Caberá à decisão conferir-lhe um sentido e
proporcionar-lhe transparência.
É este o quadro para o âmbito do que celebramos, no
Natal. Nada é determinado, nada é óbvio. Tudo é resultante da decisão da
liberdade. Primeiro, da liberdade de Deus; depois, da liberdade humana.
E isto é que torna tão brilhante e luminoso o que
celebramos, em cada Natal. Não o determinismo e a inevitabilidade, mas a perene
e surpreendente novidade da liberdade.
A opacidade da realidade pode ser a responsável
por, naquilo que não diz respeito ao que é humano, termos a ilusão de que
podemos determinar, com toda a precisão, as causas e prever, sem margem para
erro, as consequências. Essa é uma ilusão que se vai apropriando de todos nós,
numa sociedade tão incomodada com a novidade e a imprevisibilidade. Queremos
tudo determinar; estamos seguros de que somos determinados (pelo sangue, pelos
genes, pelas circunstâncias, etc…). Mas o Natal é a afirmação de que o humano
transcende os determinismos. Vive numa realidade que o condiciona, mas é-lhe
transcendente. Esta é uma das afirmações nucleares do mistério natalício. Sim,
porque mistério não é, para a teologia, sinónimo de um enigma indecifrável que
alguém acabará por reduzir a banalidade; mistério é, para a teologia, a
condição densa da realidade que faz dela algo que podemos descortinar, mas que
sempre nos escapa e que captamos, pouco a pouco, mas sempre indeterminável.
Ao encarnar na realidade mundana, Deus afirma, não
só que não é Deus à maneira grega (impassível, distante e não confundível com o
concreto), mas, pelo contrário, que é amor como, aliás, o é, de forma finita, o
próprio ser humano. Se, como afirma Romano Guardini, «quem sabe de Deus conhece
o homem», então, partindo dessa premissa, teremos de perceber que Deus não pode
ser tão distinto da realidade que nada tenha a ver com ela. A natureza da realidade,
enquanto criada por um Deus que concede à humanidade a condição de criatura à
Sua «imagem e semelhança», faz com que algo do que o homem é tenha de provir de
Deus. E esse algo é a sua condição de amor e liberdade, duas condições que se
exigem, mutuamente: sem liberdade, não há amor verdadeiro; sem amor, não há
liberdade, mas puro arbítrio.
Ao encarnar, afirmando-se como um Deus que não é,
meramente, pura necessidade, Deus transfigura a realidade, respeitando a sua
aparência de opacidade, mas concedendo ao Homem que a olha a capacidade de nela
descortinar o que ela parece ocultar. Como bem recorda Leonardo Boff, no seu
livro sobre «os sacramentos da vida; a vida dos sacramentos», a realidade,
depois da encarnação de Deus, já não se satisfaz em respeitar a transcendência
de Deus; ela própria transparece o dinamismo divino. E talvez essa seja a maior
exigência do Natal para estes tempos: superar a convicção de que a liberdade
esteja ausente da realidade. Quando novos gnosticismos parecem querer reduzir o
homem a pura alma e esquecer a corporeidade, como se esta fosse a origem do
mal; quando os transumanismos se propõem afundar a humanidade num esvaziamento
de si, prescrevendo que a história real não faz parte da identidade, o
nascimento de Deus na singeleza de um lugar concreto, com nome e história reais
desafia a reconquistar a densidade da realidade e a respeitar a sua condição de
identidade. Não somos seres abstratos; somos e realizamo-nos na concretude de
cada agora. Nascemos num aqui e agora que nos concretizam. E isto faz da
realidade uma transparência: na história dos homens transparece a história do
encontro entre Deus e as suas criaturas. A realidade não é vítima de umas
quaisquer forças ocultas e deterministas: é uma história de encontros de
liberdades. O Natal é a boia de salvação da humanidade face a toda a tentativa
de desumanizar o mundo e de o tornar opaco. O opaco da realidade já não é uma
efetiva condição insuperável, mas a condição da liberdade e do respeito pela
decisão. Mas há quem queira que ela permaneça opaca e devedora de ocultos
determinismos. Celebrar o Natal é celebrar a certeza de que o mundo transparece
o Amor e, com ele, a Liberdade. Celebrar o Natal é proteger o Homem concreto,
realizado no aqui e agora da história, de todas as utopias vagas e vãs que
esmagam em nome de um Abstrato humano, ainda não realizado. Como bem recordava
Gabriel Marcel, o que somos é «homo Viator», homem em caminho, peregrino, ainda
e sempre incompleto. Destruir o homem concreto em virtude de um idealizado Homem
abstrato é desrespeitar a condição peregrinante da humanidade. Queríamos ser
sem termos de ainda não ser. Mas o que somos realiza-se como um realizar-se em
caminho. Porque a encarnação deu-se no concreto de uma criança, acolhida numa
família e nela realizada em respeito pelo caminho próprio de cada humano. O
fazer-se é já parte da realização. Não há, por isso, Páscoa sem Natal. Não há
ressurreição sem o acolhimento da condição (quase) opaca do mundo; porque é na
opacidade do mundo que transparece a densidade da realidade para os olhos que a
olhem como quem se sabe peregrino e a caminho.