos e o México, em que um lado é bem-sucedido e o outro paupérrimo. Do mesmo modo, o Botsuana, um país encravado no enorme território sul-africano, apresenta um sucesso surpreendente se comparado com o dos países envolventes. O seu rendimento per capita é equiparável ao dos países bálticos e muito superior ao de vizinhos como o Zimbabué ou Zâmbia.

A resposta por que aspiramos devemos encontrá-la no tipo de instituições que compõem o tecido social, económico e político do país. Os autores caracterizam estas instituições como sendo de dois tipos: as que acumulam para si mesmas, «esterilizando» tudo em seu redor, designadas como instituições extrativas – não confundir com «indústrias extrativas», pois o termo tem, aqui, um teor ético [Estas podem ser o Estado concentracionista ou os monopólios capitalistas]; e as que asseguram a convivência da diversidade e da multiplicidade, promovendo as oportunidades que são designadas como instituições inclusivas. Uma tese com semelhanças com a de David Landes, que, no seu livro «a riqueza e a pobreza das nações» sustenta que é na capacidade de assegurar a pluralidade que se criam as condições para o sucesso dos países, atribuindo este autor o insucesso de Portugal à decisão manuelina de expulsar os judeus que conduziu a uma uniformização de modelo, diminuindo o pluralismo nacional.

Segundo os autores que vimos acompanhando, a adoção de instituições extrativas ou inclusivas ocorre em momentos decisivos das nações, designados como «conjunturas críticas», em que se tem de fazer escolhas, perante a possibilidade de ter de proceder ao que eles designam como «destruição criativa», isto é, a superação de determinadas opções mais extrativas por outras mais inclusivas, o que pode comportar perdas, bem certo. É o receio destas perdas que suscita medo da mudança. É particularmente referido como exemplificativo deste momento o que ocorreu em Inglaterra, em 1688, quando a chamada revolução gloriosa retirou o poder absolutista ao rei, conferindo-o ao parlamento, decisão que favoreceu a emergência da revolução industrial naquele país e não em qualquer outro.

A clareza desta tese dificilmente poderia ser mais oportuna para o caso português. Vivemos numa circunstância que poderíamos designar como «conjuntura crítica». Uma oportunidade para transformar, mudar, assegurar o pluralismo de oportunidades, em vez de concentrar em poucos (sejam o Estado, sejam monopólios capitalistas) aquilo que deve ser benefício de todos.

Sendo uma tese de base económica, os desafios éticos são evidentes. O princípio do bem comum, central na doutrina social da Igreja, complementado pelos de solidariedade e de subsidiariedade (que reconhece à sociedade competências que não têm nem devem ser sempre asseguradas por monopólios estatais ou privados) deverá ser recuperado para a centralidade da discussão sobre os motivos das nossas escolhas.

domingo, outubro 27, 2013

O poder de quem perdoa

Na lógica de poder em que parece assentar a nossa sociedade, quem é forte e exerce sobre os mais frágeis a sua violência julga-se vigoroso e possuidor do maior poder. Contudo, um olhar mais atento constatará que, após o exercício da violência, quem detém o poder é o agredido. Não apenas num plano moral ou religioso. Se olharmos com cuidado, o agredido tem o poder mais vigoroso de permitir a reconciliação do agressor com a sua própria consciência. Se o agredido não perdoar, de nada valerá o desejo da reconciliação.

Ilustro esta minha constatação com uma história real, que ouvi contar ao coordenador nacional da pastoral penitenciária, Pe. João Gonçalves, que a terá ouvido de um membro da pastoral penitenciária brasileira. Em certo Estado brasileiro, ocorreu um assassinato de que resultou a detenção e punição do assassino. A mãe da vítima, feito o luto da morte do filho, convenceu-se de que o seu sofrimento de mãe não era o único sofrimento materno que aquele assassínio provocara. De algum modo, também a mãe do assassino do seu filho sofreria violentamente, pois – afirmava a mãe da vítima - nenhuma mãe cria um filho para o tornar um assassino. Firme na sua convicção, encontrou-se com a mãe do assassino do seu filho, a quem manifestou que, no seu íntimo, lhe tinha perdoado e, por isso, partilhava com a outra mãe a tranquilidade que aquele perdão gerava em si mesma. O perdão gerou laços entre as duas famílias que, após descobrirem partilhar a mesma fé, se encontraram, na prisão, por altura da Páscoa de um desses anos.

Sem o perdão, nenhuma daquelas mães encontraria descanso, sossego e tranquilidade de alma, pois a ofensa, quando não perdoada, encarrega-se de devorar o ofensor e o ofendido, destruindo o seu íntimo.

O desafio cristão de perdoar setenta vezes sete, expressão semítica com que se pretende referir o sem-limite, é, para além de um enorme repto de teor religioso, em si mesmo uma manifestação de profunda leitura do íntimo humano. Quando há ofensa e não ocorre o perdão, todos perdem e jamais se encontra a paz.

Desta certeza se dá nota num dos mais belos filmes da história do cinema, a «Lista de Schindler», num densíssimo diálogo entre o bondoso Schindler e o demoníaco Amon, chefe de um dos mais tristemente célebres campos de concentração, o de Płaszów. Vale a pena recordar o diálogo.

Diz Amon, já ébrio, a Schindler- «Sabes? Olho para ti. Observo. Nunca estás bêbado. Isso é verdadeiro controlo. Controlo é poder. Isso é poder.»

Faz-se silêncio. Um silêncio denso, de quem está a procurar a verdade.

Schindler quebra o silêncio com uma pergunta.

- «É por isso que nos temem?» - Referia-se aos que padeciam as atrocidades dos nazis, nos campos de concentração.

 Amon responde, com crueldade: - «Temos o poder de matar. É por isso que nos temem.»

Schindler riposta, usando, primeiramente, a linguagem que Amon entende, para, depois, o levar onde pretende.

- «Temem-nos porque temos o poder de matar arbitrariamente.

Um homem comete um crime. Não o deveria ter feito. Mandamo-lo matar, e sentimo-nos muito bem por isso. Ou matamo-lo com as nossas próprias mãos e sentimo-nos melhor. (Schindler refere-se, aqui, à crueldade do próprio Amon e não a si mesmo) Contudo, isso não é poder. É justiça. É diferente de poder. Poder é quando temos todas as justificações para matar… e não o fazemos.»

Amon, surpreendido e desarmado, pergunta: - «Achas que isso é poder?»

Schindler responde-lhe com a linguagem que Amon entende: - «Era o que os imperadores tinham. Um homem roubava uma coisa, era levado perante o imperador… Atirava-se ao chão, implorava misericórdia. Sabe que vai morrer. E o imperador perdoa-lhe.»

 Amon já não entende nada: - «Acho que estás bêbado.»

 Schindler remata: - «Isso é poder, Amon. É poder.»
Na verdade, estou convencido de que este é, de facto, o maior poder que possuímos. É o poder de dar nova vida a quem sente que não merece desculpa, mas encontra, no perdão do outro, uma nova oportunidade. E a vida rejuvenesce.

Quão diferente seria o mundo se o poder que vigorasse fosse esse e não a ilusão do domínio do outro! Há ofensas difíceis de suportar, bem certo, como ilustra a história verdadeira acima contada, mas não aceitar perdoá-las duplica a sua agressividade, pois destrói, no íntimo, o humano que há em nós. Perdoar é uma força que permite olhar, de frente, o mal e destruir-lhe o seu poder demolidor. Já assisti à reconciliação de uma família desavinda há trinta anos porque o ofendido aceitou o pedido de perdão de quem ofendera… e todo o tempo de não perdão ficou com tons de tempo perdido. É por isso que vale a pena ousar exercer este poder de perdoar… Para ganhar o tempo. Para ganhar tempo!

quinta-feira, outubro 10, 2013

«Anda lá, anda lá»

«A partida definitiva de pessoas que amo ou admiro, bem como daquelas que não se vê quem as possa substituir, deixa-me sempre bloqueado e a ruminar a dor que me vai dentro. Por vezes, sinto vontade de escrever, de dizer, de gritar. Mas tenho medo das palavras, de tal modo elas descoram os sentimentos e atraiçoam o que dizemos na dor.»
Recolho de «a vida também se lê» palavras que tomo como minhas para prestar ao seu autor, D. António Marcelino, a minha homenagem de quem sente a unidade infinita de corações.
Para os que o conheciam, é sabida a sua impaciência perante a acomodação e o quietismo. «Anda lá, anda lá», eram as suas palavras de irrequietude contagiante. Com a sua passagem, nada podia continuar como dantes... Com a sua passagem pela nossa diocese de Aveiro, nada poderá continuar como dantes. Ainda não soubemos honrar, definitivamente, o dom que foi termos um Bispo que soube ser pioneiro: o sínodo geral e parcial (de jovens), o incentivo aos ministérios laicais, ao diaconado permanente, à formação, através do Iscra, a coragem de estar e permanecer onde outros não ousavam sujar os pés, a sinceridade de quem desarma. O tempo fará justiça por, talvez, em vida, ela não ter sido a devida. E a justiça passará por sabermos amar os nossos pastores e, neles, toda a Igreja, a começar pelos seus mais frágeis.
Muito ficou por falar, D. António, mas, agora, une-nos a comunhão dos santos.

quarta-feira, outubro 02, 2013

«l’État» somos nós


O momento de eleições é sempre um excelente pretexto e contexto para refletirmos sobre como nos vemos enquanto sociedade. Se como mera soma de indivíduos ou se como uma autêntica comunidade, se como uma mera convergência de interesses ou se como uma comum unidade de história e cultura, em dinâmica de construção coletiva para um futuro melhor.

Tendo sempre para o segundo fator de cada um destes binómios, mas reconheço-me, muitas vezes, quase ultrapassado pela realidade, que parece teimar em impor-me que já não há lugar para esperanças e ideais. Mas, como me apraz repetir, posso não mudar o mundo, mas espero morrer com a consciência tranquila de que tentei fazer a minha parte.

A frase que serve de título a esta reflexão partilha autorias. No seu original, atribuído ao Rei-Sol, Luís XIV, pronunciada, muito provavelmente, em 1655, a frase dizia «l’État c’est moi» (O Estado sou eu) como manifestação do despotismo iluminado, que encontrou a sua expressão máxima, entre nós, em D. João V, em D. José e no seu ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, que ficou para a história como Marquês de Pombal. O Estado parecia confundir-se com uma pessoa, o que o tornou uma entidade distante e pouco geradora de simpatias e cumplicidades.

O tempo passou, mas as marcas dessa visão do Estado permanecem. O Estado continua, para muitos, a ser uma entidade longínqua e distante, algo abstrata. Tal visão, acrescida da carga totalitária mais recente com que determinados movimentos quiseram conotá-la, tem favorecido a perda daquele que deveria ser o sentido genuíno e ético do Estado moderno, que pretendo consubstanciar na nova formulação da afirmação: o Estado somos nós. E temos a particular sorte de estarmos num momento em que já se distanciam no tempo as conotações ideológicas e revolucionárias que poderiam trazer carga pejorativa à afirmação quase panfletária. Esta frase, dita, há cinquenta ou sessenta anos, poderia conotar-se com os ideais totalitários de algumas revoluções marcadamente ideológicas e pouco disponíveis para uma reflexão tranquila e serena como a que nos propomos fazer, agora. Conceção nada coincidente com a nossa visão do que deva ser o Estado e de como deva relacionar-se com a sociedade civil. Sou devedor, pelo contrário, da perspetiva cristã que sustenta que esta relação entre Estado e sociedade deve reger-se pelo princípio da subsidiariedade, que defende, desde Pio XI, na sua encíclica «Quadragesimo Anno», que, se uma estrutura mais próxima das pessoas pode garantir as respostas justas, não deve ser uma instância superior a fazê-lo. Neste registo, o Estado deve ser o garante de que a sociedade funciona e se baseia em valores estruturantes, sem, porém, ocupar todo o espaço que cabe à mesma sociedade. De outro modo, seria um Estado totalitário.

Concluir que o Estado somos nós é, neste momento, um repto fortíssimo, pois, se o Estado somos nós, de facto, o que a todos diz respeito por todos deve ser tratado com cuidado e especial dedicação. Tal afirmação exige uma outra atitude da parte de todos. Uma atitude que comece por compreender que dizer «Estado» não é o mesmo que dizer «governo», pois deste se espera que faça a boa gestão daquele, ainda que aquele o transcenda. Feita esta aclaração, decorre daqui uma exigência sempre nova: a de que cada um compreenda que o que é de todos a todos deve pertencer e por todos deve ser bem tratado. Uma exigência que é, primeiramente, ética, moral. A de cada um contribuir com o que é devido para que, na hora de beneficiar, receba o que é de direito. Verifica-se, porém, que, como se fosse reminiscência daquela visão distante do Estado, cada cidadão parece mais apto a exigir o que é de direito do que a cumprir o que é devido. Tal posição desequilibra a balança da relação, pervertendo-a.

Se se pretende maior lisura da parte dos políticos ela deve verificar-se, também, entre os cidadãos. Aliás, é importante notar que a política não é um exercício de alguns, mas, originalmente, a condição de quem vive em sociedade, na cidade (em grego, pólis). A cidadania é, aliás, uma outra forma de dizer esta mesma condição (em latim, civitatem, de que vem «cidadania», quer dizer «cidade»). Como podem pretender reivindicar mais moralidade entre os «políticos» aqueles que fogem à sua obrigação de pagar os impostos devidos, com mentiras sobre a sua real condição, agindo fraudulentamente para com todos, muitas vezes com o argumento de que sobre a sua vida privada nada têm a ver os outros? Como vivemos em sociedade, todos os nossos atos têm repercussões coletivas, pelo que devem ser bem refletidos.

A este propósito, Camões dizia que «o rei fraco torna fraca a forte gente», porém, o contrário também é verdade. Se «a gente» está na mentira, pactua mais facilmente com a mentira de quem gere a coisa pública. Merecem reflexão, neste contexto, os números recentemente publicados por um estudo feito pela faculdade de economia do Porto que referem que existirá uma economia paralela correspondente a cerca de 26% do PIB, perfazendo um volume de mais de 44 mil milhões de euros. Números que devem fazer refletir. Se o Estado somos nós, como podemos estar-nos a fazer isto?

É certo que os incentivos vão em sentido contrário. Parece ser mais compensador dizer-se a inverdade de que não se está casado quando até se está, como se tal pudesse ser uma legítima estratégia de gestão fiscal, sendo, afinal, um modo imoral de escapar ao dever de pagar impostos. Casar parece ser, em termos fiscais, mais penalizador do que não se estar, matéria em que o Estado dá, ele mesmo, um sinal perigoso para a sua própria sustentabilidade futura. Ou afirmar que se tem um rendimento inferior pois - diz-se - o dinheiro dos nossos impostos «vai sempre para os mesmos». Ou tantas outras estratégias dissimuladas usadas para abafar a consciência.

Se não ousarmos combater esta ideia tão enraizada de que o Estado seja um alvo longínquo a abater, em vez de o entendermos como a organização necessária da sociedade, será difícil que o próprio Estado não avolume a sua desconfiança em relação aos próprios cidadãos, sinal que vem, também, sendo dado e motivador de particular preocupação. É esta confiança que serve de base à ideia da presunção da inocência até prova em contrário. Tal princípio não se pressupõe nas ditaduras. Se os cidadãos não fizerem tudo para manter essa confiança, poderão estar a reunir as condições para que regimes desconfiados tomem conta dos seus destinos. Vale a pena o sacrifício, para que possamos continuar a dizer que «l’État» somos nós.

sábado, agosto 24, 2013

Sobre a deficiência - «o silêncio dos inocentes»


Se, para nós, for claro e evidente o caráter sagrado da dignidade humana, há comportamentos que jamais nos admitiremos por nos sabermos interiormente obrigados ao dever de respeito inviolável pela outra pessoa. Mas tal não diminui a dureza nem atenua o desafio que tal decisão comporta. Um pai ou uma mãe, que se deparam com a notícia da possibilidade de o seu filho, que se gera no ventre materno, ser portador de uma malformação grave, vivem uma dor solitária sobre a qual vale a pena refletir. Uma dor com que convivi, no período de gestação dos meus dois filhos. Em relação a ambos recaiu, desde as primeiras semanas de gestação, a probabilidade forte de serem portadores de Trissomia 21, uma doença vulgarmente conhecida como «mongolismo» e que debilita fortemente a autonomia da pessoa, além do preconceito social que sobre esta doença recai. A decisão de não proceder a amniocentese, pelas possibilidades acrescidas de aborto espontâneo e pela inutilidade prática da intervenção - pois desde sempre nos entendemos devedores à vida e interiormente decididos a respeitar cada filho nascituro - favoreceu a ansiedade até ao momento do nascimento. Mas tal fez-nos viver a experiência densa do desafio que a deficiência comporta, pessoal e coletivamente.

A deficiência é marca definidora da condição humana. Mas ganha particular notoriedade em alguns de entre nós. É, porém, pela sua singularidade, nesses de entre nós em quem é mais visível a condição a que todos pertencemos, que julgo dever-se olhar atentamente para o seu significado. Não sou dos que entendem que seria ideal uma sociedade sem deficientes. Repugna-me, até, imaginar como se chegaria aí. Foi a intenção de tantos ao longo da história, cuja lição deverá continuar muito viva nas nossas memórias. O erro desses e de tantos de hoje está, precisamente, em presumir que a deficiência seja uma condição de inutilidade. Nada mais enganador. Na verdade, estou certo de que a deficiência mais visível de alguns é sinal para todos da nossa comum fragilidade, da nossa comum vulnerabilidade. Uma sociedade que já não é capaz de se reconhecer nos seus mais frágeis e que os abandona, abandonando, com eles, os seus cuidadores, é uma sociedade que tem tudo para se desumanizar, esquecendo que a condição humana é a da fragilidade, não a da invulnerabilidade. Expresso, neste momento da minha reflexão, uma sentida homenagem aos muitos cuidadores silenciosos que conferem amor à condição deficiente, aos muitos que, desde a minha juventude, pude ir conhecendo em experiências de voluntariado que fiz, na Vagueira e Figueira da Foz, em colónias de férias desenvolvidas pela ASBIHP e pelo Hospital de Alcoitão, e na mais próxima e longa relação com a inexcedível comunidade dos membros da APCDI que, no concelho de Sever do Vouga, vem contribuindo para se transformar a imagem da deficiência. Não tenho dúvidas de que é o trabalho discreto, mas paciente e frutuoso, destes muitos cuidadores, que vem contribuindo para que se modifique a imagem ainda tão encravada na mente de muitos de que a deficiência seja uma maldição ou um castigo. Ela é, sim, um desafio a que nos humanizemos todos.

Diante disto, o repto é claro e foi-me particularmente pungente nestes meses que antecederam o nascimento do meu segundo filho, uma menina. Não se pode viver, sozinho, a deficiência de um filho. É um dever de sociedade acolher os seus mais frágeis e assegurar as melhores condições para que sejam humanamente felizes, qualquer que seja a sua condição. É, ainda mais, um dever de Estado. Para que serve, afinal, um Estado, se abandona os seus mais débeis cidadãos e os entrega, unicamente, à singularidade de uma decisão sobre matar ou deixar viver, como se nessa irrevogável decisão se garantisse a liberdade suficiente para se poder considerar um Estado de consciência tranquila? É, por fim, uma voz que deve incomodar a própria comunidade dos crentes. Nas horas que antecederam o nascimento da minha filha, muitas vezes me interroguei sobre a resposta de Igreja para os pais a quem é dada a notícia de uma deficiência grave e permanente nos filhos. Uma matéria sobre a qual valerá a pena refletir. Onde está, nessa hora, a presença solícita com a palavra de salvação e de esperança? É um momento denso que se constitui como desafio, como interpelação à incomodidade. Esses pais que, diante de tal notícia, se agigantam como reais heróis, necessitam da capa da proximidade, do elixir da certeza de que não caminharão sozinhos, pois a comunidade a que pertencem, por serem destinatários da salvação que veio para todos pois para todos veio o Salvador, estará ao seu lado e não os deixará sucumbir ao desespero. É uma hora densa que necessita do fragor de um abraço cuja intensidade não diminua com o passar do tempo.

Sei que as palavras não diminuem a dor dos que, em cada dia, rotina após rotina, sem aparentes retornos, se dedicam a um filho cujo amanhã parece ser continuar a sofrer, mas não posso deixar de recorrer à força que as palavras ainda têm para inquietar, para incomodar, para contribuir para unir corações. A verdadeira compaixão é, na sua origem, a unidade íntima no sofrimento, é sofrer com o outro. Para isso deverão servir as minhas palavras: para despertar os que possam andar mais distraídos. Temos, entre nós, verdadeiros heróis, que, no seu silêncio, constroem a sociedade mais humana que desejamos, mas que, quando chega a hora de a tornar real, queremos perfeita como não são os humanos. Porque os humanos são, por definição, imperfeitos. Disso nos dão consciência vívida os portadores de deficiências: eles falam-nos da verdadeira humanidade. Não da que andamos sempre a idealizar, mas da real, que é feita de pequenas superações. Se a deficiência fizesse mais parte do nosso quotidiano, as pequenas conquistas teriam maior reconhecimento.

segunda-feira, julho 29, 2013

O desafio de Francisco

É sabido que, na escolha do seu nome, cada Papa (Pai) afirma como que um programa para o seu pontificado. Assim ficou claro com os antecessores do Cardeal Bergoglio que, enquanto Bento, João, Paulo ou João Paulo, pretenderam situar-se na senda dos que ostentaram cada um destes nomes. Ao escolher o nome de «Francisco», o cardeal que foi trazido quase do fim do mundo definiu as marcas que se tem provado pretenderem, desde a primeira hora, marcar o código genético do Pontificado. Na verdade, é difícil encontrar nome de santo que suscite, no imediato, tanto apreço e cumplicidade junto de todos e cada cristão. Nele se reconhecem a coragem, o humor, o desprendimento, a coragem, o desejo de reformar a Igreja de Jesus. Um desejo que, nas ruínas da destruída igreja de S. Damião, em Assis, se expressou através de uma voz em que Francesco Bernardone reconheceu o desafio de Jesus Cristo: «Francisco, não vês que a minha casa está em ruínas? Vai reconstruí-la.»
A densidade deste nome é tal que os próprios brasileiros decidiram atribuí-lo àquele que é conhecido, entre eles, como o rio da unidade nacional: S. Francisco. Quando o ouvi anunciado, na tarde de 13 de março de 2013, a surpresa que o seu significado fazia emergir e o desconhecimento sobre quem seria o cardeal eleito fizeram-me duvidar se outros não seriam os Franciscos aludidos: Francisco de Sales? Francisco Marto? Francisco Xavier? Quereria dar um sinal sobre a importância da educação (São Francisco de Sales é o patrono dos salesianos), sobre o seu sentido mariano (Francisco Marto) ou sobre a nova evangelização da Ásia (S. Francisco Xavier é considerado o «apóstolo do oriente»)?
Mas o sentido era o que a primeira surpresa parecia denunciar. A hora era de reforma, de reconstrução da igreja. Uma reforma que começa por fazer-se pela capacidade de surpreender, quer pelo humor, quer pela simplicidade e humildade. Aliás, não será sem sentido ver proximidade etimológica entre «humor» e «humildade». Só se ri de si quem tem a capacidade de se reconhecer no seu limite. Recordo, a pretexto disto, uma cena de humor que é contada pelo grande Chesterton (um inglês de inícios do século XX, convertido ao catolicismo cuja leitura devia ser obrigatória, tal a sua genialidade) na biografia que ele publicou sobre «S. Francisco de Assis e que retrata belissimamente muito do comportamento cristão necessitado de reforma. Conta Chesterton que um certo bispo se queixava de que um não-conformista [reformador dentro da Igreja Anglicana nos séculos XVI-XVIII] chamava “Paulo” ao Apóstolo em vez de o tratar por “São Paulo”. E acrescentava o bispo: “Podia ao menos tratá-lo por Sr. Paulo”.
Esta é a familiaridade que Francisco, o Papa, parece pretender trazer para o seio da Igreja. Uma familiaridade e humildade que temo que muitos estejam a pretender confinar à cúria romana, necessitada, seguramente, de uma «eminentíssima reforma» (para usar palavras do nosso Frei Bartolomeu dos Mártires, que João Paulo II elevou aos altares, fazendo-o beato). Na verdade, muitos parecem continuar a não reconhecer que quando dizemos que a Igreja necessita de reforma é a toda a Igreja que tal se refere. Toda inclui todos e cada um dos cristãos. O estado de permanente renovação e conversão é condição cristã. Estamos sempre na tensão do «já» e «ainda não», essa dinâmica que, sendo marca da escatologia cristã, face às outras escatologias, expressa o ADN do ser-se cristão. Não é só Roma que necessita de reforma. Quantas comunidades continuam presas a supostas tradições que impedem que se renovem os caminhos? Quantos cristãos ameaçam bater com a porta só porque não é feita a sua vontade? Quantos de nós continuamos a pretender uma Igreja à nossa medida, como se fôssemos nós mesmos sacerdotes autoinstituídos? A Igreja necessita daquela verdadeira reforma em que se reconhece, toda ela, não o fim para onde todos devem caminhar, mas, como diz a oração publicada em 1916 e designada como oração de S. Francisco, «o instrumento da paz» de Jesus Cristo. É este o desafio de Francisco: devolver o centro àquele que o deve ocupar.

terça-feira, junho 25, 2013

Do «terrível fado» à responsabilidade…


O mundo da educação, aquele onde fermenta a minha vida quotidiana, está, muitas vezes, marcado por uma espécie de fatalismo que, frequentemente, me provoca a interrogação sobre onde ficará a liberdade e a responsabilidade pessoal. São tantas as razões invocadas para justificar o insucesso e a tibieza que parece ficar sumida a pessoa numa tempestade invencível de causas, de tal modo que o ser humano sobre quem recai o olhar se torna uma mera vítima, onde a condição de pessoa é uma miragem. Não posso deixar de sublinhar que revejo, neste fatalismo, uma espécie de reminiscência do destino trágico que definia o enredo do teatro grego, onde o herói mais não era do que uma vítima da moira, do fatum (de que vem o nosso «fado»), essa força incontrolável, que o encaminhava, sem contradição, para o fim previamente definido. Contemporaneamente, o grande Gabriel Garcia Márquez, escritor colombiano de renome mundial e vencedor do Nobel da literatura em 1982, recuperou a mesma ideia na sua «crónica de uma morte anunciada», uma espécie de versão sul-americana do «processo» de Kafka. O homem, em todos estes palcos, não é livre, não tem capacidade de romper com um destino predeterminado que ele apenas cumpre.

Ora, tal não é, nem poderá ser, a visão católica sobre a vida humana. É sabido que o protestantismo, em virtude da forte influência nominalista que recebeu, via Guilherme d’Ockham, não dispensou esta visão, que é mais vincada, porém, no calvinismo do que no luteranismo. E compreende-se porquê. A intenção de reconhecer apenas a Deus a origem da salvação humana (também o Catolicismo afirma a iniciativa de Deus, contudo) assegurava-se sumindo o papel do homem. Restava, então, atribuir a uma libérrima e inacessível vontade divina o conhecimento sobre o destino de cada um. O contributo efectivo da pessoa humana ficava, assim, silenciado. (Uma atitude genuinamente ecuménica não poderá, contudo, deixar de ter a sabedoria de colher, do protestantismo, esta condição de acolhimento gratuito dos dons de Deus e, do catolicismo, este movimento não fatalista, em vez de se fixar nos limites e extremos de uma e outra opção).
 
Não deverá, insisto, ser essa a leitura católica. Mesmo que as circunstâncias façam crer que se é vítima de um destino pré-traçado, a que nada pode opor-se, importa confiar que não é assim e que o homem é aquele com quem Deus fala «como a amigo», como refere a Dei Verbum 2.

Ilustro estas afirmações com uma história verdadeira, contada por Tim Harford, no seu recente livro de título sugestivo: «adapte-se: o sucesso começa sempre pelo fracasso».

É a história de um rapaz, nascido em 1937, em Verona, na Itália, de nome Mario Capecchi (lê-se «Mário Capéqui»). Uma história que tinha tudo para o enredo de uma tragédia de Sófocles. Ou quase tudo… Com pouco mais de 3 anos, Mario vê a sua mãe ser-lhe tirada, às mãos de soldados nazis que a levam para um campo de concentração, ficando com o seu pai, um homem violento, de quem não guarda memória de sinais de amor. Durante cerca de um ano, a vida de Mário divide-se entre a agressividade do pai e as fugas de casa, oportunidade para se refugiar na rua, onde pretendia sumir-se à violência paterna. Como recorda Tim Harford, citando o próprio Mario, «por entre os horrores da guerra, talvez a coisa que, enquanto criança, me tenha sido mais difícil de aceitar fosse ter um pai que era violento comigo». Por volta dos seus quatro anos e meio, perde o pai, vítima de um ataque aéreo, iniciando-se, aqui, um período de cinco anos em que a sua vida se faz de orfanato em orfanato, cujas condições eram terríveis: «não havia cobertores nem lençóis, as camas eram postas lado a lado, e não havia nada para comer excepto uma côdea de pão e uma chávena de chicória.». Aos nove anos, reaparece a mãe, irreconhecível, após cinco anos passados num campo de concentração. Leva-o para a América… Em 2007, Mario Capecchi recebe o prémio Nobel da medicina, por investigações na área da genética.

Num registo fatalista, a vida de Mário Capecchi teria redundado numa história de marginalidade e tristeza. Um outro registo, feito de responsabilidade pessoal, de reconhecimento de que a história se realiza no encontro entre Deus e o Homem, e não como mero cumprimento de um destino pré-traçado, permite vislumbrar sentido e conferir sentido ao que parece ser antecâmara para o abismo.

Quantas mensagens e desafios se ocultam nesta história real, nestes tempos em que a tentação de invocar o «terrível fado» parece aquietar e acomodar, como que esperando que a resposta surja espontaneamente! O Cristianismo é, porém, desafio de encarnação, isto é, de assunção de que se não se encarnar a condição humana, algo ficará por fazer… Por paradoxal que pareça, a acção de Deus não se fará sem a resposta comprometida dos humanos. Deus é espírito, sopro, não «furacão».

sexta-feira, maio 24, 2013

Sobre a coadoção de crianças por «casais» do mesmo sexo - Todos os desejos são direitos legítimos?

Muitos estão convencidos de que o que muda o mundo é a ação. E não estarão totalmente errados, desde que não seja esquecido o facto de que o homem, enquanto animal racional, age movido por ideias. A ação é como que a planta que germina porque se adubou, previamente, a terra. O adubo são as ideias, a terra fértil, durante muito tempo silenciosa e discreta, à espera do momento oportuno.

Vem isto a propósito das decisões que se vêm tomando sobre matérias concernentes à família. Muitos estão convencidos de que elas são espontâneas e imparáveis. Mas a verdade é mais profunda do que esta superficial e imediata conclusão. Terá de se procurar entre as ideias preconizadas em livros que repousam sob a capa de séculos de pó. Ideias que alguns, poucos, leram, mas que muitos repetem até à exaustão e que vão fazendo «cultura». Vale a pena recordar, aliás, que «cultura» é um particípio futuro latino que quer dizer, precisamente, «as coisas que serão cultivadas e colhidas». As ideias germinarão no futuro. É isso a cultura.

Ora, estou convencido de que teremos de recuar até meados do século XVII para encontrar a terra adubada em que germinaram as condições necessárias para que, tantos séculos decorridos, se achasse legítimo o que, em verdade, não o será mas tem todo o aspeto de o ser.

Thomas Hobbes defende, no seu livro «leviatã», publicado em 1651, que «todos os homens têm direito a tudo». Esta é a obra que tornou tristemente célebre a afirmação de que «o homem é lobo do homem», fazendo assentar a sociedade, não sobre o respeito de uns para com os outros, mas sobre o conflito. Para a nossa análise interessa mais, porém, recordar o alcance da ideia de que todos têm direito a tudo. A base do direito, para Hobbes, não terá de se encontrar na dignidade da pessoa, mas no seu desejo. O que se deseja é um direito.

Tal identificação pareceria, num primeiro momento, encantadora porque encantatória, mas não passa, numa segunda análise, de uma pura falácia, pois, se é certo que os direitos correspondem a desejos legítimos profundos, nem todos os desejos podem, contudo, configurar-se como direitos.

Veja-se, a título ilustrativo, a atual discussão sobre o direito à adoção, reivindicado pelos pares homossexuais. A interrogação peca, no imediato, por escolher como ponto de partida para a discussão uma referência que não é a ajustada. Na verdade, em rigor, não são os pais que têm direito a ter filhos, mas os filhos que têm direito a um pai e a uma mãe, entendido como superior interesse da criança, como estabelece a convenção dos direitos da criança (1989). Para além disto, o facto de se ter desejo a ser pai ou ser mãe não se configura, no imediato, como direito absoluto, pois é sabido que muitas são as circunstâncias em que o Estado, no exercício legítimo dos seus deveres, pode suspender o exercício da tutela paternal e maternal, na defesa dos direitos dos filhos.

Mais ainda, restará saber se pode considerar-se que uma determinada estrutura jurídica que não reúne os elementos formais e materiais de uma outra figura jurídica pode assumir as funções desta última. Sendo mais claro. Será que o casamento, enquanto estrutura essencialmente heterossexual, na qual se deposita a legítima expectativa de poder assegurar o nascimento de descendentes, pode ser assumida, nas suas funções, por uma outra estrutura não heterossexual? A resposta é evidente, ainda que não se queira ver.

Acrescente-se, por fim, que são muitos os que invocam o direito positivo registado na declaração universal dos direitos humanos para legitimar o reconhecimento dos eventuais direitos dos homossexuais a adotar crianças. Também aqui as falácias e suposições de que estará escrito o que, de facto, não está, são muitas. Na verdade, a declaração preconiza um modelo de família claro. Veja-se o que diz o artigo 16º: «1. A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião.» Muitos poderão dizer: mas, em rigor, não se estabelece aqui a reciprocidade entre homem e mulher que seria definidora da ideia de uma estrutura heterossexual! Contudo, no mesmo ponto 1, diz-se, ainda: «Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direitos iguais.» Este «ambos» define uma reciprocidade que não deixa margem para dúvidas.

A esta luz, só de forma artificial e ideológica, assente na ideia hobbesiana de que o que se deseja é um direito, é que se poderá continuar a sustentar a legitimidade da adoção pelos pares do mesmo sexo. Bem certo que a lei da adoção apresenta uma fragilidade que parece não ser compaginável com o superior interesse da criança: a possibilidade de adoção por uma só pessoa. É estranha esta possibilidade que, agora, é utilizada como forma de entreabrir possibilidades para a co-adoção.
Neste quadro, valerá a pena deixar a pergunta sobre os motivos pelos quais se preconiza o direito dos homossexuais a adotarem e não se refere o mesmo aos bissexuais, por exemplo. É certo: lá chegaremos, mas pretende-se que o percurso se faça de forma indolor. A sociedade vai sendo insensibilizada, de forma progressiva. Admitir esse direito para os bissexuais seria abrir a porta para a poligamia, à qual a sociedade não está ainda recetiva. Mas os tempos tornar-se-ão propícios, pois assim se tornaram, também, para outras matérias.
Importa perceber que esta posição não visa preconizar qualquer tipo de discriminação. Na verdade, discriminar é impedir o acesso a algo legítimo. Seria ilegítimo, por exemplo, o acesso a um lugar de emprego, a uma tarefa concreta, com base na interrogação sobre este tipo de matérias. Não será, porém, discriminar não reconhecer a um desejo a condição de um direito pelo simples facto de que esse desejo não é compaginável com a natureza da estrutura jurídica a que se quer fazer corresponder o desejo. O facto de eu desejar um bem que é de outro não confere a esse desejo a condição de direito, isto é, por eu desejar o que é de outro não me torno seu proprietário. Mas para muitos é mesmo assim!



quarta-feira, abril 17, 2013

Religiosidade em tempos de crise



Não há como ocultar. Quando a crise toma conta das nossas vidas, a religiosidade assume uma visibilidade que parece ofuscar-se nos momentos de opulência e fortuna. A coincidência tem dado a muitos argumento para defenderem que, sendo assim, a religião (que é identificada, de forma simplista, com estas manifestações) não é mais do que uma resposta à necessidade humana de sossego e aquietação, contribuindo para a distração em relação ao que é a sua identidade, gerando, assim, aquilo a que chamaram «alienação». Por esta caraterística, defendia-se então que a religião distanciava o Homem da sua própria identidade e essência, alheando-o do que ele próprio era. Foi o que entenderam muitos (Feuerbach, Freud, e tantos outros) no século XIX e continuam a defender tantos outros ainda nos nossos tempos. Contudo, não há que ceder, tão facilmente, a esta tentadora argumentação.
Em primeiro lugar, importa separar os conceitos que, sem precisão utilizámos no primeiro parágrafo: os de «religiosidade» e de «religião». Por religiosidade, deveremos entender todas as manifestações, de origem popular, que, sem preocupação de rigor e coerência, expressam as vivências de um determinado povo acerca do sublime e do inominado; são expressões mais ou menos espontâneas acerca daquilo a que Rudolf Otto chamava o «santo», e que desperta na humanidade «atitude de temor e tremor». A religião, por seu turno, sendo uma resposta à interpelação do divino, configura-se de modo coerente e estruturado, em constante dinamismo de autocorreção. Poderíamos, sem mais cuidado, dizer que entre a religiosidade e a religião existe uma relação semelhante à que existe entre o diamante bruto e o polido.
Ora, sendo certo que tal definição nos ajuda a distinguir, desde já, âmbitos diversos, mantém, porém, a validade da interrogação inicial. Em situações de crise, não é apenas a religiosidade que se torna mais «exuberante». Também a religião avoluma a sua presença coletiva. Tais factos devolvem-nos a pergunta. A que se deve tal fenómeno?
Sou dos que não partilham da resposta que dera o século XIX e o próprio século XX. A relação entre o crescimento pessoal e sociológico da religião e as crises não se deve à natureza alienante da religião, mas pelo contrário, na minha perspetiva, devido ao facto oposto. A opulência, a fortuna são, sim, a causa da verdadeira alienação humana. A natureza do homem é intrinsecamente frágil. A fragilidade é um traço definidor do que é a humanidade. Aliás, «humano» vem de «húmus», terra, tal como «adão» provém de «adamah» (terra vermelha, fértil), constatações etimológicas que denunciam a natureza do objeto definido. Quando o ser humano perde esta consciência é que pensa ser o que não é. Ora, em nosso entender, os momentos de crise são momentos de devolução de consciência. Na sua etimologia, a crise quer dizer, precisamente, purificação, tal como o «ouro no crisol».
Bem, mas esta constatação, por si só, não é suficiente para se depreenderem todas as implicações decorrentes da verificação do laço existente entre crise e crescimento da religiosidade e da manifestação religiosa. Importa compreender como, também, num plano pastoral, se observam, aqui, desafios a ter em conta.

Desafios pastorais

Ao longo da história, a relação entre a «religião cristã» e a «religiosidade popular» nem sempre foi pacífica. Pelo seu caráter espontâneo, a religiosidade popular tende a absorver, acriticamente, expressões estranhas, exóticas e, por vezes, pouco conformadas com o quadro conceptual cristão. E diante disto, duas atitudes se foram configurando: a da rejeição, pura e simples; a da «cristianização». Como em tantos âmbitos, a justeza está no equilíbrio. No caso em estudo, o equilíbrio passa, não apenas por, como sugeria o Papa Gregório Magno, «ser necessário evitar destruir os templos dos ídolos; basta eliminar os ídolos e, depois, com água benta, aspergir os templos, construir altares e colocar relíquias» (ap. Enciclopédia Christos), mas, seguramente, por um trabalho mais lento e dedicado de formação e criação de tradições capazes de suplantar as marcas idolátricas. Na verdade, julgo que nem tudo é suscetível de «cristianização», necessitando, mesmo de ser suplantado. Os sinais de reemergência dos ídolos clássicos cartomânticos, astrológicos, etc., obrigam a uma reflexão cuidadosa, que desperte a criatividade cristã e a torne capaz de gerar novos símbolos que unam a fé cristã à vida real das pessoas do século XXI. Nesta última afirmação, formulo um programa que tem um pressuposto teológico. A fé cristã estrutura-se em torno do eixo que é a fé na encarnação que, em termos de conteúdo afirma a realidade da presença do divino na finitude da história, o que se constitui, também, como um princípio formal: a fé cristã deve expressar-se em manifestações concretas. Quando tal não acontece, a religiosidade espontânea, muitas vezes de origem pagã, ocupa o lugar de uma resposta que resulta da natureza frágil e incompleta da humanidade, expressão última de uma sede que fala, por si só, que existe «água», mesmo que não se queira reconhecer. A sede não é, regressando ao início do nosso texto, uma alienação, mas a manifestação de que há uma nascente da qual se provém e que, se ausente, deixa um vazio. A religiosidade e a religião, em tempos de crise mais não são, afinal, do que a afirmação da natureza intrínseca da humanidade. Estar em crise será, então, a oportunidade brilhante para o homem se «re-humanizar»!

Luís Silva

sexta-feira, março 22, 2013

«Firmes nos princípios, tolerantes com as pessoas»

O cristianismo é verdade, é lei, é rito, é tradição, é património, é história, é razão, é sentido, é… É, é tudo isto, mas tudo isto não é, ainda, o cristianismo. Já S. Paulo o exprimia com a clarividência de quem parecia ter vivido os dois mil anos que, entretanto, já percorremos: ainda que saibamos falar a língua dos homens, se não tivermos amor, de nada vale isso. Porque, antes de tudo, o cristianismo é encontro. E, por sê-lo, como diz Tolentino de Mendonça, no seu livro sobre a amizade, «nenhum caminho será longo». O encontro tornará curtas as longas peregrinações de dor e sofrimento, porque o encontro lhes conferirá sentido e rumo.


Mas nós, cristãos, parecemos levar muito tempo a descobrir a essência do que nos diferencia. Como recordava Bento XVI, na sua programática primeira encíclica, «Deus é amor», «no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo». E será isto que fascinará, que seduzirá, que, como dizia D. José Policarpo, nas vésperas da eleição do Papa Francisco, transformará a igreja num lugar onde se quer regressar. A tentação tem sido, porém, outra. Carregados por fardos pesados, em vez de seduzidos por tesouros eternos, desejamos impor aos outros a carga que nos esmaga por ainda não termos sido tomados por dentro pela beleza que inebria.

Significará, porém, isto a cedência ao relativismo que tudo aceita e a tudo confere legitimidade?

A beleza do cristianismo advém-lhe de não ceder à tentação de tudo reduzir ao branco e preto que tornaria tão fácil dividir o mundo em bons e maus. Mas esse não é o caminho cristão. Foi, aliás, recusado com a rejeição do maniqueísmo dos primeiros tempos.

Mas como, então, conciliar o amor com a verdade?

A resposta foi sendo burilada com o tempo, mas aprecio de forma particular o senso de Inácio de Loyola, fundador dos jesuítas, que fez da companhia de Jesus uma fraternidade assente no acolhimento das pessoas e da verdade, sem qualquer contradição. Para ele, havia que ser firme nos princípios, mas tolerantes com as pessoas.

Uma conciliação que pode encontrar a sua nascente na forma como Jesus Cristo se situou diante da mulher adúltera.

A resposta dos mais distraídos parece acabar na afirmação de Jesus que sublinha que, tal como ninguém a condenara, também ele não a condenava. Contudo, o evangelho não acaba aí. «Vai e não tornes a pecar» é a chancela do episódio. O centro não está na regra, nem na lei, nem na moral. Elas não são o ponto de partida, contrariamente ao que poderiam pretender os farisaísmos. Mas elas são o traço de confirmação, contrariamente ao que poderiam pretender os relativistas. Não é a moral o que seduz em Jesus, mas da sedução e do encontro nasce uma nova forma de conduzir a vida.

A nova evangelização, de que se ecoa a necessidade permanente, claudica quando um destes momentos falha: o encontro, por gigantismo da moral; a moral, por cedência ao relativismo. O equilíbrio só poderá encontrar-se no dinamismo jesuíta que reconhecia que o cristão deve ser «firme nos princípios e tolerante com as pessoas». Não a tolerância de quem se julga superior, mas de quem se reconhece irmão na fragilidade, consciente, porém, de que a fragilidade não deve obscurecer o horizonte para que se caminha.

Explicitemos estas ideias.

A moral cristã não é o início da vida cristã. O batizado não é envolvido, pela água, num rolo de leis, mas acolhido no regaço de Cristo. A moral é como que um segundo momento, em resultado deste encontro. Assim deve ocorrer, também, no processo de evangelização. Primeiro, o encontro, pois a partir dele, cada um, ao sentir-se recebido, compreenderá que e como deve mudar a sua vida. Assim ocorreu em tantos e tantos encontros reais relatados nos evangelhos. A novidade do encontro suscita a conversão, como ocorreu com Zaqueu: «Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais» (lc 19,9).

Mas os caminhos estão demasiado longos, hoje. Parece não haver tempo. Somos como que consumidos, como diziam os gregos clássicos, pelo deus «crónos» que devora os filhos. Vivemos a nostalgia do futuro que nos atrai como abismo vertiginoso, e não permitimos o encontro. E, como o nosso Deus se fez pequeno e precisa da mediação, sendo que os «mediadores» não permitem que ele se torne presente nas vidas, os nossos contemporâneos sofrem a ausência de Deus. É grande a nossa responsabilidade: a de permitir que se torne possível o encontro. Talvez isto também explique porque parecem andar sumidos os valores maiores. Quem não encontrou o absoluto, deriva num mar sem ventos favoráveis.
Luís Silva

quinta-feira, janeiro 24, 2013

O acontecimento ecuménico de todas as semanas

Terminado o oitavário pela unidade dos cristãos, parece que se fecham as tendas de uma feira em que se expuseram boas intenções, aguardando pela mudança do calendário, como se mais nada ocorresse, entretanto. No entanto, esta é apenas uma ilusão. Na verdade, de há muito que ocorre, semana após semana, em cada ano, em cada escola deste país, pública ou particular, um discreto e pouco badalado momento permanente de ecumenismo e diálogo inter-religioso.

A surpresa desta notícia é, seguramente, para muitos, tão grande como a expectativa sobre o facto a que estarei a referir-me. Tanto maior quanto o desconhecimento sobre o precioso trabalho que a este mesmo facto se deve na causa da defesa dos mais nobres valores, dos mais sólidos alicerces de uma sociedade que se pretende plural, respeitadora, mas também capaz de assegurar o conhecimento e reconhecimento das identidades e das particularidades.

Em cada semana, mais de cinquenta por cento dos alunos de todo o ensino básico nacional fazem parte deste delicado, longo e sólido trabalho de ecumenismo que envolve, não só alunos católicos, mas também ortodoxos e protestantes dos mais diversos ramos. Descobrem o que causou as ruturas, bem certo, mas entendem, também, que, como me dizia, há dias, um aluno, essa é só a primeira parte de uma narrativa que, na disciplina de História, só lhe contam ser de conflito. Ele acabava de descobrir que, afinal, essa história era, de há mais de cem anos, uma outra história de aproximação e encontros. Nunca ouvira falar da palavra «ecumenismo», que confundia com «comunismo» e «economia», como tantas outras pessoas a quem pedi que, com os seus colegas, entrevistasse.

Esse acontecimento diário, que ocorre em todas as escolas deste país é, ao contrário do que muitos querem continuar a fazer crer, parte da solução e não do problema ecuménico em Portugal. Esse acontecimento diário, que se faz com mais de metade de todos os alunos que frequentam as nossas escolas, chama-se «educação moral e religiosa católica». Uma disciplina que, mesmo os próprios cristãos, parecem continuar a desconhecer, desconsiderando-a como menor. Uma disciplina em que se descobre a fraternidade das três religiões do Livro (7º ano), ou a unidade e diversidade do cristianismo (8º ano) ou, ainda, o que possam ter a ensinar o ateísmo e o agnosticismo, assim como as religiões orientais (9º ano). Uma disciplina que, a partir de um lugar identificado, o da matriz cristã católica, se dispõe a dialogar. Um diálogo que não acontece, apenas, enquanto desejo. Nela se realiza, de facto, o que pretende. Assim me acontece, em concreto, pois, entre os meus alunos contam-se não apenas católicos, mas também de outras confissões (mais numerosos são os ortodoxos) e, mesmo, descrentes que se sentem em busca, realidade plural que sei acontecer com tantos outros professores deste país.

Mas, nesta nação em que se cultiva o adiamento da esperança, muitos teimam em não querer reconhecer que ali, naquela disciplina dita menor, está a acontecer história.

Como dizia D. António Couto, num debate organizado pela Diocese, em Estarreja, esta é uma geração nova, mais disponível para o ecumenismo e o diálogo inter-religioso. E não duvido de que muito tem feito por isso a EMRC. Assim se queira reconhecer.



Luís Silva

quarta-feira, janeiro 16, 2013

A ousadia de não desanimar



Os tempos de urgência podem distrair do que é importante. É um dilema sempre difícil de solucionar. O de saber se se deve acudir à emergência de um momento, se continuar a manter o olhar largo e longo para o horizonte.
É uma tensão que o Cristianismo desafia a que não se diminua, quer por se adormecer no sonho de um mundo melhor (que não faria de nós senão puros utópicos, distraídos do hoje), quer por se atolar na lama do agora. A tensão tem de se manter. Continuar de mãos enfarinhadas na história, mas com a certeza de se estar a construir algo melhor.
Vêm estas palavras a propósito das dificuldades por que passam os portugueses, nesta hora, em que a necessidade de garantir a correspondência às imposições que nos estabelecem os credores faz, em cada dia, mais vítimas, quer pelo desemprego, quer pela impossibilidade de corresponder aos compromissos pessoais assumidos ao longo de vidas.
Julgo que a tensão acima enunciada deve definir a resposta, nesta hora.
Por um lado, criando respostas que permitam suprir as necessidades imediatas. Um desafio a que as comunidades cristãs não podem virar a face. Urge a mobilização de todas as estruturas de fraternidade que permitam assegurar que nenhuma família soçobre à crise porque ninguém deu mão. Como dizia Churchill, numa célebre carta de 1901 a um deputado compatriota, «não há grande glória num Império que consegue dominar os mares e não consegue tratar os seus esgotos». A Portugal nem o domínio dos mares resta, hoje. Mas, de que valerá corresponder aos seus compromissos se os seus filhos sucumbirem?
Contudo, a urgência da resposta não pode distrair de uma leitura em profundidade que a todos deve interrogar. A crise que vivemos é, antes de mais, uma crise de insolidariedade. A muitos pareceu, ao longo de décadas (talvez séculos, até!) que o que era de todos era para o maior benefício dos que disso se sabiam aproveitar. Quando, na verdade, o que é de todos a todos deve servir e por todos deve ser tratado com carinho e dedicação. Sejam bens, sejam lugares de poder ou serviço, sejam, ainda, os devidos impostos. O próprio nome de «imposto» deveria, em definitivo ser banido e substituído pela ideia de «tributo», mais consentânea com a ideia de repartir, dividir, porque o bem de que beneficiamos resulta do contributo (com+tributo) de todos. A riqueza que se possui não é um bem absoluto, mas um empréstimo, quer dos que nos precederam, quer dos nossos contemporâneos, quer, ainda, dos vindouros. A doutrina social da Igreja sempre afirmou que o direito à posse era um bem, contudo subsidiário do princípio do destino universal dos bens. Possuir, de forma injusta, desproporcionada em relação à pobreza envolvente é inumano e deve ser problematizado e gerido, de modo a assegurar a mais ajustada distribuição.
Ora, para o Estado poder gerir esta distribuição da riqueza deve fazê-lo de modo a gerar confiança. Deve criar mecanismos que não traiam a confiança dos cidadãos que querem e devem querer participar da construção de uma sociedade mais justa. Na verdade, a interrogação que a todos assalta, nesta hora em que a todos se pede que participem no reequilíbrio das contas públicas (que a todos devem dizer respeito), é a de saber se, após a participação num tal desiderato nacional, o que a todos diz respeito não beneficiará a apenas alguns. Uma dúvida que o Estado tudo deve fazer para que se extinga. Uma exigência que se configura, em Portugal, no apelo a que o sistema judicial seja, de facto, cego por não ser de primeira ou de segunda, de acordo com o nível económico ou social; uma exigência que se estrutura no apelo a que os decisores políticos também participem no esforço de todos, para o que muito ajudaria que a legislação sobre os cargos políticos fosse feita por uma estrutura (um senado? tribunais especiais para tal criados?) diversa da assembleia da república, de modo a eliminar a sombra de que quem legisla sobre si mesmo tenderá a beneficiar-se nas decisões.
Mas outros desafios se colocam, ao fazer-se a leitura das causas desta crise. Quantos portugueses continuam a olhar para o Estado como uma entidade estranha, alheia à sua vida, confundindo-o com o governo? Uma confusão que gera o desabafo de que não se pretende pagar mais impostos por se estar farto desta ou daquela governação. A causa do desabafo não é contudo, exclusivamente causada pela incapacidade de distinguir. Também os próprios decisores políticos têm favorecido, ao longo dos tempos, a convicção de que governar é governar-se. Urge, assim, uma nova atitude:
- de quem elege, compreendendo que o Estado é formado por todos e a todos diz respeito, pedindo-se, por isso, maior responsabilidade, no momento de escolher quem deve dirigir os destinos dos bens que a todos dizem respeito;
- de quem é escolhido, colocando no centro da ação política o bem comum, que deve centrar-se na pessoa humana. Os bens acumulados devem servir esta e não servir-se dela.
Se crise é, como a etimologia pretende dizer, um momento de purificação, mesmo que doloroso como o do ouro que se purifica no crisol, esta pode ser uma hora de desafio e crescimento. Se para trás não deixarmos ninguém e a todos soubermos incluir na abertura de um horizonte de melhor futuro. É a hora da ética e da moral. A hora dos valores que respeitam a dignidade dos mais frágeis. Se não for assim, de que serve existir Estado?


Luís Silva

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal

  ‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Parceria com a revista 'Mundo Rural' Luís Manuel Pereira da Silva*   Cerca de duas décadas ...